Philip Roth. Morreu o último dos descendentes de Caim

Desaparece, aos 85 anos, o último dos grandes sem-vergonha, dos impudicos, brancos, machos que dominaram a literatura norte-americana na segunda metade do século XX

Se tivesse morrido de um seco ponto final, não nos pareceria inapropriado. Mas a morte de Philip Roth, na noite de terça-feira, aos 85 anos, cifra-se melhor numas reticências. Senão, veja-se essa nota que nos deixa ainda a soar este portentoso escritor, como se um dedo tivesse ficado de fora da manga da morte, tocando uma última ironia enquanto o fantasma sai de cena. Pois é justamente no ano em que o Nobel da Literatura não será entregue que morre o mais eterno dos seus candidatos. E para levarmos isto às últimas consequências, regozijemo-nos imaginando como Roth teria captado, como mais ninguém, as nuances da sórdida trama que fez os membros da Academia Sueca descerem aos tombos da torre de marfim para acabar de vez com a grande farsa da respeitabilidade.

Foi, de resto, este traço decisivo da sua arte que o “The Guardian” celebrou no seu obituário, falando de um romancista capaz de desdobrar a condição humana de forma pungente, e que levou às últimas consequências o seu projeto de emancipar a literatura norte-americana da tal respeitabilidade. Um virtuoso das suas obsessões, Roth não deve o estatuto de ícone a uma ampla gama temática, mas a descer sempre mais um degrau nas escadas de si mesmo. Nas múltiplas gradações do negro, o seu humor é aquele que se esperaria de um psicanalista brandindo um bisturi, e que resolvesse operar-se a si mesmo. Um mestre nesse tão judaico atributo da auto-deprecação, arrasta o leitor para labirintos de introspeção, preferindo o escuro como meio de produzir iluminação. A sua biógrafa, Claudia Roth Pierpont, resumiu assim os temas centrais da sua obra: “A família judaica, o sexo, os ideais americanos, a traição destes, o fanatismo político, a identidade pessoal e ainda o corpo humano (normalmente masculino) do vigor e da virilidade à debilidade e fraqueza, explorando tantas vezes a sua patética carência”.

Roth morreu de insuficiência cardíaca congestiva num hospital de Manhattan, rodeado de amigos. Deixa um variadíssimo legado literário que, ao longo de quase seis décadas, e para lá dos romances, se estende ainda por uma série de ensaios, intervenções críticas e outros artefactos, gozando de intensa admiração da parte da crítica desde que, na década de 1960, se projetou para o pináculo da cena literária, juntando-se a Saul Bellow e Bernard Malamud, no que ficou conhecido como a troika judaica norte-americana. Mas Roth sempre desconfiou deste género de rótulos, e repetia que o epíteto de escritor judeu-americano não lhe dizia nada, vincando: “Se não sou um americano, não sou nada.”

Demarcando-se das estratégias solventes da consagração, da espalhafatosa sensaboria com que, actualmente, tantos escritores se deixam transformar em síndromas, exemplos de patologias perfeitamente identificadas, e que dão cor à montra da república mundial das letras, Roth revelou sempre alguma incomodidade na relação com a crítica. “Eu escrevo ficção, e dizem-me que é autobiográfico. Então escrevo autobiografia, mas aí vêm dizer que é ficção. Assim, e uma vez que eu sou tão fraco do juízo e eles são tão espertos, eles que decidam.” O “Guardian” citava esta declaração para ilustrar a postura entre o defensivo e o agressivo, que se tornou uma das marcas de Roth na relação com a crítica, e que revela, no fundo, as suspeitas de que o verdadeiro propósito desta não é outro que acorrentar Prometeu.

A atitude cínica neste romancista que, apesar de estar traduzido e publicado em tudo o que é país civilizado, só uma vez na sua carreira teve um título na lista dos best sellers – quando “O Complexo de Portnoy” (1969) vendeu 420 mil exemplares nas primeiras dez semanas após a publicação -, justifica-se se se levar em conta que foi catapultado para o centro de um culto que tem muito de snobeira. Viu-se alvo, assim, nas últimas décadas, do amor incondicional do género de aspirantes a grandes escritores que esperam ainda vingar confundindo tentação umbiguista com talento literário. É inegável, no entanto, que Roth mereceu também a atenção crítica e a aclamação de alguns dos mais sagazes intérpretes do seu tempo. É o caso de James Wood, que quando este anunciou em 2013, aos 78 anos, que não voltaria a escrever outra linha – “Sabia que não iria ter outra ideia boa”, disse ao New York Times, “sei que não vou escrever tão bem como escrevia. Não tenho a energia para aguentar a frustração. Escrever é frustração” – confessou que Roth era o seu herói literário.

