O homem que enfrentou as máfias de Leste e prendeu os etarras

Os seus olhos podem exprimir uma determinação implacável ou uma inesperada ternura – consoante está perante um interlocutor maligno ou alguém a quem o destino virou costas. Viu cadáveres mutilados, raptos, torturas, violações, assassínios. Durante escutas em direto, ouviu os últimos gritos das vítimas, sem nada poder fazer. A sua vida é, no entanto, um…

Há pelo menos uma década que o seu nome está em cima da mesa para liderar a Polícia Judiciária. Em 2008 é convidado pelo ministro Alberto Costa para o lugar. Mas habituado a raciocínios rápidos, próprios dos operacionais, e a saber esperar, como os bons organizadores, Luís Neves soube dizer que não. Como segunda escolha, o Governo nomeou então José Almeida Rodrigues, um diretor que se arrastou 10 anos no cargo sem fazer mossa. Chegou agora o seu momento. Como gostava de dizer aos ‘gajos e gajas da Malhoa’ – como na gíria das outras polícias é apelidado o pessoal da antiga Direção Central de Combate ao Banditismo, que dirigiu -, «isto não é um sprint, é uma corrida de fundo». 

Quando a 22 de novembro de 1995, de manhãzinha, estacionou em frente à ‘base Mike’ (cognome da DCCB) na avenida José Malhoa, em Lisboa, juntinho à Praça de Espanha, não tinha razão para ir confiante como era seu género. A casa era vista como uma espécie de quartel-general para polícias de elite. A fama vinha-lhe dos tempos do desmantelamento das FP-25. Esperava-o Orlando Romano, uma lenda de rosto cerrado e olhar vigilante, pouco dado a esbanjamentos emocionais. Com poucos meios e muita criatividade, tornara aquela Polícia um osso duro de roer e com reputação internacional.

Luís Neves estava longe de imaginar que fora ‘recrutado’ por ele. Nesse ano, o ‘Chefe’ – como um grupo restrito de amigos o trata – queria rejuvenescer a casa, livrar-se de velhos chuis com manhas. E enviara uma espécie de ‘olheiro’ para um curso no Instituto Superior da Polícia, em Loures, com o objetivo de selecionar os melhores. O agente, batizado legitimamente como o ‘Pescador’, recebera do chefe uma ordem específica: «Veja lá quem é o gajo que tem melhor perfil para vir para cá!». E o ‘Pescador’ recorda: «Escolhi o Luís. Ele era loiro, parecia um garoto, dei-lhe a alcunha do ‘Russo’».

Aos 16 anos era profissional de futebol

‘Russo’, ‘Faísca’ ou ‘Lobito’, os vários nomes de guerra que foi adquirindo, tinha um ar de eterno schoolboy, ninguém lhe dava mais de vinte e poucos anos, mas já estava com trinta. Tinha a força e a vitalidade de um touro, qualidades ganhas na intensa prática desportiva: aos 16 anos já era profissional de futebol, capitão da equipa de juniores do Cova da Piedade, e jogava a meio campo. 

José Monteiro, que também viria a ser escolhido por Orlando Romano para estagiar na DCCB, sendo atualmente coordenador da PJ da Guarda, era seu colega de quarto. Adianta: «Esperemos que agora seja também um bom distribuidor de jogo, como era na época».

Em comum, os dois homens tinham o curso de Direito, terminado em 1990, mas distinta vocação. Preferiam estar do lado dos bons. Com a licenciatura na mão, candidataram-se de imediato aos quadros da Polícia. Mas o concurso é impugnado e assim se mantém durante cinco anos. Só em 1995, já com muita experiência na barra dos tribunais, os dois amigos são chamados para o curso de inspetores da PJ.

 A escola do Instituto Superior de Polícia funcionava como uma espécie de internato. Os candidatos vinham dos quatro cantos do país, eram homens feitos, alguns com mulher e filhos, e nem sempre acasalam bem com a solidão. Luís Neves já tinha características de líder. Contava com as quebras humanas e sabia motivar os colegas: «Ele tinha escritório em Lisboa, mas preferia ficar com a malta, no terreno, como um operacional. E, nos momentos maus, puxava-nos para cima, característica que conserva ainda. É muito motivador», assinala o colega.

