Eurico Reis. “Gostava de ouvir o PR. Promulgou a lei e é constitucionalista”

Juiz que durante 11 anos liderou o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida explica o impacto da decisão do Tribunal Constitucional, que vai além das chamadas barrigas de aluguer. Promete continuar a lutar e deixa um repto para o futuro: mais transparência na escolha dos “guardas sem guarda” da democracia

Acompanhou o debate em torno da regulação da gestação de substituição em Portugal, uma solução há muito reclamada para mulheres com doenças ou lesões do útero que as impedem de gerar um filho. Depois de uma discussão que levou mais de cinco anos a ter fumo branco, Eurico Reis admite que os primeiros sinais de que poderia haver um chumbo no Tribunal Constitucional foram um choque. Agora mostra-se preocupado com o alcance da decisão conhecida esta semana, que põe fim ao anonimato das doações de óvulos e espermatozoides no país destinados a tratamentos de fertilidade. Para o juiz desembargador, que durante 11 anos liderou o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e desde fevereiro passou apenas a membro deste organismo, as repercussões são muitas e graves. “Não faço ideia se perceberam a caixa de Pandora que estavam a abrir”, diz, numa conversa em que fala a título pessoal e não em nome do conselho, que deverá debruçar-se sobre este tema numa reunião que já estava marcada para esta sexta-feira.

Era previsível que houvesse normas inconstitucionais no diploma que regula o acesso aos tratamentos de procriação medicamente assistida, incluindo a gestão de substituição?

Até sair a notícia do “Expresso” [“TC prepara chumbo de barrigas de aluguer”, 9.02.2018] confesso que não me passou pela cabeça, muito sinceramente, que o recurso do CDS e dos deputados do PSD que o acompanharam tivesse vencimento. Nessa altura foi uma surpresa, seria um choque profundo. As duas leis aprovadas em 2016 – e a da gestação de substituição esteve em debate desde 2011 – resultam de um processo de discussão lento e que permitiu chegar a uma solução justa e ponderada, que satisfaz uma aspiração que é legítima de pessoas para quem a natureza foi cruel e que querem ter filhos. Eu nunca iria participar num processo com normas inconstitucionais. Dito isto, nos países muçulmanos existem os aiatolas, a quem cabe interpretar o que o Corão diz. Nos países democráticos, isso não existe. Ninguém é dono da Constituição. As pessoas podem fazer interpretações diversas e os juízes que lá estão agora têm legitimidade para fazerem esses julgamentos e lerem a Constituição à maneira deles, mas há outras maneiras de ler a Constituição. Do meu ponto de vista, aquelas normas são conformes com a Constituição.

Pelo que foi tornado público, foi uma decisão relativamente consensual, de maioria.

Sim. Têm legitimidade para fazer a sua leitura. Não o contesto. É uma opinião vinculativa, mas não é a única opinião válida. Note-se que, no que diz respeito ao sigilo sobre a identidade civil dos dadores, que é declarado inconstitucional, já houve outra composição do TC que disse que a preservação desse segredo era constitucional. Agora vem esta composição dizer que não.

Nesse campo, os juízes dizem que o anonimato merece censura constitucional, invocando, por exemplo, a importância crescente que vem sendo atribuída ao conhecimento das raízes. Este é um argumento jurídico?

Aqui há uns tempos defendi que, se calhar, seria bom introduzir uma alteração na lei de funcionamento do Tribunal Constitucional, porque desta forma há uma série de outros argumentos que podem ser esgrimidos e que não podem ser expostos em tribunal. Não estou a inventar nada. O Tribunal Constitucional alemão admite que outras entidades possam intervir e apresentar as suas peças processuais antes do julgamento do tribunal, até os beneficiários das leis.

Neste caso poderia ter feito sentido chamar os casais?

Acho que faria sentido. Neste momento, a lei não o permite. Era bom que tivéssemos esta discussão em Portugal e perceber, neste tipo de processos, quem é que pode dirigir-se ou ser convidado a dirigir-se ao Tribunal Constitucional. Nos processos oriundos dos tribunais comuns, as partes interessadas tiveram a oportunidade, nas várias instâncias, de apresentar os seus argumentos – portanto, quando o caso chega ao TC, já vai com um grau de maturação, com argumentos de todos os lados. Aqui, isso não acontece. 

Que consequências antevê?

