Entre as tradições sumptuosas, essas que hoje sobrevivem a grande custo tomando “juntos grão e bacelo prontos para a flor”, lembramo-nos da edição tomada como uma forma artística, aquela que insistentemente buscava “o ouro potencial no fundo do torpor”. Hoje, salvo uma excepção ou outra, já não se fazem editores como antigamente. E há muito que um editor não assumia que espera tirar da sua actividade o mesmo que tira um velho agricultor a ouvir a chuva. Desde há umas décadas, ficou curta a margem para a ousadia, e aqueles que não deixavam o tecto cair para a altura do joelho no “mundo dos livros” perfilam-se como outra das espécies no catálogo dos extintos. Os que metiam a vida no prego por mais um livro despenhando-se nesta língua como um cometa – inconformado, exigente, ardoroso -, não os há. E é justo que entre os últimos se nomeiem esses que mais fizeram por desarrumar a vida e recriar o caos fértil quando a ordem impunha o seu deserto. Os quatro cavaleiros de um apocalipse face à mercância do lixo. Vitor Silva Tavares, com a Peste exemplar que a sua & etc trouxe chamando a si as feras da terra; Rui Martiniano, trazendo a ira, a passagem mais enérgica da espada, essa Guerra de que ficou ecoando a risada da Hiena; Luís Oliveira arrastando a balança, lançando a Fome que persiste aí alegremente, a par do colapso económico que pouco afectou a sua Antígona; finalmente, Vasco Santos com a Morte sucessiva que tantos renascimentos e segundas vidas permitiu com as quatro décadas da sua Fenda. E é deste último editor que nos vamos ocupar.
Seria rico se fosse só mais um louco vulgar, desses sem imaginação nem mundo próprio que nos estreitam hoje todas as perspectivas. Os fiéis do Evangelho do empreendedorismo, toda uma geração triunfante de eternos aspirantes com o seu admirável mundo novo que tem hora marcada para chegar no mesmo instante em que todos os livros se fechem. A estes evangelistas o caso de Vasco Santos causaria enorme perplexidade: alguém que, ao longo de décadas, gastou uma fortuna para acabar pobre como a maioria de nós, mas tendo falhado muito mais, e cultivando a sabedoria de um falhado divinal.
“O nosso luxo foi sempre o mesmo: a coragem”, disse há uns anos numa entrevista o editor que, tendo posto fim à actividade da Fenda, retoma agora esse esforço confessando ao i que espera ter algum livro no prelo no dia em que venha a morrer. “Da natureza inteira atento escrutador”, Vasco Santos é por uns conhecido como o psicanalista de excepção que é, e por outros como um príncipe da edição independente. E ele mesmo não renega essa “bissexualidade profissional”, e sublinha até a nobreza dos laços entre Psicanálise e Literatura, referindo que “os melhores psicanalistas de hoje são também escritores: J-B Pontalis (morreu em 2013), Michel Scheineder, Adam Philips, Thomas Ogden”.
Vasco Santos valeu-se uma vez mais da mestria de João Bicker, designer que a partir da década de 1980 definiu “a pele da editora”, essa cobra que a cada muda de roupa soube distinguir-se naquela fronteira tão sensível entre a sobriedade e um rasgo de exuberância, intuindo esteticamente a rara integridade de um editor que terá sido dos mais generosos com os seus autores, dos mais leais e empenhados, e cuja lenda vive também das inúmeras pulhices e exemplos de ingratidão que foi recebendo em troca.
Ao longo dos anos, editou autores como Lautréamont, Raymond Roussel, Artaud, Henri Michaux, Le Clézio, Pierre Louÿs, J-B. Pontalis, e os portugueses Alberto Pimenta, Jorge Sousa Braga (que se estreou na Fenda), Ernesto Sampaio, Manuel da Silva Ramos e Alface. Agora, e aproveitando a profusão de sentidos para os quais apontam as iniciais do seu nome – VS., desde logo “Versus” e “Varia scripta” – fala de uma editora “com saudades do futuro”. E bem consciente de que “daqui não virá a revolução”, e não é agora que já está nos 60 e começa sentir-se velho que lhe deu a vontade de se converter ao pragmatismo que nos vai impondo o “fascismo moral” dominante, não quer deixar de aventurar-se uma vez mais, e ir às trombas da “vaga tecnológica farisaica” que se abateu sobre nós.
Para abrir as hostilidades, lança dois títulos que, por si só, humilham catálogos inteiros padecendo da elefantíase que é o que se apanha andando atrás dos sucessos de estação. Regressa assim às livrarias um dos títulos mais marcantes da Fenda, “A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer”, de Stig Dagerman, a que se junta uma tradução que anda a ser trabalhada há mais de uma década, e que faz de Portugal um dos poucos países que passam a contar com a tradução integral dos “Aforismos” do satirista vienense Karl Kraus.