Acaba o curso com uma perna às costas, mas na DCCB, onde apenas os melhores são selecionados, não terá uma entrada fácil. Vinha do lado errado da barricada. No início dos anos 90 fora um dos advogados do grupo de Virgílio Candeias – um bando que fazia assaltos à mão armada e acabou detido pelos ‘gajos da Malhoa’. Os veteranos olham Luís Neves com reservas, escondem-lhe informação e trancam-lhe processos.

Ao fim do seu primeiro dia de estágio, Neves é chamado a Orlando Romano, que está acompanhado por dois históricos da PJ: Maria Alice e Vítor Alexandre. «Vai ter de escolher entre estes coordenadores quem quer para orientador de estágio», explica o chefe. Maria Alice, uma durona, testa-lhe a resistência: «Não tenho tempo para aturar estagiários!».

A primeira operação

O antigo advogado chega à DCCB quando a casa está numa atividade frenética. Uma vaga de assassínios, raptos e sequestros ligados ao narcotráfico assola o país. Vários grupos guerreiam-se no terreno. Uma das redes mais perigosas é liderada por turcos, implacáveis na cobrança de dívidas. Os homens da ‘Malhoa’ já tinham desferido um rude golpe na rede, detendo meses antes sete dos seus elementos, mas os otomanos mantinham-se ativos. 

Em dezembro, ainda Luís Neves está muito verde, não tendo um mês de casa, cai na ‘base’ uma informação em cima da hora: a namorada de um indivíduo que dera uma ‘banhada’ aos turcos fora sequestrada e o pai faria dali a umas horas a entrega do resgate pedido pelo bando para o libertar. Nem houve tempo para preparar a operação. Apenas tinham a descrição do progenitor. A noite caíra e uma chuva miudinha tornava o piso escorregadio. A malta da DCCB cerca a zona. Uma equipa monta guarda no estacionamento do Teatro Aberto, na Praça de Espanha, onde supostamente vai ocorrer a entrega. Um homem com uma flor e um saco na mão levanta suspeitas.

Luís Neves fixa a atenção numa mota com dois homens que faz inversão de marcha num sítio proibido, dirigindo-se de seguida para o tipo da flor. O estagiário deixa-se levar pelo instinto. Tinham de ser aqueles, pensa, e faz sinal aos colegas. Os da mota passam pelo alvo e arrancam-lhe o saco com o dinheiro. Começa a perseguição e o tiroteio. Vítor Marques, um perito na análise da informação, salta para o carro, cola-se à mota e tenta encostá-la ao passeio. Os dois turcos acabam por cair, mas põem-se em fuga.

Vítor Marques quase lhes deita a mão, mas escorrega numa camada de lama e cai. Luís Neves, porém, não os perde de vista. Os turcos separam-se, e um deles trepa como um gato pelo muro do IPO. O novato acompanha-lhe a passada e, depois de um tombo de dois metros de altura, acaba por encurralá-lo. A destreza demonstrada por Neves marca a reviravolta: os veteranos da Malhoa deixam de o olhar de esguelha. A operação terminaria em beleza: o outro turco seria detido e ainda nessa noite a vítima do sequestro seria libertada. Vítor Marques recorda a prestação do novato: «Percebeu-se logo que ele era espevitado e que ia a todas».

O rapto do filho de Sousa Cintra

O ritmo na Malhoa não pára. Trabalha-se sete dias por semana, 24 horas por dia, e a reserva e confidencialidade são parte integrante do sucesso. Os homens refletem os traços do líder: sempre otimista, de uma devoção sem quebras, que se distinguira pela astúcia e sangue frio nos momentos de tomar decisões. Sequestros e raptos, por vingança ou ‘banhada’ de droga, ligados a redes internacionais, marcaram os anos 90. 

