Também os putos envelhecem. Os mais irredentos, se não perdem o cabelo, não escapam às cãs. Nem se safam de todos os remendos que o tempo nos faz, de se verem recosidos, e, por muito que puxem e sintam tensa a trela que agarra a besta da infância, a ânsia tosca do explorador ganha uma finura de arqueólogo no campo do fantástico. João Fazenda está bom para exemplo, pelo ar de puto crescido. E ainda que o seu cromo não ande por aí ao desbarato, aos 39 anos não há coleção portuguesa no campo da ilustração que esteja completa sem ele.
Leva já duas décadas a refazer os naipes do baralho entre as fronteiras tão instáveis dos territórios da ilustração, do desenho, da banda desenhada e do cinema de animação. Com um talento para espantar a sisudez das figuras, a marca distintiva da sua obra é precisamente a fluidez do seu corte entre registos. Misturando influências, dobra os cantos, e mostra-se treinado nos muitos nós que a sua porosa arte permite como um caçador de tempestades em mar alto.
No momento em que é o artista convidado da 4.ª edição da Festa da Ilustração – a decorrer até 30 de junho em vários espaços de Setúbal, da Casa da Cultura à Casa Bocage, do Museu do Trabalho Michel Giacometti à Galeria Municipal do Banco de Portugal -, ocupando a maior parte das salas da Casa da Cultura, com a ampla mostra a que deu o título de “Bricolage”, tudo isto nos pareceu um bom motivo para irmos falar com João Fazenda ao ateliê que divide com outras artistas e projetos no centro da capital.
Para começo de conversa, o ilustrador vinca que a exposição que está agora patente não pretende ser uma retrospetiva. Mas o destaque que lhe foi dado no âmbito do evento organizado pela Câmara Municipal de Setúbal obrigou-o a arranjar inquilinos para um espaço generoso, e, por isso, foi obrigado a passar vistoria no muito que deixou para trás. Assim, dividiu em quatro blocos a sua produção. A primeira parte chama-se Palco e reúne trabalhos em que foi ao encontro dos espaços do teatro, seja de volta da ideia de cenografia, seja da representação cénica de ações ou figuras, atores, etc. E Fazenda reconhece como a sua arte nunca andou longe de um conceito de encenação, o que é evidente no modo como toma o pulso da agitação do mundo contemporâneo, das suas cidades, onde o caos encontrou um jeito de valsar ao som de um ruído no qual antenas mais sensíveis conseguem desfiar aspetos melódicos.
É bem o caso deste ilustrador, que em 2015 ganhou o Prémio Nacional de Ilustração pelo livro “Dança” (edição Pato Lógico). Esse álbum é um singular monumento bem no centro dos jardins com que Fazenda devolve ao mundo o seu “enxame de reflexos”. Nas cores vivíssimas deste álbum que se abre e desfila para nós um baile em que um homem, ao longo das páginas, vai deixar as linhas retas pela graça ventosa que desatina as linhas de um cortinado, podemos ir buscar uma metáfora do discreto encantamento que lança a visão deste autor, numa crítica tão delicada que não maça nem constrange, antes segreda, sussurra. É uma arte que congemina a música a partir do uso voluptuoso da cor e das linhas. No fim da história aquele homem não só perdeu a triste gravidade da vida rotineira, mas, descolando do chão, adquiriu essa leveza de quem se deixa contagiar pela paixão. Neste caso, a da dança.
Passamos ao segundo bloco. Aqui aglomeram-se trabalhos mais pessoais: as bandas desenhadas, uma série sobre cidades, e a forma como nestas se acham zonas de intimidade, como os momentos quotidianos se deixam desembrulhar e saltam fora da sua aparente vulgaridade e repetição. Há, depois, uma sala mais pequena que ficou reservada para uma das séries mais conhecidas de João Fazenda: as ilustrações que acompanham e dialogam com a crónica semanal de Ricardo Araújo Pereira na “Visão”, “Boca do Inferno”. Remonta já a 2005 esta frutuosa colaboração. E a propósito do trabalho que, ao longo dos anos, vem desenvolvendo para a imprensa, Fazenda diz que é raro ter a hipótese de ler um texto acabado. Coisa que, de resto, nem o inquieta. Prefere mesmo ter só uma ideia, não se prender demasiado ao texto ou à narrativa, ficando ali a servir de redundância visual.
Numa achega a esta relação independente que mantém com os textos, adianta que é dessa liberdade que arranca a pregnância do diálogo. Foge de toda a repetição. Por outro lado, refere que não é tanto um cabeça no ar, a tentar colher sugestões nalguma brisa, mas precisa baixar alguma coisa no papel para saber com que linhas se vai coser o novo golpe. “Preciso de começar a desenhar para ter ideias. Não consigo ter uma ideia imediata, ou pensar muito e só começar a desenhar quando já tenho uma noção concreta. Penso a desenhar. Começo a fazer esboços, e o processo umas vezes é mais rápido, outras doloroso e longo.”