O que esta decisão vai fazer no caso da inconstitucionalidade do sigilo é levar a que deixe de haver dadores e dadoras portugueses. Numa interpretação absurda – mas nunca se sabe -, pode dizer-se que como todas as dádivas têm de provir de dadores cuja identidade seja conhecia, as dádivas de dadores cuja a identidade não é conhecida não são admissíveis. Isto seria a desgraça completa e paralisava a PMA (procriação medicamente assistida). Numa outra visão, que presumo que é a menos irrazoável, o que vai acontecer é que, deixando de haver dádivas de dadores portugueses, vamos importar dádivas e material genético em que a identidade civil dos dadores não é conhecida.

De qualquer forma, o que diz é que esta decisão do TC, como está anunciada, vai abranger mais do que os casais que procuravam aceder à gestação de substituição, ou seja, todos os tratamentos que impliquem doações anónimas.

Sim, abrange toda a gente. Abrange casais de lésbicas e mulheres sem parceiros e os casais heterossexuais em que é necessária a doação de ovócitos ou de esperma. Esta decisão é transversal a toda a PMA. Como os efeitos do acórdão são só para o futuro, os tratamentos que já estão iniciados podem prosseguir. Os novos tratamentos, pois… é uma das questões que o conselho irá seguramente debater. Temos uma reunião na sexta-feira que já estava marcada. Em termos genéricos, o parlamento, agora, pode ou não iniciar um novo processo legislativo. É uma questão que os senhores deputados vão decidir. Tenho algumas dúvidas de que isso aconteça nesta legislatura, mas isso não é comigo nem é com o conselho. Do lado do conselho, o que vamos ter de verificar são os efeitos sobre os tratamentos que ainda não foram iniciados e esta obrigação de só se poder usar dádivas procedentes de dadores cuja identidade civil é conhecida.

Nos últimos tempos, até com o alargamento dos tratamentos de PMA a casais homossexuais e mulheres solteiras, o governo chegou mesmo a incentivar a doação de gâmetas.

Isto é completamente ao contrário do que temos feito até agora. Vem introduzir fatores de perturbação terríveis, nomeadamente para os beneficiários. É obvio que também vai perturbar o funcionamento dos centros de PMA mas, sobretudo, vai trazer sofrimento a pessoas que têm de merecer – pelo menos, a mim merecem – a maior consideração. São pessoas em sofrimento, que querem ter filhos.

E não serão assim tão poucas: estima-se que 10% da população portuguesa tenha problemas de fertilidade.

E cada vez haverá mais, a infertilidade é uma doença que está a aumentar. Mas voltando ainda atrás para concluir por que motivo é expetável a redução dos dadores: os dadores não são pessoas que querem ser pais ou mães, são pessoas que querem ajudar outros a ser pais ou mães. Não querem ter, daqui a não sei quantos anos, uma criança a bater-lhes à porta a dizer “papá, mamã”. O outro ponto é que esta acaba por ser uma medida contra a estabilidade da família.

Que é um dos argumentos que suscita o recurso para o TC. Vê-o como uma espécie de feitiço contra o feiticeiro?

Exatamente. Isto é contra a família a vários níveis. Há um período na adolescência em que entramos em conflito com os nossos pais. E agora falo até pela minha experiência como juiz: nos casais separados acontece aquilo a que chamamos mitificação do progenitor ausente. É aquela história do “se estivesse com o meu pai, ele deixava-me fazer isto”. Isto pode começar por ser uma estratégia negocial com o progenitor com quem se está mas, a partir de certa altura, pode transformar-se num pensamento mesmo, na ideia de que, se estivesse com o outro, estaria melhor. Com esta questão do fim do sigilo, a criança passará a dizer “vocês não são os meus pais, os meus pais são outros”. Já viu o que isto provoca na estabilidade da família?

E não se abre o mesmo precedente no caso da adoção, em que há um corte com a família biológica?

Também. É uma caixa de Pandora que foi aberta. Numa conferência que fizemos no conselho, no processo de discussão que conduziu à apresentação da nossa proposta sobre a gestação de substituição, um cientista estrangeiro comentou outro aspeto interessante: com o fim do sigilo, as dádivas vieram por aí abaixo, mas houve um segmento populacional que começou a aparecer, os homossexuais masculinos, na expetativa de poderem vir a reivindicar a sua paternidade em relação àquelas crianças. Sabendo-se que eram os pais biológicos, poderiam reivindicar essa paternidade em países onde os homossexuais masculinos não podem ter filhos. De facto, é interessante como alguma argumentação se pode voltar contra o feiticeiro.

Mas parece-lhe que houve essa intenção de alterar todo o contexto da PMA? O recurso do CDS visava a questão da gestação de substituição.