Mas uma moda importada da vizinha Espanha pega entre os lusos. Figuras com destaque social e endinheiradas tornam-se também alvo de raptos. A estreia dá-se em 1998 com o sequestro do único filho do empresário e ex-presidente do Sporting José Sousa Cintra. O cérebro do plano era um economista casado com uma advogada, homem cheio de expediente que conhecia as rotinas e fraquezas da vítima. Miguel Sousa Cintra tinha uma vida pouco regular e iniciara-se na criação de cavalos. O grupo atrai-o à pousada de Sousel, distrito de Portalegre, sob o pretexto de um negócio com um puro-sangue lusitano.

Miguel cai no engodo. A um quilómetro do encontro, os raptores simulam um acidente e intercetam-no. Só que sofrem um revés: contavam com os ‘cabedais’ do pai da vítima e Sousa Sintra está incontactável, no Brasil, onde acabara de montar a sua primeira fábrica de cerveja.

Sousa Cintra Júnior sugere à dupla criminosa, como interlocutora, a sua namorada. A família não diz nada à PJ, contando com a libertação imediata depois de pago o resgate. Mas um oficial da PSP próximo do clã Cintra toma conhecimento da situação, percebe o perigo, e desloca-se à Malhoa. E Orlando Romano age na hora, como se estivesse sempre preparado para o que pudesse acontecer no segundo seguinte. Chama à unidade a namorada da vítima – que, seguindo as instruções dos raptores, acabara de deixar o dinheiro num eucaliptal na zona de Pegões, distrito de Setúbal.

As equipas são lançadas no terreno. Luís Neves, já tarimbado, segue no carro do chefe, mais a namorada do rapaz, que os levará ao local onde deixara o ‘papel’. Os raptores, já com os 60 mil contos nas mãos, tinham libertado a vítima. Mas passara pouco tempo sobre a entrega e a Polícia admitia ainda haver hipótese de os caçar no local. 

Nestes casos, cada minuto conta. Habituado a controlar a tensão, Romano acelera. À saída da estrada, para entrar na mata, a areia trai o condutor: o carro patina e acaba por embater numa árvore. Cuspido para a frente, Romano vai de cabeça contra o para-brisas, quebra o vidro mas o crânio permanece intacto. 

A noite está cerradinha, mas amena. O trio apeia-se e desloca-se em silêncio, fazendo o reconhecimento do local. De repente, uma luz de faróis penetra o denso arvoredo. Podem ser os raptores. Quem mais entraria no eucaliptal àquelas horas? Estão numa situação delicada. Não conhecem a repartição de forças e têm a vida de um civil nas mãos. Com os pés, afastam arbustos e deitam-se na caruma.

 A rapariga, vestida de branco, é um alvo apetecível. Cobrem-na com os seus casacos. As mãos do diretor e do inspetor sacam em simultâneo das Glock. Preparam-se para mandar parar os raptores e detê-los. Mas o carro muda subitamente de direção e eles só seriam presos três meses depois. Quanto a José Sousa Cintra, apenas tomará conhecimento do sucedido já com o filho a salvo.

Enfrentando as máfias do Leste

Em retrospetiva, Orlando Romano avalia o ex-estagiário que lhe ganhou a confiança. Só em determinados momentos se pode avaliar de que metal é um homem temperado: «Estive com ele muitas vezes no terreno, era corajoso, firme nas abordagens e muito trabalhador. Destacava-se em tudo: não arquivava inquéritos, não deixava nada por investigar. É muito fácil abandonar uma investigação. Mas mantê-la contra tudo e contra todos e fazê-la vingar não é para todos. Daquela escola, ele é ‘o último dos Moicanos’».

Luís Neves ganha traquejo. Com a queda do Muro de Berlim, caíra a Cortina de Ferro que dividia a Europa – e a Portugal começam a chegar as primeiras redes de máfias do Leste com base na Moldávia. Os grupos, constituídos por ex-militares, ex-KGB, ex-polícias e antigos reclusos, são de uma violência brutal e irão alastrar como uma doença incurável. Dedicam-se ao tráfico de armas, prostituição, narcotráfico e tráfico humano.

