Acabou a boa vontade incondicional em Pyongyang. O regime norte-coreano deu esta quarta-feira um passo atrás na caminhada para o apaziguamento depois de quase três meses passados em surpreendentes saltos para os braços dos inimigos.
A Coreia do Norte congelou inesperadamente os contactos com o Sul na terça-feira à noite e esta quarta declarou que o encontro de junho entre Kim Jong-un e Donald Trump pode não se realizar caso no entretanto não lhes sejam oferecidas concessões. Ao que tudo indica, o regime procura melhores cartas antes da cimeira de 12 de junho em Singapura.
A Casa Branca diz em privado que já esperava uma manobra do género e que, por enquanto, não tem razões para duvidar que o encontro histórico entre os dois líderes vai mesmo acontecer. Em todo o caso, trata-se de um aviso à navegação: as negociações serão difíceis e os norte-coreanos não viraram subitamente cordeiros.
O regime disse na noite de terça-feira que congelava indeterminadamente os contactos com o governo sul-coreano em retaliação contra os ensaios militares que arrancaram na semana passada. Tratam-se dos mesmos exercícios realizados com os Estados Unidos que duas vezes ao ano são um espinho no pé de Pyongyang.
Esta quarta-feira, todavia, o reino eremita foi mais adiante: afirmou que não só as reuniões com Seul estão interrompidas, mas que, graças a recentes comentários do novo conselheiro militar de Donald Trump, John Bolton, também a cimeira de líderes está em risco.
A memória líbia
Bolton defendeu recentemente na estação conservadora Fox News que a Coreia do Norte apenas deve receber concessões americanas caso se livre rapidamente do seu arsenal e programas nucleares e, além disso, defendeu que o deve fazer ao estilo da Líbia, um dos exemplos históricos que Pyongyang mais vezes recorda como motivo para se agarrar às bombas.
“Chamamos a atenção para as qualidades passadas de Bolton, e não escondemos o nosso sentimento de repugnância a seu respeito”, anunciou esta quarta o regime, sublinhando que Bolton foi uma das mais importantes roldanas da invasão americana do Iraque.
Mais relevantemente, a Coreia do Norte afirma que a sua promessa de desarmamento não acontecerá como querem os norte-americanos: será condicional e faseada, como já havia defendido Kim Jong-un na sua última visita à China, no início do mês.
“Se os Estados Unidos estão a tentar encurralar-nos e forçar-nos a um abandono nuclear unilateral, deixaremos de estar interessados no diálogo e não podemos evitar reconsiderar o caminho para a cimeira”, afirmou Kim Kye Gwan, ministro norte-coreano dos Negócios Estrangeiros.
Manobra
As duas justificações – retaliação contra os ensaios militares, por um lado, e resposta aos comentários de Bolton, pelo outro – sugerem álibis para reclamar um acordo melhor. Os diplomatas americanos afirmam que é habitual nos norte-coreanos mudarem bruscamente o tom das negociações – é uma tática conhecida, afirmam ao “New York Times”.
No entanto, Washington admite também que Kim pode estar a explorar o fosso entre as posturas mais agressivas e bondosas no governo. Muitos analistas consideram que em breve a Coreia do Norte regressará à boa vontade, uma vez que foi ela quem sugeriu o encontro em Singapura e não há benefícios evidentes em cancelá-lo agora – embora nas últimas semanas as trocas comerciais entre Pequim e Pyongyang tenham rejuvenescido.
“Estão a agir como tipos durões”, sugere Joel Wit, um dos responsáveis do Instituto Coreano da Universidade John Hopkins. “Tal e qual como quando Trump diz que abandonará o encontro caso não lhe agrade as negociações.”