Carlos Bobone. ‘Não me orgulho muito da profissão de alfarrabista’

A Bizantina é uma das raras livrarias alfarrabistas que têm sobrevivido à pressão imobiliária no Chiado. Entre os seus frequentadores há professores universitários e figuras como Marcelo ou Pacheco Pereira. Mas também há operários, caçadores de tesouros e até videntes. Nesta 2.ª parte da conversa, o proprietário explica quem são os seus clientes e o…

Estes livros que guarda perto de si são os mais valiosos?

Isto é uma grande mistura. Tenho aqui livros que estão incompletos ou que estou à espera de juntar com outros, livros que quero ver com mais atenção ou mostrar a alguém. De qualquer maneira são coisas que, de momento, não quero ainda pôr à venda.

Livros que ainda está a ler?

Também. Leio vários livros ao mesmo tempo. Quem tem interesses variados tem sempre essa tentação de andar a saltitar e de ter leituras fragmentárias. Uma vez vi umas cartas do Séneca, de há mais de dois mil anos, onde ele alerta um amigo para essa tentação de andar a saltitar de assunto para assunto: ‘Tens de pensar que uma pessoa pode sempre ter muito mais livros do que aqueles que consegue ler durante a sua vida’. Achamos que na Antiguidade era muito difícil obter livros, porque tinham de ser todos copiados à mão, mas pelos vistos já havia em Roma bibliotecas suficientemente grandes para uma pessoa não conseguir ler os livros todos no espaço da sua vida.

Vê estes livros como seus ou estão aqui apenas de passagem?

As duas coisas. Num primeiro momento assumo que eles são meus. Aliás, o grande atrativo nesta profissão é eu poder ser o primeiro a escolher. Já era assim quando trabalhava no Almarjão [Livraria Histórica Ultramarina], o meu pagamento era ser o primeiro a escolher quando havia uma compra de uma biblioteca. Isso para mim é um atrativo magnífico nesta profissão.

Ou seja, acaba por ficar com alguns…

Sim, muitos.

Isso é um problema?

Tenho de pesar bem entre o interesse que o livro tem para mim e o espaço que vai ocupar, porque uma pessoa com esta profissão tem sempre terríveis problemas de espaço. Hoje tenho a minha casa já muito cheia – não ao ponto de incomodar a família – e tenho nas duas livrarias uma parte grande que está a servir de arrecadação. Esta ainda tem mais duas salas, mas não estão abertas porque estão numa grande desarrumação. Mas tenho a intenção de um dia despejar isto tudo, fazer obras e abrir as salas, que é estúpido ter este espaço no Chiado e não aproveitar.

Tem outros espaços ainda?

Tenho um armazém em Rio de Mouro que também já está muito cheio, e nesse armazém há aí umas dez estantes com livros mesmo meus, que não tenciono vender. Geralmente, se tenho dúvidas, opto por ficar com ele. Mas tenho uma vantagem: os campos pelos quais me interesso não são muito valorizados do ponto de vista do colecionismo. Os livros que me interessam não são muito caros, são livros que valem 20, 30 euros, muitos deles venderia a cinco euros, por isso o facto de ficarem para mim não é um grande sacrifício económico.

O Quentin Tarantino, o realizador, diz que aprendeu muito sobre cinema quando trabalhava num clube de vídeo e ia vendo filmes nos tempos mortos. No seu caso, também vai lendo o que tem à mão?

Sim. Nem sempre preciso, porque há livros em que consigo perfeitamente ver o tema, sei do que falam, sei a procura que têm e quanto valem. Mas há outros, ou porque quero perceber melhor qual é o tema ou porque penso que pode ter alguma curiosidade para mim ou para alguém que eu conheça, que preciso de ler ou pelo menos de folhear. Outra coisa que eu gostava imenso de fazer quando era mais novo era abrir um livro numa página ao calhas e ler. Fazia isso com o Larousse, em casa dos meus pais, mas agora já não tenho muito tempo.