Deixando clara a fronteira que vai de Roth àqueles que, da leitura dos seus romances, faziam gala, Wood referia que “de todos os romancistas contemporâneos, é ele o que fez a escrita parecer um acto necessário e contínuo, inextricável das ligações e conflitos de se estar vivo.” E acrescenta ainda: “Para Roth, a narração e o ‘eu’ parecem ter nascido juntos; e, assim sendo, terão de morrer juntos também. Mais do que qualquer outro romancista moderno, ele usou a ficção como confissão e o deslocamento da confissão: as suas diatribes, queixas e alter egos, de Portnoy a Zuckerman passando por Mickey Sabbath todos são puro Roth, mesmo quando estão ali meramente como seus substitutos.”

Aquando da edição portuguesa de “O Fantasma Sai de Cena”, em 2008, Rogério Casanova, o mais elegante, humorado e bem lido dos críticos literários portugueses no que à literatura “kosher” diz respeito (e essa era só uma das secções gourmet onde o crítico zanzava de patins, relacionando o género de produtos de importação que deixam estarrecidos os nativos deste bárbaro idioma), fez uma admirável e bastante conclusiva autópsia do romancista: “Nesta intersecção entre ficção e autobiografia, Roth sempre foi o mais hiperativo dos sinaleiros. Mas, mesmo nos cumes mais pedagógicos e auto-referenciais da sua metaficção, a arte era redimida pela força trepidante da sua prosa, pela histeria controlada da sua comédia, e pelas vastas energias usadas em atos de reação (contra o que quer que fosse, mas normalmente contra heranças identitárias e mulheres doidas). Os últimos livros trouxeram um apertar do cinto. A linguagem já não assume a mesma exuberância polifónica, e Roth parece ter consagrado formalmente o seu ascetismo, descartando a amplitude egocêntrica.”

E se aqui podíamos tomar o volante, fazendo o resto do caminho por meio da paráfrase, para quê fazê-lo se podemos ser conduzidos até ao destino por alguém que, não só conhece o intricado destas ruas como controla as variações de tráfego melhor que ninguém? Voltando a Roth, por via de Casanova: “A sua voz mudou porque os alvos também mudaram. O adversário deixou de ser a tradição tribal e passou a ser a biologia. Algures entre “The Counterlife” (1987) e “Patrimony” (1991), Roth descobriu que morrer é uma chatice, sem que a sua obra tenha decrescido em qualidade; mas a conclusão de que morrer é uma chatice inevitável parece ter convertido as energias reativas de outrora num mecanismo neutro: um relógio de cuco que continua marcar o ponto, com pontualidade, sem eloquência.” Assim, o crítico conclui: “Os fantasmas de Roth nunca eram exorcizados; mas eram confrontados e virados do avesso. Agora são educadamente convidados a sair, e a mostrar o caminho.”

Foi pelos 60, nessa idade em que o alfaiate da morte começa a espiar-nos, tirando as medidas mentalmente, para fazer a gestão do stock, que o romancista surpreendeu os leitores, mostrando que ainda tinha mais uma velocidade na caixa de mudanças. E é então que leva a um outro nível o seu compromisso de reflectir sobre a América, publicando uma sequência de romances históricos – “Pastoral Americana”, “A Mancha Humana” e “Casei Com um Comunista” – que fizeram dele essa figura incontornável, ou, como assinala o “The New York Times”, “o último dos grandes homens e brancos – com Bellow e John Updike – que dominaram as letras americanas na segunda metade do século XX”.