Para se ser juiz é preciso algum treino. A postura mental de ouvir toda a gente antes de decidir não é natural no ser humano. O nosso cérebro não está formatado assim, mas para decidir rapidamente com pouca informação. É assim desde que estávamos nas cavernas. Depois temos é um verniz cultural que nos foi ensinando que, às vezes, é preciso ouvir várias pessoas antes de decidir. Essa parece-me que é a formação que tem de ser dada aos juízes e que, do meu ponto de vista, não está a ser dada. Há muitas pessoas que não adquiriram ainda esta competência. Como diz a raposa n’“O Principezinho”, o essencial é invisível aos olhos. Temos de escavar para perceber as consequências das nossas decisões. Não faço ideia se perceberam a caixa de Pandora que estavam a abrir.

Mas não estava em causa a alteração do anonimato.

Tem esse efeito secundário. Nas várias vezes que fui à comissão parlamentar de Saúde disse-o porque este tema do sigilo da identidade civil é recorrente.

Com a salvaguarda decidida pelo TC de que os tratamentos que já tenham sido iniciados vão poder continuar, há pelo menos dois casais que vão poder prosseguir com a gestação de substituição, correto?

Sim, se os tratamentos médicos tiverem começado e tiverem resultado. Há muitas coisas que podem correr mal. Todos os outros casos ficam parados. Imagino que as pessoas devem estar aflitas, à espera que as entidades competentes se pronunciem. Gostava, por exemplo, de ouvir a opinião do senhor Presidente da República.

Inicialmente, Marcelo vetou a lei que permitiu as barrigas de aluguer.

Mas depois promulgou-a. Nos processos judiciais há os que ganham e os que perdem, os vencidos. Neste processo, o único ganhador é o CDS. Tudo o resto perdeu. E o Presidente da República, que promulgou a lei, também está no campo dos derrotados. Ele, que promulgou a lei e é constitucionalista, não viu inconstitucionalidade naquele diploma. 

A decisão não é passível de recurso?

Não. É aquilo que o Império Romano definiu como os guardas que ninguém guarda. Não são os únicos – o Presidente da República também é um guarda que ninguém guarda. Mesmo que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos se pronuncie, condena o Estado português mas não altera uma decisão. E no TC não há possibilidade de revisão da decisão. É esperar que mude a composição do Tribunal Constitucional ou impedir que se apresentem recursos. Neste caso, se não houvesse um número de deputados do PSD a juntarem-se ao CDS, não teria havido recurso ao Tribunal Constitucional e a lei estaria em vigor, a aplicar-se sem perturbação social.

Há muitos países que tenham levantado o sigilo?

Começou por haver sigilo mas, depois, nos países nórdicos, Reino Unido e alguns estados dos EUA houve alterações legislativas. O que aconteceu nesses países foi a quebra das dádivas. Não é preciso ir longe: Espanha envia material genético para todo o lado precisamente porque existe a preservação do sigilo.

Um dos argumentos é que, não se conhecendo a identidade civil dos dadores, pode haver relacionamentos entre meios-irmãos. Numa entrevista ao “Sol”, o médico Miguel Oliveira da Silva alertava que, no limite, uma pessoa oriunda da doação de gâmetas pode ter dez meios-irmãos genéticos.

Hoje, uma pessoa que descubra que nasceu fruto de uma doação já tem o direito de perguntar ao conselho se a pessoa com quem vai casar é sua irmã.

Mas há pedidos desses?

Em 11 anos, não houve nenhum. A natureza e a vida social são muito ricas. Temos os “Maias” mas, na vida real, sabe-se lá o que acontece, e ainda hoje.O tabu do incesto nasceu por alguma razão: percebeu-se que filhos de irmãos e primos produziam pessoas mais débeis e com problemas. Mas sabemos que, em alguns grupos mais fechados, isso acontece.

Mas, atualmente, isso está relativamente acautelado?

Sim. Essa norma na lei da PMA para as pessoas que se vão casar tem a ver com algo no Código Civil que são os impedimentos do casamento, nomeadamente casar com pessoas com determinado grau de parentesco, mas a razão material, que é evitar que nasçam crianças com problemas, faria com que fosse constitucional estendê-lo a situações de união de facto. É o que digo: a lei não era perfeita porque não há leis perfeitas, mas era equilibrada.

Além dos sete pedidos para gestação de substituição que estavam a ser apreciados pelo conselho, quantos casais que recorrem à doação de gâmetas serão afetados por esta decisão?

Não tenho os números exatos presentes mas, seguramente, centenas.

Que desfecho antevê para todo este processo?

