O futebol é mesmo assim: volta e meia repete-se. Como a vida. Dia 26 de maio, pelas 19h45, em Kiev, na Ucrânia, Real Madrid e Liverpool vão repetir a final de dia 27 de maio de 1981, em Paris.
Se hoje os madrilenos surgem como favoritos, nesse tempo era ao contrário: toda a gente acreditava mais nos scousers.
“Scouser” é a forma como são conhecidas as gentes de Liverpool. A explicação mais comum é que o termo virá de “lobscouse”, uma espécie de guisado muito apreciado pelos marinheiros da região. Seja. Deixemos a culinária.
Os números à época eram ligeiramente menos impressionantes do que os de hoje. O Liverpool entrava na sua terceira final da Taça dos Campeões Europeus, como ainda era chamada. Ganhara as duas anteriores – ao Borussia de Mönchengladbach, em Roma (1977), e ao FC Brugge, em Wembley (1978). Entretanto ganhou mais três. O Real Madrid ia para a sua nona final dos campeões. Tinha seis no bornal – cinco seguidas, entre 1956 e 1960, conquistadas à custa de Stade de Reims (duas vezes), Fiorentina, Milan e Eintracht Frankfurt. Perdera uma para o Benfica e outra para o Inter de Milão. Agora procura a 13.a.
Ah! O tempo, esse grande escultor, diria Marguerite Yourcenar. Muito mudou entretanto no rodar universal dos dias que passam.
O Liverpool, treinado por Bob Paisley, tinha uma equipa fantástica. Repare-se no onze que alinhou na final do Parque dos Príncipes: Clemence; Phil Neal, Phil Thompson, Alan Hansen e Alan Kennedy; Ray Kennedy, Sammy Lee e Graemme Souness; David Johnson, Terry McDermott e Kenny Dalglish.
Respondia o Real Madrid com um conjunto muito espanhol: Agustín; Cortés, Navajas, Sabi e Camacho; Stielike, Del Bosque e De Los Santos; Juanito, Laurie Cunningham e Santillana. O treinador era o jugoslavo Vujadin Boskov.
Havia diferença evidente na qualidade. Mas qual é o jogo em que o real Real entra por baixo? Não faz parte da sua história orgulhosa e fidalga de grande de Espanha.
Até ao jogo decisivo, o Liverpool eliminara os finlandeses do Oulun Palloseura (1-1 fora e 10-1 em casa), os escoceses do Aberdeen (1-0 fora e 4-0 em casa), os búlgaros do CSKA de Sófia (5-1 em casa e 1-0 fora) e os alemães do Bayern de Munique (0-0 em casa e 1-1 fora).
Por seu lado, os madrilenos viram-se livres dos irlandeses do Limerick (2-1 fora e 5-1 em casa), dos húngaros do Honved (1-0 em casa e 2-0 fora), dos russos ainda soviéticos do Spartak Moscovo (0-0 fora e 2-0 em casa) e do Inter de Milão (2-0 em casa e 0-1 fora). Não se pode dizer que tenham sido caminhadas carregadas de escolhos, tirando as magníficas meias-finais, que juntaram quatro campeões europeus.
A final Não foi extraordinária, a final dessa Taça dos Campeões, apesar dos nomes que faziam brilhar Paris ainda mais, se isso é possível. O futebol europeu amarra-se por demais a táticas e a bitáticas e contratáticas, e o espetáculo era posto de lado perante a importância das vitórias. Aliás, há muito que as finais tinham deixado de ser extraordinárias. As três últimas tinham terminado com o resultado escasso de 1-0. Esta não seria exceção. Nem as duas seguintes. Um enjoo, convenhamos: seis finais da Taça dos Campeões consecutivamente marcadas por esse maldito 1-0. A gente fartava-se, mas não havia nada a fazer.
A vitória do Liverpool, apesar de curta, foi justíssima. Os ingleses impuseram-se ao adversário, atacaram mais e melhor, criaram oportunidades de golo e obrigaram Agustín a noite de trabalho extra. Logo aos 11 minutos já Alan Kennedy tinha atirado cá de longe, longe, um remate carregado de veneno que o guarda-redes espanhol defendeu como pôde. Afinava a pontaria…
O Real Madrid fechou-se nas suas tamanquinhas. Boskov confiava no talento dos seus avançados: Juanito (que morreu no dia 2 de abril de 1992 num acidente rodoviário); Santillana, um dos melhores cabeceadores da história do clube; e o inglês Laurie Cunningham (também ele vítima mortal de um acidente automóvel, perto de Madrid, no dia 15 de julho de 1989). Não chegou.
A pouco e pouco, o Liverpool foi-se tornando um vencedor inevitável.
A segunda parte acentuou as diferenças.
O alemão Stielike tornou-se uma espécie de terceiro central.
O torno inglês apertava-se em redor da resistência merengue.
A oito minutos do fim, Ray Kennedy, com a sua classe soberana, descobre Sammy Lee na esquerda. Sammy Lee parecia um barril. Entroncado, quase gordo, baixinho. Mas tinha uma energia absurda, inesgotável. Vê Alen Kennedy fugir na direção da grande área espanhola e mete-lhe a bola na frente. O perigo não parecia absolutamente iminente. Afinal, o outro Kennedy estava assim meio de esguelha para a baliza, sem ângulo. A melhor solução seria procurar um companheiro destacado no centro. Esteve-se nas tintas. Chutou. Forte. Entre o guarda-redes e o poste.
Braços ao céu. O céu de Paris…