MOSCOVO – Não sei por onde se começam a contar as cores do arco-íris, se da Terra para o céu, se do céu para a Terra, mais pote de ouro menos pote de ouro no final dele. No tempo da velha palmatória, havia uma mnemónica: vermelho lá vai violeta. Laranja, Amarelo, Verde, Azul, Índigo (LAVAI). Sei, no entanto que são sete as suas cores e que o sete é um número cabalístico que Pitágoras dizia ser o da perfeição.
Sete, sete, sete, sete, tantas vezes sete.
Sete notas musicais, divididas em sete escalas, sete pausas e sete valores; sete dias para a criação do mundo, contando com o de descanso; sete dias entre cada fase da lua; sete virtudes (caridade, esperança, fé, força, prudência, justiça e temperança) e sete pecados mortais (avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça e soberba).
Ao longo dos séculos, há uma reverência perante o sete.
E, neste Campeonato do Futebol, realizado na gigantesca Rússia que vai daqui, da cada vez mais ocidental Moscovo, até aos confins da Sibéria, Portugal vive sob o signo do sete, do seu 7, capitão da malta, figura central de uma equipa que, em dois jogos, viveu na dependência desse jogador extraordinário, atleta superlativo com alma de possesso que, de cada vez que se põe em movimento, dá a sensação que passa através dos adversários ignorando por completo todas as leis da natureza.
Cristiano Ronaldo está no topo do universo.
Não há ninguém, por aqui, que não repita o seu nome, a todas as horas de todos os dias. Foi ele que em Sochi, há uma semana, bateu no peito e soltou o seu grito incontrolável: «Estou aqui!».
Esteve. Mecanizado e duro.
Os seus três golos frente à Espanha não entraram apenas na história do futebol em Portugal: entraram na história dos Mundiais.
Pouco terão dúvidas. Se não fosse o capitão da seleção nacional já os portugueses estavam sentados pelos passeios e pelas ruas das cidades soltando lágrimas de esguicho, como escrevia Nelson Rodrigues, o grande mestre brasileiro da crónica.
Por isso, o sete não é um número, não é um algarismo, não é um caratere: é uma afirmação absoluta! A primeira e única quase perfeição.
E há, para todos em seu redor, a lei irrevogável do sete.
Ele sabe-o, sente-o e assume-o.
Continua a gritar, mesmo que para si próprio: «Eu estou aqui!»
E está. Na área adversária, a fazer os golos de Portugal, até agora todos; na sua própria grande-área, central entre os centrais.
Contra um país inteiro
Sabe-se como a segunda jornada deste apertado jogo dos grupos difere tão completamente da primeira. Os resultados vão alterando a forma de encarar o encontro que se segue, os erros tendem a ganhar tom de definitivos, as derrotas transformam-se em dramas familiares que a maior parte das seleções não tem capacidade para resolver internamente.
Depois do formidável jogo de Sochi, pleno de excitação e de movimento, o Portugal-Marrocos de Moscovo foi bisonho e mazombo em tudo o que se seguiu à promessa cumprida do golo de Ronaldo. Há muitos anos que não víamos uma seleção nacional sofrer tanto perante uma equipa à qual não se recusam méritos e cujas virtudes se não ignoram, mas que está longe de poder ter a audácia de fazer ao campeão da Europa aquilo que fez, atirando-o para um papel secundário de mero espetador das deixas do protagonista.
Diz o povo, naquela sua sabedoria infinita que ninguém se atreve a pôr em causa, que missinha de tostão não dá para hóstias. Povo crente, o nosso, entretido em terços e novenas, rezando aos santinhos e santinhas da sua devoção com a timidez tão própria de quem se acha indigno de suplicar diretamente a Deus. Durante longos momentos do confronto do Estádio Luzhniki, praticamente cheio, com mais de 78 mil espetadores tomados de um lirismo encantador, maioritariamente, tão maioritariamente marroquino que só se ouviram gritos em português nos segundos que se seguiram ao golo, Portugal limitou-se a volitar por ali com o entontecimento da traça perante a lâmpada. Foi de menos. Tudo menos a vitória, claro está. Perdão, não tudo: Ronaldo e Patrício foram imperiais até à protérvia.
Quatro pontos tem agora a seleção nacional a dois dias do jogo decisivo, lá em Saranks, na República da Mordóvia. Segunda-feira, frente ao Irão, o empate bastará para seguir para os oitavos-de-final, o mínimo dos mínimos para quem tem jogadores desta qualidade.
Só que, pela frente, surge-lhe o orgulho persa em toda a sua pompa, acrescido do habitual rigor profissional de um treinador português que já correu seca e Meca e está à beira de um feito impensável: Carlos Queiroz. Se a vitória frente a Marrocos no primeiro jogo (1-0) fez explodir os corações iranianos, atolando-os na mais brutal euforia, a forma com que depois de se verem em desvantagem com a Espanha foram à procura do empate, empurrando os espanhóis para movimentos aflitivos que é muito raro ver-lhes, deu-lhes um convicção inédita que seguir em frente é possível, mesmo à conta de Portugal.
Emocionado, o ayatollah Khamenei enviou à equipa uma mensagem motivadora. Os apelos do capitão Masoud foram ouvidos pelas altíssimas autoridades do país e o Estádio Azadi, que leva cerca de 90 mil espetadores, abriu-se a todos, mesmo para as mulheres que quisessem ver o jogo em ecrã gigante. Famílias inteiras caminharam para as bancadas sob os olhares dos soldados que apertaram as medidas de segurança, e também elas puderam viver, finalmente, a céu aberto a turbação de noventa minutos inolvidáveis.
Segunda-feira, Portugal terá no Irão mais do que um adversário: será um país inteiro a carregar aos ombros os filhos queridos da vitória.