Gosta de tratar aqueles que chegam aos seus trabalhos como “leitores”, e dos mais informados, cultos, exigentes. Não se dá margem para qualquer condescendência, e busca seduzir da primeira vista à última, superando a incapacidade da atenção para se focar numa coisa e ir além da superfície, ler as camadas que a sustentam.
Quanto à crise da imprensa, Fazenda assume que daí hoje quase não chegam propostas. A fonte secou. E se em tempos colaborou em títulos nacionais como os jornais “Público” e “Independente”, ou a revista “Ler”, hoje já não há dinheiro para muito mais do que bater uma chapa. E quando aparecem os desenhitos nessas páginas (isto dizemos nós), são normalmente as caricaturas mais inofensivas, em que os traços exageram o que está fácil de arrancar da superfície, abusando só do que está à vista de todos. Uma falta de graveto que se sente igual nas impressões que seguem em letra de forma, e que baixam a escrito o que se ouve pelos altifalantes que berram as promoções nestas cidades-hiper-mercado.
Fazenda fala de uma mudança de paradigma. “Os ilustradores, hoje, ou estão a fazer livros, ou exposições ou outros trabalhos”, nota. E se a imprensa já foi o seu principal ganha pão, resta-lhe hoje a esporádica colaboração com umas publicações estrangeiras como o “The New York Times”, “The Telegraph e “The New Yorker”. O ilustrador português reconhece a sua condição privilegiada por ter aparecido antes de a maré ter mudado. Contudo, reconhece que, por aquela torneira hoje estar reduzida a um pinga-pinga, isso levou a que a ilustração para imprensa se tornasse apenas uma faceta do seu trabalho de ilustrador. “De lá para cá, também fui obrigado a diversificar.”
E se tanto mudou no universo da ilustração, muito “por causa das redes sociais, e devido à falta de oferta de trabalho mais convencional (além da imprensa, também a publicidade), este momento de transição tem obrigado os artistas a inventar o espaço para que as coisas possam acontecer”.
Um otimista cauteloso, Fazenda reforça que se o ilustrador hoje é obrigado a fazer um pouco de tudo, isso também lhe serve de impulso para lançar novas pontes e caminhos, desbravar terrenos incultos, meter-se pelos baldios. E os ilustradores parecem estar a reagir à altura. “Há muita coisa a ser feita, em muitos suportes diferentes”, garante Fazenda.
Quanto à última sala, esta é um pequeno museu de ensaios, muitas janelas e portas abertas ao que ainda há de vir. Ali se encontram as edições de autor, os “desenhos de linha”, uma série de linhas de fuga que não têm uma arrumação possível, mas várias, e que traçam ligações com o resto do trabalho que vem fazendo.
É fazendo que se vai, porque são os caminhos, reconhece o ilustrador, pelos quais se foi alargando, que lhe deram eco, esboçando o seu retrato em movimento: “ontem e hoje/ confundidos, o visto enlaçado ao entrevisto, invenções/ da memória, lacunas da razão;// encontros, despedidas, fantasmas dos olhos, encarnações/ do tato, presenças não chamadas, sementes de tempo:/ destempos.” (Isto é de Octavio Paz, chegado para esta língua pelo poeta brasileiro Nelson Ascher).
Quanto a estratégias, Fazenda diz que não segue nenhuma outra além da imprescindível: “Tento manter-me atento e curioso”. Nunca se deixou convencer de que está já tudo feito. É desses que sabem bem como a brutal imperfeição do mundo é um convite irrecusável à criação. E se lhe pedimos que diga mais sobre o seu método, diz que gosta de chegar “de forma natural às coisas, sem forçar, nem se preocupar muito com a ideia de que tudo possa acabar amanhã”. Faz experiências, volta ao quarto, confia no puto, aquele que ficou conhecido ainda antes da viragem do milénio com a série de BD “Loverboy”, que tinha argumento de Marte.
Quer voltar à banda desenhada. Desta vez, também se vê a escrever ele mesmo as histórias. Quer procurar novas formas, formatos diferentes. Sabe que, apesar de se ter tornado um lugar-comum dizer que o futuro passa pela animação, e que os desenhos parecem ter eles mesmos fome de movimento, encara tudo isso como a extensão natural do desenho e da ilustração que tem praticado. Como uma bússola, para orientar-se, é evidente que João Fazenda segurou muito bem o seu “estilo”, a sua maneira de lidar com “a desordem estuporada da vida”, traçando um contorno em volta, sem apertar, como se a realidade fosse e viesse, saltasse à corda com a linha que lhe lança.