Dos oito alfarrabistas que outrora havia na zona da Misericórdia (Chiado, Lisboa), restam apenas dois. Em breve só restará um: Carlos Bobone, o proprietário da Livraria Bizantina. Começou a dedicar-se a esta atividade quando era ainda estudante de História, trabalhando de graça a organizar manuscritos antigos. Hoje tem um negócio florescente e até está a pensar fazer obras para abrir ao público duas salas que por enquanto estão inacessíveis por causa da desarrumação. Passa as manhãs na livraria, onde o telefone não pára de tocar: são clientes habituais que querem reservar livros. À tarde, é revezado pelo seu filho, Carlos Maria, a quem está a transmitir tudo o que sabe, e sai para visitar casas onde é chamado para comprar livros. Ao SOL, Carlos Bobone explicou os atrativos e as desilusões que lhe trouxe a profissão, os seus truques e segredos. Na próxima semana publicaremos a segunda parte desta conversa.
Há quanto tempo trabalha aqui?
Aqui mesmo, nesta localização, faz este mês 14 anos. Quando vim para cá, nesta zona éramos oito alfarrabistas. Agora estamos só dois, e o meu colega vai sair daqui a dois anos, por isso fico só eu.
Não sente a pressão imobiliária?
Tive a oportunidade de comprar este espaço, por isso não tenho esse problema. Às vezes aparecem aqui pessoas a querer alugar ou comprar. E já começam a aparecer ofertas convidativas. Mas nem as quero ouvir. Tenho um filho que trabalha comigo, por isso não tenho muito essa perspetiva de vender nem de alugar. Só se me fizessem uma proposta que fosse uma loucura recusar…
Esta livraria já existia antes de se instalar aqui?
Sim, era na Travessa Conde Soure, na esquina com a Rua do Século. Era uma livraria muito pequenina. A maneira de ter algum movimento era sobretudo através dos catálogos [folheto com algumas páginas com uma lista de livros selecionados disponíveis para venda], porque o sítio era um bocadinho escondido.
Como funcionava isso?
Mandava os catálogos sobretudo por correio, que dá melhor resultado do que por email. Geralmente só temos um exemplar de cada livro e costuma haver várias pessoas interessadas. Já sabem que ou telefonam e reservam logo ou então há grandes probabilidades de perderem o livro. E quando estão interessadas é porque querem mesmo – têm uma coleção ou estão a fazer uma investigação, e convencem-se de que precisam mesmo daquilo. Por isso ficam bastante aborrecidas quando perdem a oportunidade de o comprar.
Quando começou a trabalhar nesta área?
Há quase 30 anos. Comecei a frequentar alfarrabistas quando estava a tirar o curso de História. E, ainda estudante, ofereci-me para trabalhar gratuitamente num alfarrabista muito grande que era o Almarjão, na calçada do Combro, não sei se já ouviu falar.
Sim, sim.
Chamava-se Livraria Histórica Ultramarina mas era mais conhecida pelo nome do dono, o senhor Almarjão. A loja era muito grande, tinha cinco salas, e depois havia um armazém na Rua do Diário de Notícias com três andares todos cheios de livros. Estava lá um alemão que sabia muito e que organizava o armazém. Mas havia alguns assuntos de que ele não tratava e um deles eram os manuscritos. Havia uma sala cheia de manuscritos antigos e eu ofereci-me para ir lá e dar uma arrumação, ao mesmo tempo com a vantagem de ser a primeira pessoa a ver alguns manuscritos e de poder comprar os que me interessassem. Depois comecei a ajudá-los quando eles compravam bibliotecas.
A carregar os livros?
Sim, essa parte também. Comecei a achar graça e a fazer negócios particulares, comprava e depois vendia a pessoas que conhecia. Estive assim durante alguns anos e a partir de 96 abri a tal loja.
Foi com esse alemão que aprendeu os fundamentos?