E é assim que, quando muitos já não contavam, quando vivemos de dia a dia ansiando por um pouquinho mais de respiração, quando os novos e os jovens são muitas vezes os primeiros a correr para o lado das mais espúrias novidades, dessa forma bastarda da cultura de massas que não passa de uma humilhante repetição, como denunciou Roland Barthes – “Sempre novos livros, novos programas, novos filmes, novos itens, mas sempre o mesmo significado” -, que vemos o passado recobrar forças, aqueles poucos mais velhos que já nos tinham dado quase tudo, e que assobiando por nós passam, abrindo uma vez mais “a trincheira resistente e risonha”, devolvendo a luz ao texto dos mestres, essas vozes com que o eterno nos vai chamando à alma e à fome da alma.
Um testemunho do editor da Fenda, Vasco Tavares dos Santos, e de António Fernando Cascais, um colaborador, sobre o início da aventura, na Coimbra dos anos 80
Naquele tempo, poderíamos afirmar que não deixávamos ninguém dizer que os vinte anos eram a mais bela idade da vida, se Paul Nizan já não o tivesse dito por nós. Mas vinte anos era mesmo o que tínhamos em Coimbra por onde víamos o resto do País, com algumas das inconsciências próprias da idade, mas decerto que com bem menos ilusões, e, nas mãos, a “Fenda Magazine Frenética”. Em 1979, tinham passado cinco anos sobre o 25 de Abril e também as euforias revolucionárias do início. Vivíamos na queda, no refluxo, num fim de festa que nem bem tinha sido a nossa, mas também não nos sentíamos integrados no que se estava a erguer sobre isso: a academia que afinal regressava àquilo que sempre tinha sido, a vida estudantil inteiramente capturada pela juventudes partidárias que à frente dos nossos olhos preparavam as gerações que nos trouxeram aonde agora sabemos que chegámos, a vida cívica devastada pelas máquinas de guerra partidárias a conquistar pela violência ideológica, administrativa, económica, toda a veleidade de iniciativa independente, política ou cultural. “Da miséria no meio estudantil e de alguns meios para a prevenir” era algo que fazia todo o sentido para nós, do café Tropical à Associação Académica, da Praça da República à Porta Férrea. Não se abriam para nós quaisquer perspectivas de intervenção no seio do folclore vazio de sentido por meio do qual se reactivava uma tradição académica e social realmente irrecuperável. Não tínhamos para onde ir.
A Fenda surge acima de tudo como uma maneira de estar, ou de ser, contra a loucura normal, mas sem o modo de estar próprio das tendências culturais, correntes literárias e comunidades poéticas já então impossíveis de recuperar. Nem a vanguarda, nem a sua posteridade, mas, claramente, uma posterioridade com o sentimento agudo de o ser: “Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; apenas a fenda entre ambas se torna erótica”, disso estávamos seguros. Eis porque nunca esteve nas intenções da Fenda constituir(-se) em cânone com o qual fazer cultura, fazer literatura, fazer política. O que também explica as várias singularidades da Fenda. Cada edição da revista desmente a ideia de série, é um acontecimento que vale por si. Muito antes de se falar na actual performatividade, a Fenda reinventa-se de cada vez, não se limita a ilustrar o contexto onde se produz, ela cria o seu próprio contexto. Inaugura-se de cada vez como ars vivendi que comporta a própria materialidade tipográfica.
A Fenda abalança-se inclusive à sua replicação na “Pravda”, na “Câncer” e no “Almanaque Fenda”: não quer estar onde querem que ela esteja. A “Pravda” talvez seja o que mais se aproxima de um manifesto político, embora a Fenda estivesse longe de ser destituída de conteúdos portadores de sentido político. Coimbra não foi a forja de nada porque o fogo já estava extinto, mas pela Fenda passaram autores-por-vir, obras-por-vir e tendências-por-vir. Nem por isso, a Fenda se deparava a sós nos anos de chumbo da década de oitenta: “A Ideia Anartista, Aresta”, “Camaleão”, “Cadernos do 40”, “Contraste”, “Decotes”, “Maldição”, “Pé de Cabra”, “Quatro Elementos”, “Última Geração”, “Vandoma”, “Zup”, “Zupcast”, incandesciam ao longo de um ou de vários números onde encontravam expressão “imensas minorias” de díspares vocações e propósitos.
A mais de três décadas de distância, o que vemos nas revistas dos anos oitenta é quanto de premonitório nelas se realizou no que agora somos.