E para ler, em geral, tem tempo?

Tenho algum tempo mas não é nem por sombras o que eu gostava nem o que pensei que ia ter quando escolhi esta profissão. Pensei que ia ter uma profissão que me dava acesso a muitas horas de leitura e afinal às vezes tenho a frustração de passar um dia em que mexi em três ou quatro mil livros e não li nem uma página. É raro, porque para classificar os livros a pessoa tem de ler alguma coisa e há sempre a tentação de ler um bocadinho mais… Também há dias em que leio três páginas aqui, duas ali, tudo coisas muito dispersas, mas encontram-se coisas muito inesperadas e muito curiosas.

Disse-me que tem livros espalhados por vários locais…

Sim. Tenho nesta loja, na outra das Portas de Santo Antão, no armazém e num escritório onde era a minha antiga loja. E ainda no sótão de minha casa.

Quantos milhares de livros perfaz?

Devem ser uns 70 mil. Não tenho bem ideia porque há muitos que são livros incompletos, revistas, folhetos, é muito difícil contabilizar. Há pessoas que dizem: ‘Esses livros todos têm um valor incalculável’. Não é verdade, porque alguns estão incompletos, outros não estão em bom estado, há livros em russo ou em romeno. A quantidade só por si não significa nada.

O que faz aos livros que não valem nada?

Isto tem um circuito. Ponho-os aqui nuns sacos, a um canto, e há pessoas que vêm cá todas as semanas buscá-los. Até é um favor que me fazem. Uma coisa que eu tenho cuidado é não trazer para aqui livros estragados nem com as lombadas manchadas.

Porque podem ter bichos?

Não é isso. É por causa da aparência que dá. Se tiver uma estante com vários livros bons mas três ou quatro estragados, uma pessoa entra e aquilo que lhe salta aos olhos são os estragados. Quando tenho livros que são interessantes mas estão um bocadinho feios, ou os dou ou ponho-os na mesa, porque aí vê-se a parte de cima. Quem entra numa livraria olha sempre para os livros que estão nas mesas com as capas para cima, e metade dos clientes só compram esses. Depois há outros que veem com mais cuidado. E até há aqueles que veem de fio a pavio tudo o que está na livraria. Alguns passam todos os dias e veem todos os livros de uma ponta à outra.

Mesmo já sabendo o que lá está?

Mesmo sabendo que a maior parte são coisas que já viram, mas com a ideia de que pode haver algum que lhes tenha escapado.

É um bocadinho como caçadores, querem bater o terreno todo…

É esse o espírito. Andam à procura das peças raras. Aliás havia um cliente que dizia a outro: ‘Nós somos colegas na venatio librorum’. Dizia isto em latim… achava que era uma atividade de alta sofisticação intelectual. Depois há outra preocupação: os livros mais vendáveis estarem à altura dos olhos. Mas isso é assim em todas as livrarias.

Esses são os que se vão renovando mais?

Os outros têm menos rotação. Nesta livraria, como o pé direito é bastante alto, tento pôr nas prateleiras de cima coisas que são quase invendáveis, para as pessoas não estarem sempre a pedir o escadote, até porque depois podem cair. E em baixo são coisas com pouco interesse ou assuntos muito específicos. Mas curiosamente muitas vezes são os temas mais pequeninos e mais específicos os que têm mais procura. É mais fácil vender um livro sobre o relógio da igreja de Freixo de Espada à Cinta do que vender as Obras Completas de Shakespeare.

É mesmo assim ou está a caricaturar?

Não estou bem a caricaturar. Num dos meus primeiros catálogos tinha as Obras Completas do Shakespeare por dez euros, e depois tinha por trinta euros um folheto sobre as origens das armas de Portugal. Tive para aí uns 15 pedidos para esse folheto e só tive um pedido para o Shakespeare.

