O debate da eutanásia, que prometia ser efusivo e renhido, foi na verdade só renhido. Ontem os deputados foram chamados, um a um, a votar os quatro projetos de lei que previam a despenalização da eutanásia. Todos os projetos foram recusados.
Apesar de a liberdade de voto dada aos deputados por se tratar de um assunto de consciência permitir levantar a hipótese de algum dos projetos poderem vir a ser aprovados, no final das contas, foi o projeto socialista o que esteve mais perto de o conseguir. Entre os quatro apresentados e postos a votação, o do PAN foi quem reuniu mais abstenções (ver tabela).
Já se sabia de antemão que alguns deputados não iriam votar em conformidade com a sua bancada, como era o caso do socialista Ascenso Simões que votou contra todos os projetos. A surpresa veio de outro deputado do PS, Miranda Calha, que acabou também por votar contra todos os projetos, incluindo o do seu próprio partido. “Eu não fiz propaganda da minha posição”, disse ao i o deputado, que é um dos mais antigos do parlamento, argumentando que votou em conformidade com a sua opinião pessoal. Não querendo tecer grandes considerações sobre a matéria, sempre afirmou que a questão principal é a eutanásia em si e não qualquer um dos projetos.
Do PSD, só Paula Teixeira da Cruz e Teresa Leal Coelho votaram favoravelmente todos os projetos. “Votei a favor, considerando que com esta legislação cada um pode escolher”, disse ao i Teresa Leal Coelho, acrescentando que a liberdade é “o valor crucial nesta matéria”. Paula Teixeira da Cruz já havia anunciado a sua posição favorável aos projetos e diz ter ficado “desiludida” com o resultado final. “Para quem encara o direito à boa morte como um direito, dentro de um percurso que é a vida, cujo último passo é a morte, naturalmente que fiquei desiludida porque é menos um direito, é menos uma liberdade”, explicou a ex-ministra ao i.
“Sabemos que muitas vezes não é na primeira votação que estas conquistas se fazem”, disse Catarina Martins aos jornalistas no final das votações, garantindo que “o Bloco de Esquerda voltará seguramente a este tema”, mas sem avançar uma nova data, apenas dizendo que com esta votação ficou expressa a maioria existente no hemiciclo.
A garantia de voltar ao assunto da eutanásia também foi dada ao i pela líder d’Os Verdes, Heloísa Apolónia. “Certamente voltaremos a reapresentar [o projeto], não sabemos quando. Isso é uma ponderação que teremos de fazer muito provavelmente nesta legislatura poderá já não haver condições, tendo em conta a votação que já foi feita para essa reapreciação”, explicou a deputada. Um dos argumentos que o PEV tem vindo a defender, e reiterou durante as suas intervenções no debate, é que este assunto deveria ter sido feito apenas em setembro. “Havia mais possibilidade de se ter ponderado, discutido, refletido sobre as propostas que estavam em cima da mesa”, disse Heloísa Apolónia criticando a “desinformação” existente sobre o que realmente constava nos projetos.
Por outro lado, Assunção Cristas, que sempre anunciou o voto contra do CDS, mostrou-se alegre com esta votação. “Entendemos que este foi um sinal de grande maturidade democrática do parlamento”, disse a líder centrista aos jornalistas. Todos os deputados do CDS votaram em conformidade com o voto anunciado pela líder, ou seja, contra, assim como os deputados do PCP que votaram também contra os quatro projetos.
Um debate calmo Por todas as divergências de opinião que tinham feito correr tinta nos últimos dias, esperava-se um debate mais aceso entre os deputados. No entanto a limitação de tempo quer do CDS, quer do PCP – que tinham apenas 11 e dez minutos, respetivamente, em comparação com os 27 minutos atribuídos individualmente ao PS, BE e PEV por terem entregue projetos e ao PSD por ser o partido com mais deputados – fez com que não houvesse muitos pedidos de esclarecimento. Tanto o CDS como o PCP preferiram utilizar o seu tempo na intervenção final onde reforçaram a sua opinião contra. O papel de contrapor as propostas foi de Rubina Berardo, deputada do PSD.
Foi preciso chegar à intervenção de António Filipe, do PCP, para que o debate se tornasse mais aceso. O deputado comunista considerou “inaceitável” que “o mesmo Estado que não garante aos seus cidadãos as condições para um fim de vida digno, lhes garanta condições para pôr termo à vida em nome da dignidade”, acrescentando que “a vida humana não é digna apenas enquanto pode ser vivida no uso pleno das capacidades e faculdades físicas e mentais”. António Filipe argumentou ainda que o “capitalismo encarrega-se” de alterar o rigor do acesso à eutanásia para a tornar rentável.
“A nossa diferença não é sobre o negócio, porque já pode haver negócio sobre todos os atos médicos, inclusive nos cuidados paliativos. A nossa diferença é sobre a escolha política”, respondeu Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda.
Até aí, os argumentos do sim prenderam-se com a liberdade individual dos doentes – com José Manuel Pureza a acusar os partidos contra de quererem “tornar [os cidadãos] prisioneiros de uma vida biológica que espezinha a vida biográfica” –, com a errada criminalização de um “ato de bondade” – defendido por André Silva do PAN ao dizer que “ser-se contra a despenalização da eutanásia é continuar a defender que um ato de bondade é um ato punível” –, que é um tema “incontornável há vários anos” – como disse Maria Antónia Almeida Santos, do PS – ou que não se iria “retirar um cêntimo que seja aos cuidados paliativos” – como disse Heloísa Apolónia.
Por outro lado, o CDS contrapôs à ideia de liberdade individual que ao estarem envolvidos terceiros na decisão, seja médicos, enfermeiros ou até a comissão que autoriza o pedido, são estes “quem vai decidir sobre um qualquer pedido e quem executa a morte”, pondo em causa os “mais vulneráveis”. “Porquê votar más leis, com tantos riscos e dúvidas, e ainda por cima sem mandato dos eleitores, que estão de certa forma a ser atraiçoados?”, questionou Isabel Galriça Neto. Um argumento também defendido por Fernando Negrão, líder da bancada do PSD, ao dizer que “em matérias da dimensão” da eutanásia, “não podemos, nem devemos, apanhar os portugueses de surpresa”.