Com a União Soviética em precário equilíbrio, fileiras de homens, mulheres e crianças chegam a Lisboa enlatados em camionetas. As máfias aproveitam a desagregação do ‘farol do socialismo’ e passam a angariar trabalhadores, aliciando-os com bons empregos. Mas mal eles põem o pé em Portugal assenhoreiam-se dos seus passaportes e ficam com a melhor fatia dos seus salários. Quem se rebela é morto à pancada ou a tiro. Na Malhoa, estuda-se o novo fenómeno, recolhe-se informação, analisa-se, montam-se escutas e vigilâncias.

Partiam do zero. A língua, que não dominam, é um dos empecilhos. Mas o pior é o silêncio das vítimas, que preferem ter a vida a soldo a serem repatriadas – ou que as famílias no país de origem sofram represálias.

A ‘rede Borman’ torna-se o primeiro desafio dos ‘gajos da Malhoa’, o início de um combate sem quartel, onde todos arriscam encontrar a morte. Em 1999, Luís Neves já chegara a coordenador. Tem o paleio dos advogados, sabe lidar com os detidos, vai reunindo um filão de informadores que utiliza de forma eficaz. Chega a pagar-lhes do seu bolso. Inspira confiança e os presos ligam-lhe das cadeias. Pedem favores fáceis de resolver, como levar alguém ao funeral de um familiar.

Mais uma libertação

Em meados de maio, está Luís Neves de prevenção e a noite quase a mudar de turno, quando um homem lhe surge na Malhoa apavorado. Trata-se de um emigrante ilegal do Leste que trabalha para uma grande empresa de construção civil. Na sua companhia está um engenheiro da empresa. O primo do pedreiro fora raptado e a entrega do resgate estava marcada para a uma da manhã, junto ao Jumbo de Cascais.

Neves tem pouco tempo para montar a operação. Tornara-se um negociador nato e consegue que o patrão do moldavo adiante os 5 mil euros que a rede liderada por Borman – um tipo corpulento que pertencera a uma tropa especial soviética e que seguira as pisadas do pai, um conhecido chefe da máfia na Moldávia – exigia. Seria o parente da vítima, com o dinheiro que lhe fora confiado, quem iria ao encontro dos elementos da associação criminosa.

 Luís Neves não podia permitir que o homem fosse apanhado no ‘fogo-de-artifício’. Pede reforços. E com uma equipa de nove homens segue para a linha do Estoril. 

Do outro lado da barricada sabem que está gente que se organiza por células, como os terroristas. Uns funcionam no país de origem, e executam as famílias dos trabalhadores que se revoltam; outros atuam em Portugal, tratam da logística e da recolha de informação, e recebem os resgates. A base não conhece o rosto dos líderes. São peritos em contra vigilância e movem-se em carros de alta cilindrada. 

Luís Neves procura não cometer atos fúteis que os denunciem. No palco da operação monta o dispositivo e espera que o operário faça a entrega e que a vítima, que se encontra na bagageira de um BMW, seja libertada. Só nesse momento os ‘gajos da Malhoa’ avançarão com duas viaturas para ensanduichar o BMW. 

A ação começa. Neves bloqueia o carro e faz-se ao ‘pendura’, enquanto um colega se coloca à frente do veículo, de arma em punho. Vítor Marques solta a película: «Quando se chega a coordenador, muitos pensam que o importante é a liderança, mas ele sempre esteve no terreno, gostava da proximidade das bases. É um verdadeiro operacional. Herdou a emotividade da Maria Alice e a ratice do Orlando Romano».