Entre os seus clientes há muitas pessoas conhecidas?

Os clientes são de uma variedade muito grande, vão desde operários a professores catedráticos. Claro que há mais catedráticos do que operários, sobretudo historiadores, mas não sei se gostariam que dissesse o nome deles. Quem não faz segredo disso é o Presidente, adora alfarrabistas e compra muito, até mais por catálogo. Depois há outros que também não fazem grande segredo, como o Pacheco Pereira. Os historiadores mais conhecidos, em geral, são frequentadores de alfarrabistas. Políticos há alguns, não muitos. E depois há pessoas que me surpreende não aparecerem. Gostam de exibir muita cultura, mas não põem os pés no alfarrabista. 

E figuras mais peculiares? 

Sim, também há figuras que se dedicam a atividades que eu nem pensava que existissem. Desde caçadores de tesouros até videntes. 

Caçadores de tesouros?

Sim, gente que se dedica à arqueologia submarina. Havia aqui um francês cuja profissão era mesmo essa. Claro que ao longo da vida deve ter descoberto para aí três tesouros, mas desde que encontre bastante ouro lá no meio, já é o suficiente. Fazia isso e escrevia livros sobre aventuras.

Disse videntes, também?

Havia um senhor que vinha cá muito que criou uma Igreja. Uma parte do dia estava nessa Igreja e na outra parte fazia curas pelo poder da mente. Então gostava de ter livros antigos, sobretudo procurava livros sobre feitiçaria e exorcismos, para dar ideia aos clientes de que a sabedoria dele era muito vasta e vinha de longe. Também comprava muitos livros em latim, uma língua que ele não conhecia… Era uma figura muito curiosa, vestia-se de uma maneira muito vistosa, muito espampanante, com um grande chapéu, os dedos cheios de anéis, com duas grandes cruzes de ouro ao pescoço, dava mesmo nas vistas.

E diletantes, pessoas que herdaram uma fortuna, não têm muito que fazer e vêm aqui como desporto?

Também há, mas pessoas que herdaram fortunas e gostam de investir nos livros geralmente vão a outro tipo de livrarias, porque gostam de ter a sensação de que estão a comprar coisas com valor. Muitas vezes chegam a um alfarrabista e dizem: ‘Eu gostava de começar a colecionar livros mas não sei por onde começar’. E o alfarrabista, por hipótese, diz-lhe: ‘O senhor é dos Açores, devia comprar todas as primeiras edições dos autores açorianos, a Natália Correia, o Vitorino Nemésio, o Antero de Quental’. Um tema que se presta muito ao colecionismo é estrangeiros que escreveram sobre Portugal. Sempre gostámos de ver o que os estrangeiros dizem sobre Portugal. E há livros de estrangeiros do século XIX, ou mais antigos, com gravuras muito bonitas, bem ilustrados, que são muito procurados e têm preços muito altos. Algumas pessoas têm uma lista do que querem e andam sempre à procura. Quando encontram ficam todos contentes e riscam da lista. O que acontece é que geralmente quando acabam uma coleção querem logo começar outra.

O colecionismo não pára.

Não acaba. Os momentos de prazer da vida de um colecionador duram um microssegundo. Quando encontra uma revista ou um livro que é mesmo o que lhe faltava, começa logo a pensar: ‘Então e agora quando é que me arranja um livro para a minha próxima coleção?’. É muito difícil contentar um colecionador.

Até porque às vezes as pessoas vivem muito ansiosas enquanto não têm, mas a partir do momento em que têm já não ligam nenhuma…

Já o Jean-Jacques Rousseau dizia que as pessoas não sentem o conforto quando o têm, mas quando estão privadas dele sofrem por isso. É a mesma coisa com o colecionador: sofre mais com as peças que lhe faltam do que tem prazer com as que já conseguiu encontrar. Claro que há quem aprecie e goze o que tem. Mas muitas vezes a mentalidade do colecionador é um bocado doentia porque pensa mais no que lhe falta do que no que conseguiu.

