Porquê uma lei de bases agora?
Porque há anos que se fala nisto e nunca ninguém apresentou nenhuma. Alguém tinha de apresentar a primeira versão. É para mudarem o que quiserem. Mas pelo menos há um ponto de partida.
Está a trabalhar há muitos anos no tema da habitação…
É a razão pela qual fui para Arquitetura aos 17 anos.
Mas só agora é que a habitação entrou na agenda política.
Isso tem várias explicações. A primeira é que só agora se estão a sentir os verdadeiros efeitos da Lei Cristas. Os cinco anos de intervalo da aprovação da lei de 2012 terminaram no final do ano passado e agora é que estão a começar a rebentar todos os dias as cartas dos senhorios a dizer que não há renovação de contrato ou que aumenta a renda.
Algumas das famílias afetadas são de classe média. Isso muda a forma como o tema entra para a agenda política?
Muda. Quando foi feita a liberalização do mercado de arrendamento em 2012, a promessa era a de que iria aumentar a oferta de casas para arrendar. Foi o contrário. Há oferta, mas a preços que as pessoas não podem pagar. E as pessoas perguntam: “Então o mercado não se regula a si próprio com a lei da oferta e da procura?”. Não, porque apareceram procuras novas.
Estamos a falar, por exemplo, dos estrangeiros…
De estrangeiros, de pessoas que estão a substituir a função habitacional por alojamento local, com todos os prós e contras que isso tem. Houve aqui dados novos que não foram previstos em 2012 e que ajudam a tornar isto completamente disfuncional. E há ainda outra coisa que o próprio António Frias Marques (que é presidente da Associação Nacional de Proprietários) diz: há proprietários que não colocam as casas no mercado porque as guardam a ver se valorizam. Alguns começam a pensar ‘quanto mais tarde entrar, mais ganho’ e aí há um efeito especulativo.
Houve muitas críticas em relação às soluções que propôs…
As associações de proprietários aquilo que estão a tentar passar é que é melhor não se mexer em nada e ficar tudo como está. Só que não fica tudo como está porque isto não está estável. O problema desse raciocínio é que quanto mais subir mais cai um dia. Além disso há um problema adicional, que é a coesão social. Não é bom para ninguém criar situações que podem tornar-se socialmente explosivas.
É o que está a acontecer já?
É o que está a acontecer. As pessoas estão a ficar revoltadas. Isto cria mau nome para uma parte do mercado e é complicado. Não há estrangeiros que queiram viver num sítio em que os moradores estejam contra eles. Isso prejudica o próprio negócio.
Tem havido reações muito fortes às suas propostas, com os proprietários a avisarem que podem ser inconstitucionais…
A Constituição prevê o mecanismo da requisição desde que com a justa indemnização, que é o que eu digo na lei, e de forma temporária. E esta não é uma solução única, não é uma panaceia. Tenho uma lei de 70 páginas e aquilo é apenas uma frase.
Qual seria a duração da requisição?
É temporária.
Mas por 20, 30 anos?
A ideia eram coisas muito mais curtas. Eu imagino que a requisição pode ser uma boa solução quer para as situações de partilhas de heranças, quer para situações de que se fala pouco mas que existem que são os volantes de realojamento. Ou seja, quando o proprietário tem de fazer obras num prédio com inquilinos dentro. Pode haver na mesma zona uma casa que não está a ser utilizada por ninguém e que pode ser requisitada durante o tempo que duram as obras. É apenas um exemplo.
Mas a requisição pode implicar obras?
Pode. Mas é muito diferente eu fazer um realojamento definitivo numa casa que tem de obedecer a todas as condições do que fazer um alojamento temporário apenas no decurso de umas obras em que as pessoas aceitam condições não tão boas mas que são transitórias.
É uma forma de fazer face ao facto de quase não haver habitação pública?
A habitação pública é muito pouca. A melhor forma de regular o mercado não é através da requisição. É colocar na oferta mais habitação pública, mas não vemos que a curto prazo isso se possa fazer. Lisboa fez uma aposta muito importante com o programa de renda acessível, que colocou no mercado seis mil fogos da Câmara. Mas não é suficiente.
