Yanis Varoufakis veio da Grécia para descer a Avenida da Liberdade. A cumprir pela primeira vez uma tradição da esquerda portuguesa, o ex-ministro das Finanças da Grécia manteve uma tradição sua: não teve papas na língua. Lado a lado com Rui Tavares e junto do Livre, o homem que teve de abandonar o governo do Syriza para que este pudesse sentar-se no Eurogrupo não tem pruridos em relembrar a saga – nem tão pouco em avaliar o governo que hoje preside ao Eurogrupo: o português. “Vocês não têm uma solução em Portugal. Têm uma pequena melhoria, sem uma solução. Se isso tivesse sido possível, eu também quereria isso para a Grécia. Mas temos de lembrar-nos que isso não foi possível para nós. Com o vosso governo, o triângulo Berlim-Bruxelas-Frankfurt estava mais confortável. Com o nosso, não estava nada confortável. E estavam mais confortáveis convosco porque nos tinham esmagado antes”, acredita o autor.
“O que este governo fez foi estabilizar a situação portuguesa ao não introduzir nova austeridade. Isso é uma grande coisa e é um bom passo. Mas não chega, não é suficiente”, continua, ao i. E porque não é suficiente? “Porque aceitaram todas as medidas de austeridade do anterior governo e, particularmente, o tipo de políticas do Banco Central Europeu”, diagnostica. Ainda assim, não tem dúvidas: “Portugal hoje está melhor porque parou novas medidas de austeridade, a Grécia não parou”. E é por isso que Varoufakis não perdoa a Mário Centeno ter afirmado recentemente que o governo grego teria beneficiado de um maior “ownership” do seu resgate.
“A partir do momento em que começou a dizer que aquilo de que precisamos na Grécia é um maior controlo destas reformas catastróficas, ele [Centeno] traiu o eleitorado que votou nele em Portugal”, acusa o grego, que nunca chegou a ser seu contemporâneo nas reuniões dos ministros das Finanças da zona-euro. “Como presidente do Eurogrupo, está a ter um papel danoso para toda a Europa. E não seria presidente do Eurogrupo sem a luta do povo grego”, atira.
Elaborando, Varoufakis remete para o tempo antes da sua saída do governo de Alexis Tsipras: “Deixe-me ser muito honesto e muito direto consigo: se nós não tivéssemos feito o que fizemos em 2015, se Merkel não sentisse que ultrapassou um limite ao esmagar a primavera de Atenas [no verão de 2015], não teriam permitido que este governo se formasse em Portugal”.
É com base nessa premissa que o antigo ministro do Syriza defende que o governo português “deve a sua existência à luta do povo grego”.
“Ter este ministro das Finanças [Centeno] como presidente do Eurogrupo a dizer que quer mais reformas drásticas para a Grécia é uma traição às forças que o levaram ao poder”, rematou Varoufakis, ontem, em Lisboa, conversando com o i.
Degradê Em pleno dia de primavera quente, a Lisboa turística parou para lembrar uma revolução. Na Avenida da Liberdade, celebrou-se o dito valor e marchou-se em degradê ideológico. Primeiro os sindicatos e o Partido Comunista, acompanhado de respetiva juventude; depois o Bloco de Esquerda em largo ajuntamento; de seguida grupos de estudantes pedindo “o fim da propina”; em terceiro, já com bandeiras da União Europeia, o Livre de Rui Tavares – lado a lado com Varoufakis; e a fechar o cortejo, em jeito de estreia, a Iniciativa Liberal.
O i falou com todos. Incluindo os turistas, confrontados com a manifestação cívica e política.
Um casal britânico de Suffolk inquire mesmo acerca do sucedido: “Desculpe, estão a protestar contra Bruxelas?”. Respondemos com honestidade: “Uns sim, outros não. A maioria sim”. O marido inglês prossegue a temática: “Se estão a marchar contra Bruxelas, eu também marcho. Votei Brexit. Querem controlar demasiadas coisas!”. A esposa inglesa concorda e o nível de sentimento europeísta na avenida desce drasticamente. Um grupo de holandeses, menos assertivo, demonstra surpresa. “Nunca vimos nada assim. Na Holanda temos democracia há mais de cem anos. Não há destas coisas”, descreveu um sexagenário com as habituais meias brancas sob sandálias de cabedal.