Também tem clientes que vêm aqui porque querem decorar uma casa ou encher uma estante com lombadas de uma certa encadernação?

Isso acontece regularmente. Aliás um senhor que esteve aqui há um bocadinho, que também é livreiro, teve agora uma encomenda grande de livros encadernados [dez mil]. É um tipo de encomenda que para nós é bom.

Porque podem despachar coisas que não se vendem?

Despeja armazéns e livramo-nos desses monos. Até podemos vender livros em holandês e em russo, livros de medicina e de engenharia. Aqueles livros técnicos cheios de equações não valem absolutamente nada.

Valem só pela encadernação.

Se a tiverem… Aqui nesta rua foi inaugurado no ano passado um bloco de apartamentos que se chama Ex-Líbris. Eles quiseram decorar os apartamentos todos com uma estante com livros. Combinámos um preço a metro e fornecemos a quantidade que eles queriam, 85 metros. Às vezes também aparecem pessoas do teatro e do cinema que querem comprar ou alugar. Ao princípio fazia isso, mas depois houve duas ou três ocasiões em que correu mal.

Estragaram?

Deitaram-nos para o chão numa carrinha que estava molhada e alguns livros ficaram estragados. Não eram livros com grande valor, mas não gostei que fossem tratados com tão pouco amor. E também já temos fornecido livros para decoração de hotéis e de restaurantes. [Para o filho:] O Belcanto tem livros nossos, não tem?

Carlos Maria: O Belcanto e o Cantinho do Avillez também.

[Um cliente pergunta se um certo livro do catálogo ainda está disponível. Quando recebe o exemplar, queixa-se do estado da capa, mas leva-o na mesma.]

Tem clientes muito picuinhas?

Isto não é nada. Já me aconteceu uma pessoa chegar e dizer. ‘Está aqui um livro que eu procurava há 20 anos. Finalmente encontrei!’. Depois abriu o livro: ‘Ahh… tem aqui uma assinatura, e eu não compro livros com assinaturas’. Andava à procura do livro há 20 anos, o livro custava cinco euros, e não o comprou porque estava assinado pelo anterior proprietário! Isso é um dos preceitos do colecionador. Se for o ex-líbris gostam, o ex-líbris valoriza, mas se for uma assinatura desvaloriza, e se for uma dedicatória escrita pela pessoa que ofereceu, aí então desvaloriza completamente. São muito caprichosos com isso. Este senhor até tem muito bom feitio.

Este catálogo saiu…

Ontem. Antigamente, quando tínhamos isto mais bem organizado, em 24 horas vendia mais de metade e depois acabava por vender mais de 80% do catálogo. Reativámos há menos de um ano, por isso ainda não está a dar todo o rendimento que pode dar.

Atrai pessoas aqui?

A livraria em geral tem bom movimento. Há horas mais mortas, mas também há horas em que estão aqui dez ou doze pessoas, e em geral são pessoas que têm interesse em comprar. Os turistas é que não compram muito. Entram, mexem, mexem, e compram às vezes um livrinho de dois ou três euros.

Nestes catálogos reúne os livros que acha que vão interessar mais?

É isso. Tem graça que houve um livro neste catálogo que eu disse ao meu filho: ‘Acho que este tem muita procura’. Quando cheguei cá no dia seguinte ele disse-me: ‘Foi o primeiro a ser vendido e já teve vários pedidos’.

Acaba por se desenvolver um certo faro?

Sim, já sabemos o que provoca a excitação das pessoas. E isso tem consequências na venda. Uma coisa que já reparei é que as pessoas, em geral, são preguiçosas. Para pegarem no telefone e fazerem uma encomenda tem de haver alguns livros que provoquem mais excitação, porque são temas muito procurados, porque são raros ou porque estão com um preço mais convidativo.