A questão da virilidade, e da relação entre a escrita e a exploração da sua sexualidade, provou ser particularmente relevante num escritor que, não só sobreviveu aos seus pares, como, além de ter escrito mais romances do que qualquer deles – sendo que, a partir de “Everyman” (2006), quando tinha 73 anos, manteve um ritmo implacável publicando um livro por ano -, foi prolífico a um ponto em que só depois de ter anunciado que não voltaria a escrever ficção autorizou os seus leitores a não esperarem mais dele o inesperado.

Sobre a sua escrita, o caráter de compulsão e urgência que a diferencia, a tensão que vai segurando enquanto convida o leitor a meter-se nos piores lençóis, num campo terrivelmente pessoal, e onde arrisca ver-se espelhado num dos muitos cacos de vidro que ficam à passagem destas versões de Roth, disse, comparando-se com Updike e Bellow, que a diferença era que, ao passo que eles se serviam das suas lanternas apontando-as às fuças do mundo” revelando-o como ele é, já o seu método era bastante diferente: “Eu escavo um buraco e aponto a minha lanterna para esse buraco”. Se é uma obra irrecusável, isso deve-se também à disponibilidade de Roth para fracassar redondamente, desiludir todas as expectativas, sendo um desses autores em que há romances geniais partilhando o tempo e as referências com empecilhos literários. Mas se, no fim, uma relação duradoura com Roth compensa, apesar dos abusos, das páginas seguidas de divagações um tanto desconexas, da quantidade de momentos e pensamentos íntimos que preferíamos não ter partilhado, ele tem essas outras alturas em que caça uma experiência com um tal ímpeto que mesmo a chinfrineira da presa nos delicia. Levando o limite o risco, consegue criar momentos que nos dominam na sua pura hilaridade, e precisamente por estarmos tão envolvidos que não deixaremos de os recordar como se de algum modo tivesse acontecido connosco.

Quanto a ter-lhe escapado o Nobel, no caso de Roth mais valeu que assim fosse. Ao contrário do nosso Lobo Antunes, que vai sendo chutado como uma lata, deste para o próximo ano, e depois para o outro, sendo certo que a mesquinhez nele convive paredes meias com o génio e será uma verdadeira injustiça se a Academia Sueca não puser fim à miséria da sua espera, no caso de Roth foi muito mais recompensador surgir, a cada ano, no topo das apostas, ser tantas vezes falado a propósito do Nobel, mais do que qualquer dos galardoados que foram ficando pelo caminho. E, de resto, não tendo ganhado o prémio para o qual sempre se fazem outras contas que não aquelas que interessam estritamente à literatura, a fartazana no que toca a outros grandes prémios deu para que Roth se servisse deles como separadores para os livros que tinha nas estantes: dois National Book Awards, dois National Book Critics Circle awards, três PEN/Faulkner Awards, um Pulitzer Prize e um Man Booker International Prize.

Logo com o primeiro livro, “Adeus, Columbus” (1959), Roth venceu um National Book Award, mas as vendas não impressionavam, tendo-se ficado por 12 mil exemplares. Nesses primeiros tempos, o aspeto provocador da sua escrita causou inquietação entre os leitores judeus, que reagiram mal à forma como escalpelizou jocosamente tantos dos aspetos da vida e do credo desta comunidade. Mais tarde, e muitas vezes até contra a sua vontade, era muitas vezes solicitado no sentido de escrever sobre a questão da identidade judaica, o anti-semitismo e a experiência de ser judeu na América. Mas se regressou muitas vezes, e particularmente nos últimos livros, ao bairro em que cresceu em Newark, uma espécie de Éden que se esvaneceu, e se as suas raízes marcaram decisivamente um ângulo a partir da qual encarava o mundo, a religião dos seus pais (como outra qualquer) nunca lhe inspirou nem reverência nem a menor complacência. Numa entrevista a Terry Gross, em 2006, ao ser questionado quanto às suas crenças religiosas disse que “o delírio não apelava ao seu paladar”, e que também não buscava na vida qualquer tipo de consolação espiritual. Assim, a comunidade judaica, habituada a ver surgir no seu seio aqueles que acabam por representar para ela maiores ameaças, tinha de engolir o facto de um dos seus filhos ser um desses geniais desordeiros que, envergonhando a casa onde nasceram, não deixam, no fim, de fazer o seu prestígio.