Com o alemão aprendi muita coisa, e com o senhor Almarjão também. Formavam uma dupla muito curiosa, porque cada um sabia de áreas diferentes. O Almarjão sabia muitas miudezas históricas, muita coisa de arte, sabia muita coisa do século XIX, tinha muito boa memória. Às vezes eu encontrava uns papéis antigos no armazém, ia-lhe falar e ele sabia donde é que isso tinha vindo, com quem é que a família estava relacionada e quem é que podia interessar-se por aquele tema. O senhor Berkemeier tinha interesses mais literários, sabia muito de cultura clássica, grego e latim, também de literatura em geral, mas a especialidade dele como vendedor era livros ultramarinos. Ao fim de muitos anos a vender muita coisa sobre o Ultramar ele tinha um grande conhecimento, mas era bibliográfico, não era tanto do conteúdo. Mas também lia muito e depois tentava convencer os clientes. ‘Você precisa disto como pão para a boca!’ [risos] – ele gostava de usar expressões portuguesas. ‘Isto para as suas guerras é fundamental!’.
Era um bom vendedor.
Era, porque sabia enfrentar o desconhecido. Muitas vezes dizia assim: ‘O mal de muitos livreiros portugueses é que não sabem enfrentar o desconhecido, só sabem vender o que já conhecem ou temas para os quais sabem que há procura’.
Este nome, Livraria Bizantina, foi escolhido por si?
Foi. Tinha tido outras ideias mas eram nomes que já existiam. Este nome Bizantina agradou-me porque tem dois sentidos. Por um lado está relacionado com o Império Romano do Oriente, com a civilização de Bizâncio, que é uma civilização muito ligada aos livros e onde se salvaram muitos livros depois da queda do Império Romano do Ocidente. Por outro lado o nome bizantino também significa ‘estranho’, ‘bizarro’…
Difícil de entender…
Pois, o paradigma é aquela discussão sobre o sexo dos anjos. A partir daí usou-se o nome de bizantino para designar coisas estranhas, fora do comum, raras, que está muito ligado àquilo que aparece aqui nos livros. Muitas vezes aparecem coisas que nós nem pensávamos que pudessem dar tema para um livro. E então achei que era um nome apropriado para uma livraria alfarrabista.
Veio para esta profissão porque gostava muito de livros?
Sobretudo gostava muito ler. Já que pergunta, tive uma desilusão grande ao perceber que, ao contrário do que eu pensava, muita gente que anda nesta vida de comprar livros e de andar muito nas livrarias são pessoas que não leem.
Não leem?!
Pode parecer estranho. Eu achava – toda a gente acha – que quem compra livros é porque gosta de ler. Mas muitas vezes isso não é verdade. Grande parte do negócio alfarrabista anda à volta do colecionismo e o colecionismo muitas vezes dirige-se a pessoas que leem pouco. Basta uma pessoa pensar um bocadinho nos temas mais procurados: genealogia, heráldica, livros sobre Lisboa, livros sobre cavalos, livros sobre toiros, etnografia… Muitos destes temas não dão livros que se leiam de fio a pavio. É mais para consultar, para ver…
Ou até para ter na sala, em cima de uma mesa.
Muitas vezes é porque aparece no livro a quinta do avô ou do tio. Outra área que tem imensa procura é monografias regionais, livros sobre terras específicas. Há pessoas que só procuram livros sobre a sua terra. Ou pessoas que só procuram autores da sua região, como se o talento pudesse estar ligado à geografia. Depois há casos mais curiosos: um tema que tem uma procura específica é livros de memórias de estudantes de Coimbra. E depois criam-se os clássicos. Neste tema o maior clássico de todos é um livro que é impossível ler porque foi escrito num latim macarrónico inventado pelo autor.
Como se chama?