Militante do PCP desde a revolução dos cravos, António Graça vem de Loures para a descida da avenida desde o primeiro ano em que tal acontece. Na madrugada de 25 de Abril de 1974, correu “de um lado para o outro” até ao quartel do Carmo. Trabalhava, à data, no Bairro Alto. “Todas as minhas ideias já antes do 25 de Abril iam de encontro à queda da ditadura, e continuo assim. Sou militante do Partido Comunista Português desde então. Trabalhei no campo, fui trabalhador rural, vim para Lisboa, estudei, fiz o curso de comercial, fui empregado durante muitos anos, as minhas raízes são desta parte”, relata, apontando com uma mão amistosa rumo à multidão. Sentado num banquinho de rua ao lado da esposa, não se coíbe de deixar críticas ao executivo de António Costa. “Este também é um governo submisso à União Europeia. O PS é igual ao PSD – fazem uma coisa e dizem outra –, não têm credibilidade. Eu nunca fui muito a favor desta ‘geringonça’, mas a nossa oposição não deixou de ser firme”, garante em conclusão. O maior lamento do casal é a emigração jovem e despedem-se do i desejando “boa sorte”.
Anticapitalismo moderno Pelos passeios da calçada que ladeia o alcatrão começava a ouvir-se. “É a Mortágua”. A deputada do Bloco de Esquerda, de calças de ganga e megafone em riste, coordena a palavra de ordem e o ritmo da marcha. Em incentivo à corrida (”deixem passar o Bloco!”) ou em oposição ao governo que em 2015 foi governo com o seu apoio. As quadras, da sua autoria e lidas do telemóvel, rimam e cativam: “Ó meu rico Santo António, ó santo popular, diz lá ao Super Mário, que a folga é para se usar”. António Costa é, de facto, um primeiro-ministro “popular” – ainda que não tenha sido canonizado – e Mário Centeno, seu ministro das Finanças, já foi apelidado de “super” por alguns.
Em relação à “folga” orçamental, Jorge Falcato, veterano deputado do BE e figura histórica dos movimentos de protesto da esquerda portuguesa, explica ao i. “Os orçamentos que tiveram o voto do Bloco foram negociados dentro de uma meta. O que o Bloco diz agora – e diz bem – é que se a meta mudou e há uma folga esse dinheiro deve ser investido, nomeadamente na Saúde”. Sobre que valor sente como mais importante desde a revolução, Falcato dá uma resposta instintiva: “A liberdade de expressão. E a concentração dos média em torno do capital é um risco”.
Um ciclista de cravo no capacete cruza a avenida, passando entre carrinhos de bebé também adornados com a simbólica flor. Apoiantes bloquistas de iPhone na mão filmam enquanto se grita “há aqui anticapitalistas!” – curiosamente diante da seguradora Tranquilidade. A Catalunha e o Brasil de Lula da Silva não foram temas esquecidos. Entre os grãos de polén que caem das árvores pode sentir-se o odor a um ou outro cigarro de marijuana. Francisco Louçã, de boina clara, conversa com uma senhora satisfeita por vê-lo de perto. Está bem-disposto mas mantém o tom académico. Sobre as listas transnacionais ao Parlamento Europeu, que metros atrás juntavam Rui Tavares e Varoufakis, diz tratar-se “de uma fantasia”.
“O Parlamento Europeu já recusou: não vai existir. A hipótese legal já está fechada. Era um mau contributo. As listas são uma responsabilidade perante um eleitorado. Não há um eleitorado europeu: há um eleitorado português dentro do espaço da União Europeia. Não um povo europeu que se represente como povo europeu. Essas listas seriam sempre encabeçadas por um alemão ou por um polaco, não é verdade? Seria prejudicial para os países mais pequenos”, defende o professor e fundador do Bloco de Esquerda. Acerca de uma eventual recandidatura à presidência da República, Louçã sorri. “Estamos em 2018… E o Marcelo está tão feliz…”.
Não perder por falta de comparência No final, o i conversou com Miguel Ferreira da Silva, presidente do recém-formado partido Iniciativa Liberal. Confrontado com o facto de ser o único líder partidário “não de esquerda” a descer a avenida, Ferreira da Silva diz que “é pena”. Espera, daqui a dois anos, trazer a Iniciativa Liberal de volta à manifestação mas já com deputados eleitos no Parlamento. “Foi toda a população portuguesa que demonstrou um apoio à mudança de regime”, recorda, procurando não politizar a data. “A apropriação que, de algum modo, é feita por movimentos de esquerda não é tanto culpa deles. Há quem escolha não estar aqui”, aponta.
E a verdade é que não se viam por ali cartazes do PSD ou do CDS, ainda que estes tivessem certamente algo em comum com os demais manifestantes: críticas ao governo de António Costa.