Não há uma solução única?
Nem os incentivos fiscais sozinhos nem casas do Estado sozinhas nem programas como o da Câmara de Lisboa resolvem. Mas tudo isto, sim.
Esta é uma lei de bases de esquerda?
É uma mala de ferramentas, que serve para governos de esquerda, de centro e de direita. Uns podem puxar mais por aquilo, outros podem puxar mais por aqueloutro.
Não é pela figura da requisição que esta é uma lei de esquerda?
O princípio da requisição já foi apoiado por gente de direita. Quando recebemos 800 mil pessoas que vieram de África, foi preciso requisitar muita coisa. E bem. Durante anos, os hotéis estiveram ocupados. Temos de ter capacidade para reagir. Estamos a ter pessoas a ir para a rua. A requisição está prevista no mesmo artigo da Constituição que fala da propriedade privada, é o artigo 62. O número um diz que a propriedade privada é garantida em Portugal e o número dois que a requisição para utilidade pública tem de ser feita nos termos da lei mediante justa indemnização. É um recurso constitucional e que será usado provavelmente muito pouco. Na Grã-Bretanha, basta que o município diga que vai requisitar para que o proprietário ponha a casa no mercado.
Como é que se convencem as pessoas num momento de subida de preços a aceitar uma regulação do mercado?
É esse o papel do Estado. Estamos a falar de um bem essencial, não é um bem qualquer. Eu acho muito bem que haja mercado livre, mas uma parte do mercado tem de ser regulado. Não posso é ter um mercado livre e depois os proprietários virem pedir benefícios fiscais. Se é livre, não há ajudas públicas. Se é livre, é para as Madonnas deste mundo.
Acredita na fixação de tetos de renda?
Se é para ter benefícios fiscais, se é para ter incentivos, o mercado é regulado. Faz sentido imaginar que no futuro as pessoas podem optar pelo regime de renda social, pelo regime de renda acessível [com apoios públicos] e pelo livre, consoante as suas capacidades.
Os proprietários ainda têm bem presentes os efeitos dos congelamentos das rendas. Como é que podem aceitar uma proteção que torne vitalícias as rendas para pessoas com mais de 65 anos?
Não queremos uma sociedade em que as pessoas mais velhas são pura e simplesmente despejadas. Não pode ser. Não é decente uma sociedade que não consegue garantir estabilidade aos idosos e autonomia aos jovens.
E o Estado não tem de investir mais?
Investir mais, mas bastante mais. O Orçamento do Estado para 2018 tem 10 mil milhões para a Saúde, seis mil milhões para a Educação e para a Habitação pouco mais de 100 milhões. É uma disparidade brutal. Não pode ser. Precisamos de ter orçamentos mais robustos. É a única maneira de garantir alguma estabilidade habitacional e alguma coesão social. Isto é um país de brandos costumes, mas se esticam muito a corda, as pessoas revoltam-se.
Uma das suas ideias é canalizar os vistos Gold e o programa de residentes não habituais para zonas desertificadas. Pode ser uma solução para o interior?
Tenho muito interesse em receber investimento estrangeiro. Já que somos atrativos, é aproveitar. Agora, temos de aproveitar com inteligência. Vamos direcionar para onde é preciso.
A questão do património da Fidelidade veio mostrar que o direito de preferência pode ser impossível de exercer quando os proprietários vendem frações em pacotes impossíveis de comprar por um inquilino. Isso terá de ser mudado?
Vamos ter de mexer nisso. É a própria realidade que nos está a mostrar que temos de atuar aí. Nesse caso concreto, há quatro anos o problema não se punha porque a empresa era pública. A realidade muda muito depressa e temos de estar atentos.
A Lei Cristas tinha muitas coisas escondidas?
Não eram assim tão escondidas. Eu fui com António Costa, ele era presidente da Câmara e eu vereadora da Habitação, falar com a ministra Assunção Cristas para lhe dizer as consequências que a lei ia ter.
Qual foi a reação que tiveram?