Palito Métrico e Correlativa Macarrónea Latino-Portuguesa. É de um estudante que conta as suas boémias, as suas patuscadas, as suas aventuras com raparigas, mas tudo numa linguagem que foi ele que inventou, que não é latim nem é português. Penso que ninguém leu, se alguém leu foi com imensa dificuldade. É um livro que se publicou em fins do século XVIII, teve dezenas de edições. Isto mostra que muitas vezes o livro não é comprado para ler mas como objeto de culto.
Depois de conhecer o meio ficou com uma ideia menos romântica?
Sim, fiquei com uma ideia menos romântica, tanto do trabalho em si como das pessoas. Rapidamente verifiquei que grande parte deste negócio está ligada ao colecionismo, e tentei fugir do comércio dos livros raros. É uma área onde se fica muito dependente de um conjunto pequeno de clientes, que ainda por cima são um bocado caprichosos – pessoas que gastam muito dinheiro em livros estão habituadas a ser tratadas com todas as mordomias. Fica-se ligado a pessoas que não valorizam o livro pelo texto em si mas por outras qualidades, porque o colecionismo tem muitas praxes, muitos preceitos.
Por exemplo?
Por exemplo, quando o livro é encadernado tem de ser encadernado com as capas de brochura, se não for encadernado com as capas de brochura perde 80 ou 90% do seu valor. Isto é uma coisa com que eu não concordo, não gosto de estar a lidar com este tipo de clientes. Uma vez pus no catálogo um livro do Rebelo da Silva, que foi historiador e autor de romances. Houve um senhor que reservou o livro por telefone. Quando veio buscá-lo, ficou todo irritado: ‘Não tem capas de brochura… O que é que você quer que eu faça com um livro sem capas de brochura?!’ Eu a certa altura também fiquei irritado e disse-lhe: ‘Talvez possa lê-lo, não?!’
[risos]
Ele nessa altura percebeu a figura que estava a fazer. O que acontece com o colecionismo é isso: não só tem os seus preceitos muito rígidos, como há pessoas que não percebem que haja outra maneira de ver as coisas. Lidamos com pessoas que fazem parte de grupinhos, em que há desde o colecionador de primeiras edições até o colecionador de tudo o que diz respeito a uniformes militares e condecorações – são pessoas que vivem num universo fechado, que só pensam em uniformes e condecorações e só avaliam os livros em função disso. São ultraespecialistas no assunto, e depois convencem-se de que os outros ou são malucos ou então estão a dedicar-se a coisas que não interessam nada. E o que os distingue do vulgo é que eles têm as opiniões certas sobre os assuntos que mais importam enquanto as outras pessoas andam todas enganadas.
Tem muitos clientes desses?
Também conhecemos pessoas muito interessantes, inteligentes e cultas. Aparecem aqui pessoas que não têm limites para a sua curiosidade. Até fico assombrado às vezes com a variedade dos temas que lhes interessam. Algumas vêm todas as semanas e compram. Mas há sempre aqueles que são os maníacos, os colecionadores que aparecem todos os dias e que estão sempre preocupados com o facto de haver outras pessoas que vão comprar aquilo que deviam ser eles a comprar. Às vezes até imaginam que têm um rival ou um inimigo que leva as coisas que eles querem.
Quando andou a organizar os manuscritos no Almarjão encontrou coisas muito raras?
Já encontrei manuscritos muito curiosos, raros, tanto por importância política como por importância literária, outros por temas inesperados. Houve um que vendi à Fundação da Casa de Bragança que era um manuscrito sobre o castelo de Arraiolos, de 1572. Quando morreu o alcaide de Arraiolos, o duque de Bragança, que era o senhor de Arraiolos, mandou fazer um inventário do que existia dentro do castelo. Era um manuscrito de 40 folhas com a descrição, sala por sala, de tudo o que estava lá dentro. Há livros para miúdos sobre isso, mas ali era mesmo o inventário feito numa altura em que o castelo era habitado. Desde os instrumentos todos de cozinha até à sala e ao quarto onde dormia o alcaide e a mulher, vinha tudo descrito em pormenor.
