Foi um dos momentos mais vergonhosos da história de todos os mundiais, mas a vergonha só veio depois.
Primeiro houve a alegria esfusiante dos feneques, os jogadores argelinos.
A mesma Argélia que entra hoje em campo no Estádio da Luz para enfrentar Portugal no último preparo antes de se iniciar o Campeonato do Mundo.
Claro que a mesma Argélia não significa a mesmíssima Argélia. Essa Argélia que trago aqui, vinda dos corredores às vezes estreitos da memória, tinha talento. O talento de Belloumi, o mágico, e de Rabat Madjer, hoje no banco da sua seleção, tão pouco querido, tão depreciado, com uma demissão aos ombros, embora aposte ainda na sua resiliência.
16 de junho de 1982. Gijón. Estádio El Molinon. Jogo de abertura do Grupo 2, que continha Alemanha, Argélia, Áustria e Chile, quase parecendo que o sorteio dera preferência à ordem alfabética.
Jupp Derwal, o selecionador alemão, foi de uma arrogância bem germânica: “Se perder este jogo, atiro-me ao Mediterrâneo.”
O Mediterrâneo pode entrar pelas costas da Argélia, mas ali era o golfo da Biscaia.
A Alemanha perdeu e Derwal também.
Foi uma derrota tão dura que talvez tenha feito o treinador perder a memória. O Mediterrâneo ficou sem um banhista.
Quarenta e dois mil espetadores assistiram ao escândalo. Muitos com um aceitável ar de gozo.
A Alemanha ainda Ocidental, ou Federal para quem preferir, lançou-se naturalmente numa toada de ataque sem grandes cuidados defensivos. Era esse o seu estilo.
Já o estilo da Argélia era…
Bem, era como Ali Fergani, o seu central, descrevia: “Jogamos um futebol nunca antes visto – uma mistura de estilo alemão com italiano e sul-americano.”
Não lhe faltava vaidade, convenhamos.
Ao intervalo: zero a zero.
Depois, o selecionador argelino, Rachid Mekhloufi, resolveu arriscar. Deixou de ser mais italiano para ser mais alemão/sul–americano, para usar as palavras de Fergani.
Um Zidane, talvez parente de Zinédine, de primeiro nome Djamel fez um passe maravilhoso para Belloumi. Belloumi tinha uns pés soberbos, mas nunca jogou fora do seu país. O remate é desviado por Schumacher, mas Madjer aproveita o ressalto: 1-0! Com ponto de exclamação. Aos 54 minutos.
Os argelinos pareciam raposas em redor de uma capoeira fervilhante: Raposas do Deserto, chamavam-lhes.
O choque A Alemanha saltou para a frente como que impulsionada por uma mola. De um momento para o outro, era só ataque. Rummenigge recebe um centro de Magath e empata. Não houve quem não ficasse convencido de que se tratava do fim do atrevimento dos africanos. Um convencimento precipitado, contudo.
No minuto seguinte, o 68.o do encontro, é a vez de Belloumi não falhar. Recebeu um centro de Salah Assad e provocou um choque em toda a Alemanha. Pelo menos, a Federal. Às vezes, na Democrática existiam assuntos mal resolvidos que faziam com que houvesse gente a querer a derrota dos seus irmãos ocidentais. Coisas que o tempo desfez, como se sabe. Mas que, em 1974, provocaram o delírio quando a RDA bateu a RFA (1-0) no Mundial.
Se esse jogo foi chocante, este não ficaria atrás. Choque é a palavra correta. Assim uma espécie de atordoamento.
Mas, depois, veio à superfície a lendária teimosia dos nibelungos. Os alemães dedicaram-se afanosamente à tentativa de recuperarem o seu orgulho ferido e a darem a volta ao marcador. Não lhes faltou a vontade, mas o talento foi escasso. E, então, a Argélia dedicou-se à parte italiana do seu estilo: defendeu com segurança e lançou, aqui e ali, contra-ataques venenosos.
O resultado não mudou.
A vitória dos homens do Magrebe foi surpreendente, sim senhores, mas nunca injustificada. Com dois pontos no bornal saíam na frente com a Áustria, que batera o Chile. A vergonha estava aí ao virar da esquina. E que vergonha!
Os resultados seguintes foram estes: Áustria, 2 – Argélia, 0; Alemanha Ocidental, 4 – Chile, 1.
Última jornada: Alemanha Ocidental-Áustria e Argélia-Chile.
A desgraça de Gijón!
A FIFA facilitava. Não obrigava a disputar os jogos decisivos à mesma hora do mesmo dia, como acontece agora.
Os argelinos jogaram na véspera e cumpriram o seu dever: 3-2 ao Chile, que ficava de fora.
Uma vitória alemã por um ou dois golos apurava a Áustria, deixando os argelinos eliminados. Um empate ou uma vitória austríaca tramavam a Alemanha.
Em alemão se entenderam.
Aos dez minutos, Hrubesh, o monstro da grande área, fez 1-0.
A partir daí, o imenso nada.
Devagarinho, o nada.
Bola para cá e para lá, às vezes na posse dos alemães, às vezes na posse dos austríacos. Ou, se calhar, não havia nem alemães nem austríacos, como no sonho hitleriano do Anschluss.
Gritos das bancadas: “Fuera! Fuera!”
Adeptos magrebinos mostravam notas de banco, revoltados. Nada a fazer.
As Raposas do Deserto tinham caído numa armadilha de germânicos.