Disse que a lei tinha as proteções todas, porque ia haver uma moratória para proteger os idosos. E nós perguntávamos ‘e quando acabar?’. Quando acabar, dá-se subsídio de renda. Pois, está bem. Nós precisamos que haja subsídio de renda não só para jovens, mas também para idosos, mas usado com alguma parcimónia. Há muitos estudos internacionais que mostram que todas as formas de subsidiação das rendas fazem subir o valor no mercado.
O BE vai insistir numa ideia que o PS já chumbou de um subsídio para os senhorios mais carenciados. Concorda?
Eu coloquei isso na minha proposta de lei de bases. Isso na altura não passou porque o Governo não me deu cobertura. Foi uma ideia que eu sempre defendi. O Eurostat dá uma percentagem de inquilinos pobres da ordem dos 30 e tal por cento e de proprietários pobres de 19%. Não sei quantos desses são senhorios.
Já disse que quer uma lei de bases aprovada nesta legislatura…
O que eu vou fazer é pôr a proposta em consulta pública mesmo antes da discussão. Tornar isto público e qualquer cidadão ou organização poder pronunciar-se. Depois, tentar o agendamento. É possível que os outros partidos se cheguem à frente com ideias. Se conseguirmos atravessar essa fase e depois trabalharmos na especialidade, eu penso que até ao final da legislatura conseguimos alguma coisa.
Sente que tem o apoio do grupo parlamentar do PS para isso?
O problema não é o grupo parlamentar do PS. O problema são as urgências. O Parlamento anda de urgência em urgência, está constantemente a ter ordens de trabalho que têm que ver com a notícia do dia. Temos de ser capazes de deixar alguma coisa que fique. Faz muita impressão entrar e sair de uma legislatura e não ficar nada, serem coisas que amanhã se desmancham outra vez. Eu gostaria de ter uma lei de bases que não fosse uma coisa para reverter no dia seguinte.
Esta configuração do Parlamento ajuda a conseguir isso?
Acho que sim, é favorável à ideia de avançarmos nos direitos sociais. É uma oportunidade de ouro não só para conseguir isto como para aprofundar algum entendimento entre os partidos que apoiam o Governo. Há várias áreas de desentendimento, como as questões europeias. Agora, direitos sociais, habitação, eu acho que é relativamente fácil construir entendimentos.
Há muitos pontos de contacto com as soluções do BE?
Sim. Nós tivemos um grupo de trabalho para acertar agulhas nestas matérias. É natural que haja convergência. E os eleitores que apoiam os partidos da esquerda estão à espera que a gente se entenda, que a geringonça faça qualquer coisa na área da habitação porque percebem que temos esse poder.
Não sente as pressões dos interesses imobiliários?
Eu sou de uma família de oito irmãos e era a quinta lá em casa. Sempre ouvi dizer que quem vai à guerra dá e leva. Faz parte. E quem não tiver feitio para isso é melhor nem tentar.
Estava à espera de ter tantas reações negativas?
Só são negativas de um lado. Praticamente só das associações de proprietários.
E dos autarcas…
Os autarcas foi porque não foram ouvidos e talvez aí do lado do Governo devesse ter havido uma preparação do terreno. Têm esta coisa de manter tudo bastante reservado. Eu própria não vi os diplomas que foram aprovados [quinta-feira] em Conselho de Ministros, apesar de estar a trabalhar em colaboração com a secretária de Estado da Habitação.
Ainda há tempo para ouvir os autarcas?
Esta lei de bases nunca poderá ser sequer posta em agendamento sem que a Associação Nacional de Municípios se pronuncie. Um dos papéis importantes é para os municípios e para as freguesias, que eu ponho aqui com competências na habitação. E quais são as competências? Identificar as carências, identificar os recursos. Quem lá está na base é que sabe onde é que estão as casas vazias, onde é que estão as pessoas que vivem mal.
Já disse que esta sua lei foi muito feita a partir de casos concretos. Ouviu muitas histórias?
Cada artigo tem uma cara atrás. Ouvi muitas histórias. A última ouvi esta semana já depois da lei feita, mas tenho na lei um artigo sobre esse assunto. É uma história de assédio imobiliário. É uma senhora africana que vai à Assembleia Municipal falar e diz ‘não venho pedir nada para mim, eu tenho uma vizinha que é a dona Isabel, que é velhinha e pagava 250 euros de renda; o senhorio tratou-a mal, foi lá a casa e atirou-lhe um bule de água a ferver para cima, eu quero saber onde está a dona Isabel’.
