A discussão sobre delação premiada e enriquecimento ilícito chegou ao Parlamento, depois de ter dado entrada uma petição com mais de quatro mil assinaturas a pedir a convocação de um referendo sobre se a Assembleia da República deve legislar novos diplomas sobre estas matérias.
A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias ficou encarregue de apreciar o texto, tendo nomeado o deputado socialista Fernando Rocha Andrade como relator. O relatório com a análise da petição foi apresentado na quarta-feira passada. O próximo passo é a discussão do tema em Plenário.
Com os olhos no exemplo brasileiro e tendo as acusações ao antigo primeiro-ministro José Sócrates como pano de fundo, os peticionários defendem que estas medidas podem ajudar a reduzir a corrupção. «A Justiça portuguesa não pode fazer milagres se não tiver um conjunto de leis que permitam penalizar os atos corruptos», defendem.
No texto da petição pode ler-se que o referendo que é pedido «está totalmente de acordo com todos os programas eleitorais que todos os partidos apresentaram e que pretendem reduzir a corrupção».
O relatório elaborado por Rocha Andrade começa por dizer que a Assembleia da República não poderia aprovar a realização de um referendo com o texto da questão proposta na petição: «Deve a Assembleia da República legislar novos diplomas acerca da Delação Premiada e do Enriquecimento Injustificado?».
Em primeiro lugar, na Constituição da República está escrito que cada referendo só deve recair sobre uma única matéria de cada vez. Em segundo lugar, as questões devem ser formuladas com «objetividade, clareza e precisão», o que não acontece com a enunciação dos termos jurídicos em causa, «cujo conteúdo pode em teoria ser bastante variado», acrescenta o relatório.
A verdade é que as matérias são realmente difíceis de definir e isso é um dos problemas da petição apontado por Rocha Andrade. «Os peticionários falam apenas nos termos sem definir exatamente quais são os contornos. No caso da delação premiada, pode ter muitos contornos possíveis. Já no caso do enriquecimento injustificado, nós conhecemos, sobretudo, os contornos do enriquecimento ilícito, que foi duas vezes chumbado no Tribunal Constitucional na legislatura passada», explicou o deputado do PS ao SOL.
Rocha Andrade defende ainda que «há contornos da delação premiada e do enriquecimento injustificado que são problemáticos de compatibilizar com a Constituição da República». No entanto, «como os peticionários não dizem exatamente qual é a definição destas figuras que defendem, a petição vai prosseguir para ser discutida em Plenário», acrescentou.
Numa posição pessoal, o deputado socialista refere que tem «imensas dúvidas quer sobre a compatibilidade constitucional quer sobre a utilidade e necessidade destas figuras».
Delação premiada
Segundo o relatório do deputado do PS, a delação premiada não está consagrada no direito penal português. Contudo, pode integrar-se num conceito mais vasto de ‘colaboração premiada’, um regime em que a colaboração do arguido – ou seja, o seu contributo para o sucesso da investigação criminal e para a descoberta ou condenação de outros arguidos – lhe traz benefícios.
O problema para Rocha Andrade é que, no debate público recente – muito também devido à Operação Lava Jato, no Brasil, que levou à condenação de Lula da Silva – a delação premiada de que normalmente se fala tem características próprias que se afastam das soluções do direito português.
«No Brasil, acontece que o Ministério Público tem, por exemplo, um magistrado e um deputado federal suspeitos de comparticipação num mesmo crime de corrupção. E decide, por exemplo, que o magistrado é o delator premiado e o deputado é o acusado. O primeiro resultado da delação premiada é que há um magistrado que é suspeito de um crime de corrupção e que não é acusado. O segundo problema é definir com que critérios é que o Ministério Público escolhe se é mais importante acusar A ou B», explica.
Sem benefício no combate à corrupção
Para o deputado socialista, esta medida – no caso extremo, como é usada no Brasil – não traz benefícios no combate à corrupção. «A única coisa que garante é que há um indivíduo que é suspeito de um crime de corrupção que não é acusado. Isso é que é o prémio. Portanto, não me parece que reduza a corrupção», afirmou.
Rocha Andrade refere que, no caso do sistema português, o delator também devia ser acusado do crime de corrupção. «Normalmente falamos da delação em crimes em que o delator também comparticipou e, portanto, o delator deixa de ter um processo crime, deixa de ser punido como a lei entenderia que devia ser punido e isso corresponde a menos redução de corrupção. É inevitável», defende.
Se considerarmos que enriquecimento injustificado é semelhante ao chamado enriquecimento ilícito – que já foi chumbado duas vezes no Tribunal Constitucional – define-se como a aquisição, posse ou detenção de «património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos».
Rocha Andrade afirma que considera muito difícil perceber a eficácia desta matéria, uma vez que a maioria dos países não admite a criminalização do enriquecimento injustificado ou ilícito.
O deputado refere ainda que vê graves problemas na medida. «O Ministério Público iria ficar, de repente, com um conjunto enorme de patrimónios de que não tem informação sobre a sua aquisição e iria começar a abrir investigações a torto e a direito, dispersando os meios de investigação. Além disso, haveria sempre quem dissesse: ‘Como é que estão a abrir uma investigação em relação àquela pessoa por causa daquele património e não àquela outra pessoa por causa de outro património?’», argumentou.