Não sei o que vai acontecer. O meu estado de espírito é que infelizmente vou ter de dedicar as minhas energias a um combate que achava que já tinha acabado. Não vou desistir, vou procurar ajudar a mobilizar pessoas para voltarmos a ter uma lei equilibrada. E em primeira linha falarei com os outros membros do conselho, que terá de adaptar o acórdão à nossa realidade. Mas colocar-me-ei, enquanto cidadão, à disposição da Associação Portuguesa de Fertilidade e de outros cidadãos.

Os casais que tinham o processo em avaliação no conselho podem recorrer à justiça por expetativas defraudadas?

Só para um eventual pedido de indemnização por parte do Estado. Na jurisprudência há acórdãos que consagram a ideia de que mesmo atos lícitos – e o acórdão do Tribunal Constitucional é um ato lícito do Estado – podem gerar o dever de indemnizar. Normalmente, esta teoria põe–se na área das expropriações, que também são atos lícitos. 

De qualquer forma, isso não resolverá o problema prático.

Pois não. Aí, recorro ao exemplo do aborto: não era por o aborto ser ilegal que deixavam de o fazer. O que vai acontecer com a gestação de substituição é que as pessoas vão voltar ao que havia antes e ficar nas mãos dos traficantes, que ganham dinheiro com o sofrimento dos outros.

Há gestação de substituição clandestina em Portugal?

Em Portugal, não tenho conhecimento e acho que é um risco tão grande que nenhum centro de PMA se atreveria a isso. Conheço os diretores e sinceramente não acredito que haja gestação de substituição clandestina em Portugal, mas há noutros países.

E há ideia de que já houve portugueses a ir lá fora.

Claro. 

E, depois, os pais conseguem reconhecer os filhos?

Por isso digo que ficam na mão dos traficantes. Para trazerem as crianças para cá estão sujeitos a todo o tipo de chantagens e de abusos. As coisas vão continuar a fazer-se, mas em vez de serem feitas de uma forma limpa, saudável e transparente, vai ser assim. Veja-se a lei seca nos EUA: proibiu-se o álcool, consolidou-se a máfia. Estas posições às vezes extremamente moralistas têm estes efeitos práticos que são fortalecer o mal, para usar também uma expressão moral. Os casais vão continuar a querer ter filhos e a força desse desejo para alguns é tanta que as pessoas afrontam tudo e colocam-se na mão dos traficantes.

A legislação da gestação de substituição esteve em discussão de 2011 a 2016. Chegou a falar de uma jogada política que foi demorando a discussão. Para si, este acaba por ser também um desfecho ideológico?

Completamente ideológico. Há um conceito muito interessante que são as motivações não jurídicas das decisões judiciais. Ao contrário do que o Tribunal Constitucional diz, as normas não têm de ser fechadas e, muitas vezes, o que distingue é a visão do mundo do juiz. As sociedades civilizadas funcionam assim. 

A atual composição do TC tem um enviesamento ideológico?

São conservadores. Têm uma determinada posição refletida nesta decisão. Mas se quer que lhe diga, neste caso, a posição conservadora seria conservar as coisas como estão. Esta é uma posição reacionária, reativa e contra o que eu entendo como progresso. E uso estes termos despidos de qualquer valoração pejorativa. O conservador, neste momento, seria deixar as coisas como estão. Os conservadores são as pessoas que não gostam da mudança, entendem que não traz benefícios, mas, quando a mudança se torna em situação, defendem a situação. E isto é uma mudança brutal. Dentro desta conceção há outras leis em vigor que poderiam ser declaradas inconstitucionais muito mais do que esta. 

Um dos argumentos do tribunal é que a indefinição da lei dá poucas balizas ao conselho. Nestes dois casos que analisaram, sentiram falta de balizas?

O conselho aprovou deliberações que definem de uma forma mais particular quais são os critérios e processos, o próprio texto do contrato é muito mais pormenorizado. O que dizem é que não querem que seja o conselho a decidir; no fundo, há uma manifestação de desconfiança face ao conselho, o que até pode ser legitimo. O conselho não pode ter a liberdade que a lei lhe dá de regular. Mas há outros diplomas que dão a outras entidades reguladoras, noutras áreas, poderes mais amplos. Como ninguém levantou, o problema vai continuar a existir. Normas em branco têm de existir porque não podemos fazer leis de cinco em cinco minutos. Temos de ter leis assim e escolher com cuidado as pessoas, os guardas que ninguém guarda, aqueles que têm a última palavra. Nos EUA, a aprovação de um juiz do supremo tribunal federal é feita com uma entrevista pública, é tudo posto em cima da mesa. O que gostaria é que as escolhas fossem feitas de forma mais transparente e com este grau de escrutínio porque, depois, estas pessoas têm este poder de impor comportamentos. Este poder tem de ser atribuído, temos é de ter cuidado nas escolhas.