O assédio imobiliário também precisa de uma resposta na lei?
Eu tenho aqui um artigo sobre assédio imobiliário. Toda a vida se fez. Tirar as caixas do correio, tirar as telhas do telhado, apagar a luz das escadas…
E não há já sanção para isso?
Não há sanção. Temos de penalizar isto.
Como crime ou contraordenação?
Ainda não tenho ideias fechadas. Mas uma coisa ou outra tem de haver porque o assédio imobiliário existe.
A Lei Roseta pode ficar como uma marca da geringonça?
Isso é quase uma caricatura. É a lei Roseta só porque fui eu que a fiz, mas as leis são da República, não são das pessoas.
Mas há uma vontade sua de deixar aqui uma marca, não há?
Há uma vontade minha de levar mais longe este tema. Eu sou arquiteta. Escrever uma lei para mim é falar uma língua estrangeira. Esta não é a minha língua. A minha língua é o desenho. Mas porque são anos e anos de vida de volta destes temas, acho que posso dar um contributo.
Para já, conseguiu pôr a palavra ‘habitação’ no nome de uma comissão parlamentar.
Isso consegui. E ainda bem. E pressionei o primeiro-ministro para ter a Ana Pinho [secretária de Estado da Habitação] na equipa. Eu sabia que ela era de grande qualidade. Mas quando se constituiu o Governo ela estava de bebé portanto houve ali uma dificuldade. Mas acho muito importante o que ela conseguiu fazer em tão pouco tempo. É extraordinário dar corpo a uma estratégia nacional, com tantos programas, sem deixar de ir às emergências como ela tem ido a todas, desde a Fidelidade ao Bairro da Jamaica, é obra.
Para quem está neste momento a braços com uma situação concreta, qual é a esperança de ter uma lei que resolva esse problema?
Não gosto de fazer falsas promessas. Façam chegar ao Parlamento cartas de apoio, digam o que é que querem de nós. Quanto mais pressão fizerem sobre os deputados, melhor.
Vê à direita abertura para mudar alguma coisa na lei?
Há iniciativas do CDS já agendadas para o dia 10 de maio na área da fiscalidade. O CDS também já percebeu e, aliás, pelas más razões, se calhar por causa do nome da famosa Lei Cristas, que tinha de se chegar à frente.
Quando é que se vai cumprir o que está escrito na Constituição sobre o direito à habitação?
Eu sou velha e acredito que o objetivo é melhorar todos os dias um bocadinho. Não é garantir que no ano tal toda a gente tem o problema resolvido, eu isso não sou capaz. Melhor um bocadinho para que mesmo quem vive em sítios péssimos tenha direito, por exemplo, a luz e água enquanto não vem o realojamento.
Esse é um problema já antigo…
Há um ano que está a ser discutida entre secretários de Estado da Energia, com a Habitação, com o Poder Local, uma iniciativa que eu pedi para flexibilizar o acesso a luz e água quando não estão em situação regular. Faz-me muita impressão. Porque esses também têm caras por trás. A dona Ricardina do Bairro da Torre, o pessoal do Bairro do Jamaica, o pessoal do Torrão. Há muita gente por trás desses pedidos.
Esse processo chegará a bom porto?
Depende muito da pressão das pessoas, da opinião pública. Se há coisa que os deputados gostam de ver todos os dias são os títulos dos jornais. É isso que pode dar força a uma legislação. Aquilo que a gente consegue reverter é o que não tem apoio popular.
No caso da lei de bases, Carlos César não deu garantias de que se cumpra o prazo desta legislatura…
Eu ouvi. E disse que enquanto eu for vivinha farei tudo para que seja aprovada. E cá estarei. Ele sabe que eu sou assim. Não posso dar garantias nenhumas, mas vou batalhar. E já para chegar aqui tive de batalhar muito.
Não foi fácil?
Pois não. Mas o que interessa é que já aqui cheguei.