E aparecem outras raridades?
Encontrei também alguns manuscritos com importância política, correspondência das Invasões Francesas, da Guerra Civil entre D. Pedro e D. Miguel. Por exemplo, uma carta do Duque da Terceira, que era o comandante das tropas liberais, para o duque de Palmela, no dia 23 de julho de 1833, ou seja, na véspera de as tropas entrarem em Lisboa. É uma carta que ele escreve no fim do dia a contar a batalha que tinha tido com as forças miguelistas em Almada. Ele derrotou as forças miguelistas e por isso é que no dia seguinte entrou vitorioso em Lisboa.
Não se vai tornando cada vez mais difícil fazer estas descobertas?
Os livros antigos vão desaparecendo porque aqueles que entram nas bibliotecas públicas já não saem. Durante muitos anos, aquilo com que todos queriam trabalhar eram uns livros muito antigos e muito raros que são conhecidos como incunábulos…
Os livros impressos até ao ano de 1500.
O conceito de incunábulo está-se a alargar um bocadinho, já vai até 1510 porque começam a ser cada vez mais raros. Em catálogos dos anos 1950 havia às vezes dez incunábulos e uns 50 livros quinhentistas. Hoje em dia, até em catálogos de leilões, aparecem dois ou três livros quinhentistas, é raro aparecer um incunábulo e muitas vezes os que aparecem são exemplares com defeitos. Antes era impossível vender um exemplar com defeito mas hoje são tão raros que já se aceitam exemplares em que falta uma folha ou duas. Depois vai-se à Biblioteca Nacional.
Para fotocopiar?
Não é para enganar, vê-se que a folha é facsimilada, mas tenta-se compor o melhor possível o exemplar. É o caso também dos exemplares da primeira edição d’Os Lusíadas. No princípio do século, até 1950, 1960, ainda apareciam. Aqui há uns anos, ainda vi um leilão onde apareceu um exemplar completo da primeira edição d’Os Lusíadas. Mas desde há 30 anos para cá nunca mais vi nenhum. Há uns tempos havia um livreiro do Porto que tinha um exemplar, mas com defeito, também, e mesmo assim estava a vender por 100 mil euros. Esses livros mais antigos tiveram a sua época áurea entre 1840 e 1950, que corresponde à extinção dos conventos. No fundo foi aí que se constituiu o mercado alfarrabista como mercado autónomo, porque até ao princípio do século XIX os alfarrabistas eram considerados livreiros de segunda. Vendiam livros velhos na rua. A definição de alfarrábio que começou a aparecer no século XVIII nos dicionários era ‘livro velho e sem valor’. Como os dicionários se copiam muito uns aos outros, até recentemente ainda davam muito essa definição, apesar de entretanto se ter formado todo este comércio em volta do livro antigo, que chega a atingir valores muito altos.
Hoje é cada vez mais raro encontrar esses troféus, não?
Incunábulos é muito raro. Em toda a minha vida de livreiro tive dois. E para encontrar esses dois tive que estar numa casa durante três tardes seguidas, a deitar fora imensos livros que estavam completamente estragados. Curiosamente os dois mais antigos estavam em ótimo estado, também porque os livros mais antigos têm um papel mais forte e aguentam melhor. Livros quinhentistas ainda aparecem e o que acontece é que temas que antes eram pouco valorizados porque eram mais vulgares e considerados mais enfadonhos – como livros de direito e livros de religião – hoje em dia já são valorizados.
E onde aparecem?
Sobretudo em bibliotecas de famílias de província, em que as pessoas com alguma cultura iam para padres ou para juízes. De maneira que a maior parte dos livros que se publicavam eram ligados ao direito e à religião. Livros do século XVII ainda aparecem em quantidade apreciável, embora os mais procurados, como primeiras edições de clássicos como o Garcia da Orta ou a Peregrinação do Fernão Mendes Pinto, também já são raros.