Pioneiros a nível europeu

Em três anos, a DCCB desmantela os vários cartéis – com a colaboração das vítimas, que recolhem informações e chegam a ajudar a decifrar as escutas entre os líderes do Leste. Quase 100 homens são detidos. A técnica profissional da unidade espantou as congéneres. Um antigo operacional, que opta pelo anonimato, faz o sumário: «Fomos pioneiros e um exemplo a nível europeu. Chegou a ser criado um grupo de trabalho de combate à máfia do Leste, no âmbito da Europol, que contou com a nossa colaboração para erradicar o fenómeno».

Orlando Romano, o magistrado com faro de polícia, hoje procurador-geral adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, estava à época quase de saída da direção do departamento. Traça o perfil de Neves: «Ele autonomizou-se com as máfias do Leste. Chegámos a prender um deputado ucraniano e vários chefes de grupo. Era perseverante, puxava pela cabeça, queria aprender».

Outros diretores passaram pela Malhoa. Luís Neves nunca abrandara o ritmo. A sua memória, tipo esponja, absorvia tudo, até pormenores aparentemente inúteis. Conhece de trás para a frente os seus inquéritos e os de outros, e controla a comunicação. Arranja sempre forma de, quando um caso chega a tribunal, ser a primeira testemunha. Não perdera algumas habilidades dos tempos de advogado e, com uma astúcia cortante, destruía todos os oponentes. O velho colega que prefere ficar na sombra perdia, às vezes, a paciência: «Enquanto interlocutor, nunca vi ninguém assim. Tinha uma memória de elefante. Chegava lá, escalpelizava o caso, expunha os factos, a prova, e nós éramos dispensados. Ele era muito intrusivo». 

A detenção de Mário Machado

Em 2004, Teófilo Santiago, o único elemento da PJ que recebera o crachá de ouro e vivera toda a vida numa enorme pressão, chega a diretor da Malhoa. Vinha calejado no crime violento e tinha na carteira um rol de imbricados processos – como o da rede de contrabando de tabaco batizada de ‘Aveiro Connection’ ou o primeiro golpe de Oliveira Costa, o homem que mais tarde estoirou o BPN.

Santiago escrutina Luís Neves: «Foi ele quem liderou a investigação aos Hells Angels e aos Hammerskins, que acabou com a detenção do Mário Machado. Não são ações imediatas, podem levar anos, mas têm imenso relevo. Porque o difícil é isto: ter o controlo das situações antes que elas aconteçam. Isto é a grande máxima do combate ao terrorismo. E ele foi sempre acompanhando estes grupos, as suas atividades, ligações e eventos internacionais».

Numa época em que a Europa começa a ser um dos alvos de radicais islâmicos, Luís Neves está à frente da secção de terrorismo da Malhoa. Nos primeiros anos do século XXI, o mundo ocidental acordava para um prolongado pesadelo. Em 2004, na véspera de eleições gerais, os espanhóis paralisam com os ataques em duas estações ferroviárias madrilenas, e a explosão de um comboio a caminho de Atocha provoca 193 mortos e dois milhares de feridos. Um ano depois, seria a vez de Londres tornar-se no novo palco de atentados da Al-Qaeda.

Teófilo Santiago coloca-o no teatro internacional: «Ele foi o nosso elo de contacto com os serviços e forças internacionais. No terrorismo, as ações não têm a visibilidade de outros crimes, porque raramente ocorrem. Mas ele estava sempre a atualizar os dossiês, que são a garantia de que, se acontecer algo, já vamos a meio do caminho para o deslindar. Isso revela uma das suas grandes qualidades: o diálogo». 

Essa é, segundo os que o rodeiam, a arte que melhor domina. Outro inspetor, que prefere manter-se na sombra, demonstra a facilidade com que solta o discurso, mesmo quando tem de improvisar: «Uma vez, íamos para a uma conferência internacional, e ele pergunta-me: ‘Tens aí uma folha?’ Passei-lhe o papel e ele num instante esboçou um discurso e foi brilhante».

‘Vamos dar cabo do gajo’

Nesse mesmo ano, é enviado para a academia do FBI, em Quantico, nos EUA, para apurar características que já revelava. É aí que tira o curso em liderança e processos de tomada de decisão. As suas qualidades são públicas, nos meios criminosos alguns trazem-no atravessado. 