Se sabe que um livro vai ter muita procura não podia subir o preço?

Pois… podia fazer isso, mas já percebi que dez euros podem fazer a diferença entre ter 15 pedidos e ter um pedido só. Sei que podia vender por um preço mais alto mas pela minha avaliação acho que não devia. E há outra coisa. Há pessoas que têm essa filosofia de tentar puxar ao máximo o preço de um livro. O que acontece é que as pessoas até podem comprar, mas não ficam com a euforia de pensar: ‘Fiz um belo negócio’. E isso é importante. Se a pessoa comprar por 40 euros um livro que tem 20 pessoas a querê-lo, sai daqui toda contente, porque apanhou uma coisa mesmo boa e pagou um preço relativamente baixo. Essa pessoa de certeza que volta. Se for uma pessoa que deu 500 euros, chega a casa e fica com dúvidas: ‘Será que valeu a pena?’. E se um dia vê na internet o livro à venda por um preço mais baixo pensa: ‘Aquela livraria já me enganou uma vez, não vou voltar’. Não vale a pena estar a querer ganhar o dinheiro todo de uma vez.

Com que regularidade é que compra uma biblioteca? 

Numa semana vou a quatro ou cinco casas. Mas na maior parte das vezes não é propriamente uma grande biblioteca, são pessoas que têm 200, 300 livros em casa. Só não trago se forem livros muito feios, em mau estado, coisas que foram mesmo maltratadas, ou se forem autores que já não têm procura nenhuma. Uma coisa que nós aprendemos a conhecer é as partes da cultura do tempo dos nossos avós que não sobrevivem. Aqueles autores que enchiam bibliotecas e que hoje ninguém conhece.

Quanto pode custar uma biblioteca?

Varia muito. Desde bibliotecas que se compram a 500 euros, até três, quatro, cinco mil euros. Em Portugal há bibliotecas cujo valor chega a ultrapassar um milhão de euros, mas essas são vendidas em leilão. Até por uma questão de transparência: mesmo que as pessoas tenham uma boa oferta nunca sabem se podia haver uma melhor. Se for a leilão, sabem que recebem o que o mercado der. Há uns anos foi vendida a biblioteca do comandante Ernesto Vilhena, aquele senhor que era dono da Diamang e que tinha coleções de tudo quanto há. Deu para aí dez leilões de livros que no conjunto devem ter atingido mais de cinco milhões de euros.

Começámos esta conversa pela debandada de alfarrabistas desta zona. O facto de ter menos concorrência tem sido bom para si?

Ainda não fiz contas a isso, mas penso que é pior. Tenho a ideia de que nesta área a concentração é boa, atrai mais pessoas. Se houver várias livrarias juntas, as pessoas têm mais motivos para se deslocarem. Vão ao Largo da Misericórdia, se não encontrarem o livro numa encontram na outra.

As livrarias complementam-se?

Na altura em que vim para cá éramos muitos aqui à volta. O ambiente era mais simpático porque todos se visitavam uns aos outros, depois cada um tinha os seus clientes próprios e comprávamos muito uns aos outros.

Não havia competição?

Há sempre alguma competição, mas mais para comprar bibliotecas. Eu nunca me ressenti muito disso, porque a maior parte dos alfarrabistas trabalham na área dos livros raros, com muito valor, e eu trabalho com livros muito mais variados.  A minha filosofia é comprar muito, ter muita rotação… Mas ia-lhe falar de outra coisa. Há um fenómeno na Europa que são as aldeias de livreiros. A mais conhecida foi uma no País de Gales, Hay on Wye. Depois espalhou-se, só em França há oito. Os livreiros concentram-se em aldeias que estão a ficar abandonadas, onde o espaço é muito barato, arranjam armazéns ou antigas instalações de fábricas e põem lá uma grande quantidade de livros. As pessoas são atraídas pelo facto de saberem que nessa aldeia, por exemplo, há um milhão de livros em exposição.