E o Padre António Vieira?
O Padre António Vieira curiosamente não está tão valorizado como seria de esperar, talvez porque teve uma tiragem grande. Há uns anos houve um jornalista que fez uma reportagem sobre um leilão de livros e pôs este título: ‘Torga vale cinco vezes mais do que o Padre António Vieira’. Havia edições muito raras do Miguel Torga que eram vendidas a um preço cinco vezes superior ao do Padre António Vieira.
Isso é porque há modas, ou tendências, no mercado livreiro?
Sim, pode-se chamar mesmo modas. Está muito ligado com aquilo que é mais valorizado em cada época. Hoje em dia as primeiras edições dos livros de autores surrealistas são muito procuradas.
Ainda negoceia nessa área dos livros raros?
Não me posso esquivar totalmente. Também não vou fazer figura de parvo e vender por 10 euros um livro que se vende por 500. Uma pessoa que anda a comprar bibliotecas particulares tem também de saber trabalhar com todo o género de livros. Quando vou ver uma biblioteca tento comprar os livros todos, depois divido-os por temas. Tentei criar uma livraria para pessoas que gostem de ler, que gostem de investigar, que gostem de estudar, e uma vez por outra, claro, tenho livros raros.
[as buzinadelas lá fora tornam-se tão insistentes que interrompem qualquer raciocínio. «Julgava que isto fosse só ao pé da minha loja», comenta um cliente.] Como é a vida de um alfarrabista em Lisboa?
Acaba por ser uma vida interessante, porque não é rotineira. A pessoa vai a casas de todos os géneros… Claro que todos os livreiros gostam mais da parte de comprar e depois estar a ver em pormenor o que comprámos.
A descobrir?
E a estudar um bocadinho. Estamos sempre a aprender. Se lhe disserem ‘Aquele sabe muito de livros’, isso não é verdade, porque isto dos livros é um mundo tão vasto que nunca há ninguém que saiba muito de livros. Em todas as profissões é assim, mas como os livros abrangem todas as áreas do conhecimento é inesgotável.
Como começa o processo? Ligam-lhe a dizer ‘Tenho uma biblioteca e quero vender’?
Quando estava a começar, às vezes punha anúncios, tentava arranjar livros de todas as maneiras, ia a feiras, ia àquelas vendas de garagem como os ingleses fazem. Hoje em dia quase todos os dias me telefonam a tentar vender. As pessoas dizem sempre: que têm muitos livros, que são muito antigos, e que são de todos os géneros possíveis e imaginários.
E que perguntas faz para perceber melhor o que a pessoa tem?
Tento que me digam pelo menos qual é a quantidade aproximada, se é centenas ou milhares. Se tiverem dois mil livros em casa há sempre qualquer coisa que vale a pena. Depois tentamos perceber se são livros antigos, se estão em bom estado. Muitas vezes vou a casas onde não valia a pena ter ido, mas também acontece o contrário: vou para um sítio – em Alfragide ou em Telheiras, por exemplo – e penso ‘são bairros novos, as pessoas que vão para lá não estão ligadas à cultura’. E de vez em quando há surpresas. Mas tenho duas livrarias: esta e uma mais pequena nas Portas de Santo Antão, para coisas mais corriqueiras.
Faz essa divisão, uns para um lado, outros para o outro?
Primeiro vai tudo para o armazém, depois faço a divisão: para aqui vão livros mais de investigação, ou mais selecionados, para a loja lá de baixo vão livros mais corriqueiros. Mas tenho a certeza de que as pessoas os vão ler: se compram um livro por dois ou três euros não é para se armarem em boas por saberem que têm um livro que mais ninguém tem. Enquanto aqui nem sempre tenho a certeza de que as pessoas vão ler.
