Israel vence sempre. Em 70 anos não houve guerra que não tenha caído para o seu lado ou pressão internacional que tenha forçado a alguma coisa verdadeiramente indesejável. Os vizinhos árabes, e os palestinianos, mais que qualquer outro, sabem-no. Mesmo assim – aliás:exatamente devido a isso –, dezenas de milhares de palestinianos abandonaram as habitações insalubres de Gaza e foram para os baldios que fazem fronteira com Israel para protestar contra a ocupação dos seus territórios, a sua pobreza extrema e a embaixada americana que àquela hora da manhã era inaugurada com toda a serenidade e privilégio em Jerusalém. Não era suposto que segunda-feira fosse o dia de maiores protestos na semana. Na terça, afinal de contas, celebrava-se o Nakba, ‘a catástrofe’, o início das grandes expulsões e êxodo de palestinianos dos territórios entregues a Israel, em 1948. Odia, todavia, terminou como o mais sangrento em quatro anos de violência em Gaza. Para perturbação do mundo e de praticamente ninguém do outro lado da vedação. Israel vence sempre.
Sessenta pessoas foram abatidas a tiro na segunda, sobretudo pelos atiradores furtivos israelitas. Algumas pessoas foram alvejadas nas costas, outras atingidas na cabeça, nas pernas ou no abdómen. Os feridos mais graves foram enviados para o Egito. Muitos não sobreviveram. Dezenas de pessoas encontram-se ainda hoje no hospital com balas alojadas no corpo. Leila, que era bebé, tinha oito meses e uma malformação congénita no coração, morreu asfixiada com o gás lacrimogéneo disparado ao longo do dia contra as multidões. Outras pessoas morreram em bombardeamentos israelitas contra alegadas instalações do Hamas, o grupo armado islamista que governa a Faixa de Gaza desde 2006 e que em Telavive serve como álibi para toda a repressão. Nenhum palestiniano cruzou as vedações de arame que prometiam derrubar. Nenhum soldado israelita foi alvejado. Um ficou ligeiramente ferido com uma pedra. Algumas colheitas pegaram fogo com os papagaios de papel improvisados com pequenos explosivos ou material em chamas. Telavive, sob condenação internacional quase unânime, justificou-se dizendo que a vedação é território proibido e que o Hamas preparava um ataque com armas de fogo. Washington aplaudiu. «Nenhum outro país demonstraria tanta contenção», lançou Nikki Haley, a embaixadora dos EUA na ONU, vetando uma investigação internacional à matança.
O Comité das Nações Unidas para os Direitos Humanos não se convence e ontem defendeu uma investigação internacional aos disparos de segunda-feira. Israel reagiu dizendo que o comité, ao qual não pertence, apenas quer «demonizar o Estado judaico» e negar-lhe o direito a proteger-se. Todavia, o alto comissário e príncipe jordano Zeid bin Ra’ad, afirmou ontem que a investigação não quer negar o direito israelita a defender-se contra ataques do Hamas, por exemplo, que em 12 anos de poder disparou centenas de rockets contra zonas residenciais em Israel, mas de investigar a mais comum acusação contra os militares de Telavive:contra uma pedra, um dos mais avançados exércitos no mundo não pode responder com uma bala na cabeça. «Apesar de alguns manifestantes terem lançado cocktails Molotov, usado fisgas para atirar pedras, lançado papagaios de papel em chamas e usado alicates para cortar as duas vedações entre Gaza e Israel, estas ações não constituem qualquer ameaça eminente à vida, ou de ferimentos mortais, à qual se justifique responder com força letal», disse Ra’ad. Em seguida, atirou: «Israel, que, sob a lei internacional, é uma força ocupante, está obrigada a proteger a população de Gaza e assegurar o seu bem estar. Mas [os habitantes] estão essencialmente aprisionados num bairro de lata tóxico desde o nascimento até à morte; desprovidos de dignidade; desumanizados pelas autoridades israelitas, ao ponto de os responsáveis nem sequer considerarem que estes homens e mulheres têm o direito, assim como todos os motivos, a manifestar-se.»
Protesto e silêncio
Ra’ad tem muitos obstáculos à frente. EUA e Austrália votaram contra a investigação internacional. O Reino Unido, um dos mais destacados críticos ao longo da semana, absteve-se. A matança de segunda-feira, de resto, é somente o episódio mais violento das últimas sete semanas de protestos palestinianos na Faixa de Gaza. Desde o dia 30 de março, mais de cem pessoas foram abatidas pelas forças israelitas. Protestam para reavivar a memória da comunidade internacional e dos próprios países árabes e muçulmanos que na região se vêm aproximando comercialmente de Israel e abandonando gradualmente a causa palestiniana. A Arábia Saudita modera a resposta a Telavive para preservar os recentes laços económicos. E o Egito, em crise de segurança e financeira, cortou na ajuda ao Hamas e fechou grande parte da fronteira. Gaza, para além disso, continua em guerra e sob castigo da Autoridade Palestiniana, que é ainda quem lhe paga as duas horas de eletricidade que tem por dia.
Reagindo à repressão violenta desta semana, vários cônsules israelitas foram convocados em diversos países, mas só Turquia e a África do Sul expulsaram os seus embaixadores. Na terça-feira, porém, dia do Nakba e dos enterros, não se repetiram as grandes manifestações e o rebuliço internacional contra Israel já se parecia reduzir a um lume brando e sem esperança. Afinal de contas, o Governo ultranacionalista de Benjamin Netanyahu atravessa o momento de maior impunidade internacional sob a proteção de Donald Trump. Interiormente, poucos israelitas fizeram registo dos 60 mortos na Faixa de Gaza, como escreve o colunista Gideo Levy, no Haaretz. «Na noite do massacre dos palestinianos, Sião celebrava e estava jubilante. Tínhamos uma embaixada e uma Eurovisão. É difícil imaginar um eclipse moral mais atroz.»