Pedro Felício, agora na proa da unidade de combate ao financiamento de terrorismo da Europol, ainda se recorda de como Luís Neves era temido em vários meandros. Quando trocam de lugares, Neves passa para o terrorismo e Felício fica com os assaltos e raptos. O outro entrega-lhe alguns processos sob a sua alçada – e pede-lhe prioridade nos casos Máfia da Noite e Passerelle, uma associação criminosa liderada por um ex-PSP, Alfredo Morais, o líder de seguranças de casas noturnas, e pelo ex-líder da rede de casas de striptease Passerelle, Vítor Trindade, que haveriam de ser condenados – malta da pesada que tornara a noite lisboeta numa espécie de Faroeste digna do cineasta Quentin Tarantino.

Quando Felício começa a analisar o inquérito, percebe o melindre da situação: «Fiquei até tarde a estudar o processo. Tratava-se de um grupo grande e muito perigoso que impunha seguranças em casas noturnas por todo o país e em troca exigia o pagamento de um imposto de proteção. A pouco e pouco, obrigava os donos das casas a darem-lhes sociedade ou a venderam-nas ao grupo a troco de meia dúzia de tostões. Era um caso muito difícil de provar, devido ao manto de silêncio a que estavam obrigados, com episódios de violência vários».

Mas quando, já noite fora, começa a ouvir as escutas, percebe o perigo que corre Luís Neves: «Nas conversas, os líderes diziam: ‘Temos de acabar com esse cabrão, vamos dar cabo do gajo’. E ele nunca pediu segurança como muitos fazem. Mais tarde, quando saíram da prisão, foram a casa dele. A partir desse dia, com mulher e filhos sem proteção, passou a andar no carro com uma caçadeira, que faz mais estragos do que a arma atribuída». 

O caso do Rei Gob

Em 2007, Teófilo Santiago muda de pasta. Luís Neves fica a liderar a DCCB, que passa a designar-se Unidade Nacional Contra Terrorismo (UNCT). Essa responsabilidade exige dele que seja ao mesmo tempo psicólogo, um pouco confessor, um pouco adivinho e homem de sorte. 

Não houve dias monótonos na sua direção. Foi o atentado à bomba que, em  dezembro de 2007, matou José Gonçalves, então proprietário do bar O Avião; foi o rapto de um cidadão inglês que, no seguimento de uma cobrança de droga, a ‘malta da Malhoa’ conseguiu libertar do cativeiro, no Algarve, com uma orelha e dois dedos decepados; foi a captura de um serial killer argelino, conhecido em França como o ‘Violador dos Comboios’; foi o desmantelamento de bandos que assaltavam com explosivos, por todo o país, caixas de Multibanco; foi o caso Rei Gob. Tudo lhe rebentou nas mãos.

Este último foi assim designado pelo facto de o psicopata, de olhar doentio, ter espelhado a personalidade na construção da sua habitação: uma espécie de castelo para alienados, com as devidas muralhas, que para um cidadão comum mereceria escárnio mas que, nas pacatas aldeias em volta, se tornara uma atração para adolescentes na fase das grandes descobertas. O desaparecimento em 2010 de uma rapariga de Carqueja, aldeia da Lourinhã, lançou o alerta.

Na Malhoa faz-se o trabalho do costume – e, em dois tempos, descobre-se que naquela zona já outros três jovens se tinham evaporado. Dos seus telemóveis chegava a mesma mensagem à família: «Vou para França». Os desaparecidos tinham em comum a manutenção de relações com o Rei Gob, um pervertido sexual. Em retrospetiva, Pedro Felício resume o caso: «Naquele momento não tínhamos nem corpos, nem testemunhas, que viviam amedrontadas por ele, nem prova direta. Só comunicações telefónicas, análise de movimentações de suspeito e vítima, o motivo e muita prova indireta, um manancial esmagador de indícios. Se partíssemos para buscas e não encontrássemos os corpos, como veio a acontecer, não o conseguíamos deter».