Essas bibliotecas que compra pertenciam a pessoas que morreram?
Muitas vezes quem me liga são os herdeiros, cujos pais ou tios morreram, ou então são pessoas que estão a mudar para uma casa mais pequena ou que tiveram uma mudança nas suas vidas.
Que vão para o estrangeiro, por exemplo?
Também. Ou são estrangeiros que passaram cá algum tempo, vão regressar e não vale a pena estarem a carregar os livros no avião, ou pessoas que tinham um ateliê ou oficina e agora vão-se reformar e já não têm tanto espaço para guardar os livros, ou simplesmente pessoas que acabaram uma investigação qualquer e já não precisam dos livros.
As bibliotecas dizem muito sobre os proprietários?
Às vezes acontece a pessoa estar num lar ou já ter morrido, mas mesmo sem ela lá estar percebemos pela organização dos livros e da casa que são pessoas curiosas. Curiosas não é necessariamente interessantes ou inteligentes. Por exemplo, homens muito solitários e que usam os livros como companhia. Uma vez fui a uma casa de um homem que eu já conhecia de vista, era meu cliente – era um homem que cheirava extraordinariamente mal, não falava com ninguém – percebi que só vivia para os livros. Quando estava doente, por exemplo, em vez de ir ao médico comprava livros de medicina e tentava resolver o problema através das leituras e da automedicação.
Consegue-se conhecer a pessoa através da sua biblioteca?
Aqui há uns anos fui a casa de outro senhor, uma casa com umas cinco ou seis divisões, tudo cheio de livros. E pelos livros viam-se algumas da obsessões do senhor. Havia uma sala que era só livros de educação física, artes marciais, como ficar mais forte, como criar músculos. Ainda perguntei à sobrinha do senhor: ‘O dono desta casa devia ter uns músculos impressionantes…’ E ela disse: ‘Não tinha, não. Gostava de ter! Comprava os livros mas depois não fazia os exercícios’. Entretanto também percebi que era comunista. Mesmo nos assuntos científicos, de física, de química e tudo, comprava livros produzidos pela Academia das Ciências da União soviética.
Era uma questão ideológica…
Esse senhor tinha outra sala de livros de autoajuda, como se tornar um vencedor, como ser o n.º 1, como ser o mais rico… Há uma certa contradição entre por um lado ter muitos livros comunistas – somos todos iguais, temos de ajudar os mais fracos – e por outro lado aqueles livros todos de competição, como ser o melhor, como ter sucesso nos negócios, etc., que aparentemente é uma filosofia de vida completamente diferente, competitiva e mais liberal. De maneira que eu gosto desta parte que é tentar perceber um bocadinho da personalidade do dono da biblioteca. E também há dedicatórias que são curiosas.
Uma vez li um artigo sobre todas as coisas que aparecem dentro de livros: desde alianças a cartas de jogar antigas, mechas de cabelo, há até quem guarde dinheiro… Abre todos os livros que compra?
Há muita gente que tem o hábito de guardar papelinhos nos livros, recortes de jornais ou de revistas, geralmente relacionados com o tema do livro. Numa livraria, se não tirarmos esses papéis os clientes começam a folhear e daqui a pouco tempo estão os papéis espalhados no chão, de maneira que todos os dias faço esse trabalho. Antes de pôr os preços, abro-os, vejo se têm marcadores ou papéis lá dentro, até porque fazem mal ao papel dos livros, que fica mais escuro. E muitas vezes os próprios donos das bibliotecas não querem que apareçam coisas pessoais.
Cartas?
Às vezes até cartas comprometedoras. Se os filhos soubessem daquilo ficariam muito atrapalhados. Um livreiro que conheço uma vez encontrou um esboço de um diário de um cliente onde ele confessava que ia casar no dia seguinte por interesse. Dizia que não gostava da noiva, mas o pai dela era muito rico e ele não conseguia resistir às seduções da vida fácil.