É o paraíso dos amantes de livros…

Sabem que podem lá passar um dia inteiro e de certeza que vão encontrar alguma coisa que lhes interessa. Um francês meu amigo que vem cá muito vive numa dessas aldeias. Era funcionário do Banco Mundial. Depois, como sempre gostou de livros, abriu a sua livraria. Mas diz que entra uma pessoa ou duas por dia e há muitos dias em que não vende nenhum livro. Vende algumas coisas pela internet, mas não é uma atividade muito compensadora.

É inevitável que lhe pergunte: qual é o seu livro favorito?

É difícil dizer. Como sou católico tenho de dizer a Bíblia, não é? Mas, se quiser outro, digo-lhe A Cidade de Deus, de Santo Agostinho. É um livro para mim importantíssimo. Na área da ficção há o D. Quixote, que acho também um livro extraordinário, daqueles que apetece estar sempre a reler. Também gosto muito do David Copperfield, de Charles Dickens. E o Guerra e Paz também é um livro muito importante… Bom, já disse muito mais do que um… 

Qual foi o livro com que mais aprendeu sobre esta profissão?

Sobre a profissão devo dizer que aprendi mais com a prática do que em livros. Mas há um livro de um brasileiro chamado Rubens Borba de Moraes que é O Bibliófilo Aprendiz. Esse é muito interessante. Falta-nos um Bibliófilo Aprendiz português. Depois há livros estrangeiros em que também se aprende. Curiosamente uma pessoa que escreveu muito sobre livros raros e curiosidades literárias foi o pai do Benjamin Disraeli, o primeiro-ministro britânico. Não é tanto sobre o comércio de livros antigos, mas sobre coisas estranhas, estapafúrdias, curiosidades, raridades literárias, esses são mesmo muito interessantes.

Costuma estar cá mais de manhã?

De manhã estou sempre aqui.

À tarde, quando anda a ver bibliotecas, fica cá o seu filho. Tem-lhe transmitido aquilo que sabe sobre este ofício?

A parte do ofício sim, mas ele sabe mais do que eu da maior parte das coisas. Ele sabe mais de literatura e de filosofia – sabe mesmo muito – eu sei mais da parte prática, do dia-a-dia da livraria. Ensino-lhe alguma coisa, ele também me ensina alguma coisa do que sabe, até áreas bastante variadas. Vamo-nos enriquecendo.

Está a passar-lhe o testemunho?

Sim, embora eu não tenha essa preocupação. Nunca tive a ambição de ter um seguidor, até porque não me orgulho muito da profissão de alfarrabista. Vim para esta profissão porque uma pessoa que vem da área de Letras não tem muita saída – há a vida académica, mas é uma vida que eu acho aborrecida e sem interesse. O meu filho também fez um curso de Letras, e hoje em dia a carreira das Letras ainda é pior do que era no meu tempo. Mesmo com um nota muito boa, o que é que você faz? Na melhor das hipóteses tem uma bolsa para fazer doutoramento, ganha mil euros com exclusividade, e quando acabar o doutoramento não tem lugar na universidade, mesmo que seja o melhor aluno.

Foi ele que lhe pediu para vir para cá trabalhar?

Desde muito novo começou a fazer as feiras da Rua Anchieta, era uma maneira fácil de ganhar algum dinheiro. Depois começou a entrar mais na vida da livraria. Ele não faz só isto, também escreve para o Observador e para a Brotéria. Mas ter a livraria também dá uma certa independência. E penso que ele também acha que foi boa ideia ter investido nesta loja, e acho que quer dar alguma continuidade.

É natural que acabem por surgir ofertas muito apetecíveis, quase irrecusáveis. Como resiste a isso?

As pessoas vêm cá e eu digo que não está à venda e em geral despacho-as. Para dizer a verdade nunca pensei muito nisso.