Luís Neves marca uma reunião com o Ministério Público e com o juiz de instrução criminal. Pedro Felício analisa os dotes oratórios do superior: «O Luís, apesar de ser o diretor da unidade, veio connosco e, de uma forma simples, descreveu o caso e os indícios ao pormenor. O juiz compreendeu, finalmente, a gravidade da situação e deixou-nos avançar».

Prisão de etarras em Portugal

O homem amadurecera, não aceita pressões, e sabe dar coices no momento certo. Foi o que aconteceu com o caso da ETA. Segundo um relatório a que o SOL teve acesso, três anos antes de ter sido descoberta em Óbidos uma verdadeira fábrica de preparação de explosivos, Luís Neves percebera que os etarras tinham pontos de recuo em Portugal. Tudo começara em 2007, quando as autoridades espanholas o avisam que, para quebrar a vigilância policial, viaturas alugadas em solo luso, com matrículas portuguesas, estavam a ser usadas como carros de apoio em atentados. 

Na secção de terrorismo da Malhoa os homens não ficam parados. Descobrem as rent-a-car onde os etarras, com papéis falsos, alugaram as viaturas, e abrem três inquéritos por abuso de confiança e falsificação de documentos. 

Gera-se uma tempestade política. O Governo, para não expor as fragilidades do país, pretende abafar o caso. Mas o diretor da DCCB faz braço-de-ferro e não os arquiva. Nunca é apanhado desprevenido e quando, em janeiro de 2010, dois elementos da ETA, que se dirigem para uma casa clandestina que lhes serve de apoio, em Óbidos – onde seria desmantelada uma fábrica de preparação de bombas -, são apanhados numa operação stop, Luís Neves conseguiria provar o que andava a dizer há anos: Portugal fora escolhido para ser uma das bases de apoio logístico à ETA.

Os etarras, como sempre, deslocavam-se em parelha. A mulher, que ia num carro à frente a ‘bater o terreno’, ao ser mandada parar come (literalmente), mesmo na cara das autoridades, a página de identificação do passaporte do irmão, que se encontra alojado na casa de apoio em Óbidos. Mas a poucos quilómetros de distância, o companheiro – que transportava detonadores elétricos para serem utilizados na ignição de explosivos – estragava tudo ao parar por momentos para fazer uma necessidade, levando à caçada de ambos.

A notícia chega à Malhoa com estrondo. Luís Neves, que já ia a caminho de casa quando recebe a nova, faz marcha atrás. Envia para Moncorvo, com ordens específicas, dois dos seus melhores homens do terrorismo: «Quando chegarem lá, façam o filme e comuniquem». Mas o crime está fora da sua alçada territorial. O mais certo era, no dia seguinte, irem ao juiz da comarca e serem reencaminhados para Espanha.

Um sprint  na noite

Luís Neves desliza facilmente de um papel para o outro. Com a bagagem de advogado, recorre a uma manigância processual. Desenterra os velhos inquéritos, faz um sprint noite fora para conseguir trazer para a Malhoa os dois detidos. Um golpe jurídico de mestre, recorda Pedro Felício: «Ele foi decisivo. Foi recuperar os três inquéritos que abrira com os carros alugados pela ETA em Portugal. Esteve, com outro colega do terrorismo, sempre em contacto com os espanhóis, a recolher informação. Conseguiram fazer um historial, aí com umas 50 páginas, para demonstrar a relação entre esses casos e o da Torre de Moncorvo – e conseguiu o aval do MP, com quem montou toda a estratégia».

Nado em Castelo Branco mas criado em Angola, para onde foi com apenas um ano de idade e de onde regressou após a independência, Luís Neves está finalmente ao leme da Direção Nacional da PJ, depois de 23 anos na UCCT. Esperemos que não desiluda. Orlando Romano, um dos seus mestres, desce o pano com um happy end: «O Luís sempre se destacou e já chega tarde à direção da Polícia. Já lá devia estar há anos».