Um dos detidos da megaoperação realizada esta semana pela Polícia Judiciária (PJ) junto dos Hells Angels é um dos seguranças do Urban Beach que agrediu com brutalidade dois homens à porta da discoteca lisboeta, a 1 de novembro de 2017. A agressão de João Ramalhete foi na altura gravada por frequentadores deste espaço noturno e o filme colocado na internet, num episódio que acabou por levar as autoridades a mandarem encerrar o estabelecimento.
O raide policial desta quarta-feira, coordenado pela Unidade Nacional Contra Terrorismo (UNCT) em conjunto com congéneres europeus, nomeadamente o Departamento Federal de Investigação da Alemanha (BKA), levou ainda à detenção de seis estrangeiros do grupo de motards que tinham mandados de detenção europeu, por serem suspeitos da prática de crimes graves nos seus países de origem.
A ação dos elementos daquela unidade da PJ, que movimentou uma força de cerca de 400 inspetores dos quatro cantos do país, divididos por 80 equipas, terminou com a constituição de 59 arguidos, a apreensão de armamento – como armas de fogo de vários calibres, soqueiras, teasers, martelos, bastões e facas de mato –, cocaína e até atas de reuniões e de operações do bando feitas pelos cabecilhas dos Hells Angels.
Operação ao pormenor
Algumas destas armas foram utilizadas em crimes praticados pelo grupo e servem agora de prova para, por exemplo, incriminar 19 dos seus membros, também detidos pelo ataque violento ao grupo rival da fação portuguesa dos Los Bandidos, liderada por Mário Machado, ex-líder dos skinheads, num restaurante no Prior Velho.
A operação foi montada ao pormenor. Pelas cinco da manhã já as diversas equipas estavam divididas pelas zonas onde iriam atuar. Fora do seu habitat, os operacionais estavam em permanente contacto com elementos da investigação, que, com os suspeitos sob escuta e vigilância, iam fornecendo informações sobre os movimentos dos suspeitos.
No Cacém, em casa dos pais, João Ramalhete foi apanhado de surpresa pela Polícia. Não foi a primeira vez: na madrugada de 1 de novembro de 2017, Magnusson Brandão estava com dois amigos a petiscar nas rulotes a funcionar noite fora e João fazia a segurança ao estabelecimento noturno Urban Beach com mais dois colegas quando atacaram Brandão. Os relatos de Magnusson ficariam registados a frio.
Ramalhete seria um dos homens ligados à noite que seria detido na operação, ficando apenas com termo de identidade e residência. Mas este não foi o único crime que levou a PJ a arrancar com a operação.
A UNTC sabia que os inspetores iam enfrentar indivíduos perigosos, suspeitos da prática de vários crimes, como tráfico de armas e de drogas, extorsão, tráfico de mulheres para prostituição e envolvimento em esquemas ilegais de segurança privada a estabelecimentos de diversão noturna. João Ramalhete era um dos motards envolvidos neste tipo de esquemas.
O ex-segurança trabalha agora como técnico de iluminação e foi surpreendido pelos inspetores em casa dos seus pais, onde se encontrava a descansar, depois de ter estado a trabalhar na organização do Jubileu de Diamante de Aga Khan, que ocorreu um dia antes do cerco aos Hells Angels.
Provas do crime
O manancial de armas encontrado acabou por ser fulcral para fazer a ligação a outros crimes, nomeadamente os que ocorreram no passado mês de março, em Loures: a disputa de território e guerras antigas ligadas ao mundo da noite estiveram na origem do conflito com o grupo Los Bandidos, de Mário Machado, que terminou com seis feridos.
A UNCT, que acompanha estes fenómenos ligados à extrema-direita e aos motards, já desferira, em 2008, um rude golpe nos skinheads, com a condenação de Mário Machado e seis dos seus membros por vários crimes, entre eles o de sequestro, roubo e discriminação social.
Com a detenção dos rivais, os Angels conquistaram-lhes território e reforçaram posições em áreas como o tráfico de droga e a liderança de esquemas relacionados com a segurança da noite.
Desligado de qualquer ideologia política, o grupo Hells Angels, com origem nos Estados Unidos, assenta numa forte hierarquia e recruta homens entre os próprios skinheads e indivíduos com trajetória nas forças especiais e um temperamento alicerçado na fidelidade e obediência.
A origem do conflito
Entretanto, Mário Machado aproveitou o facto de estar preso para tirar o curso de Direito e começar a forjar um novo partido – a Nova Ordem Social (NOS) – e a fortalecer a sua ligação aos Los Bandidos através da criação dos Red&Golg, o braço português destes últimos. Terá sido um encontro agendado entre Mário Machado e alguns elementos do topo dos Los Bandidos que levou a que os Angels lhes montassem uma cilada.
Nesse mês de março, num sábado, enquanto representantes europeus dos Los Bandidos almoçavam com os portugueses, resguardados num restaurante do irmão de Mário Machado, no Prior Velho, cerca de 20 elementos dos Angels, encapuçados, invadiram o local e caíram sobre os rivais, atacando-os com facas, paus, barras de ferro e martelos. Entre as seis vítimas, que foram internadas no hospital de Santa Maria em estado crítico, encontrava-se o líder do Los Bandidos da Alemanha.
Mário Machado safou-se por pouco. Atrasado, o líder português chegou ao local e, ao dar conta das motos e carrinhas do grupo rival que bloqueavam as entradas da rua onde se situa o restaurante do irmão, manteve-se afastado. Só quando os outros fugiram, já com a Polícia no terreno, o líder do partido nacionalista regressou ao local. Confrontado pelos jornalistas que ali acorreram, Mário Machado respondeu com um gesto – passou com a mão rente ao pescoço, evocando a imagem de uma decapitação – e uma promessa: «Nesta festa, vocês com certeza vão ter muito para falar no futuro!».
Esta rixa deixou as autoridades em alerta. A UNCT entrou em campo para apanhar os fugitivos e evitar represálias e, em conjunto com o SIS e as outras forças de segurança, passou a monitorizar aquela associação criminosa. A partir desse momento, sob escuta e apertada vigilância, os Angels, que não ficaram à espera que Mário Machado cumprisse a sua promessa, prepararam um novo ataque ao grupo rival, indo buscar reforços a outros grupos satélite. Com a Concentração Internacional de Motards, que se realiza entre 19 e 23 de julho no Algarve, à porta, a UNCT, para evitar os novos desacatos que estariam a ser planeados pelos Angels, passou-lhes a perna.
O grupo mais perigoso
As autoridades seguem os passos dos Hells Angels desde 2002, altura em que se instalaram em Portugal. Aquele que é considerado o grupo de motards mais perigoso do mundo foi fundado nos anos 40 nos Estados Unidos da América e desde muito cedo associou-se ao mundo do crime. Um dos episódios mais conhecidos envolveu uma das figuras mais emblemáticas do rock: em 1969, os Hells Angels estavam responsáveis pela segurança do Altamont Speedway Free Concert, um grande festival no norte da Califórnia. Segundo declarações de um ex-agente do FBI à BBC, os seguranças acabaram por espancar e esfaquear uma jovem negra até à morte. Meredith Hunter tinha apenas 18 anos e estava no local para assistir ao concerto dos Rolling Stones. Depois deste episódio, Mick Jagger recusou-se a trabalhar novamente com os Hells Angels. Os motards ficaram tão enfurecidos que decidiram vingar-se e matar Mick Jagger. Planearam atacar por mar, conseguindo assim entrar no jardim da casa do cantor, mas uma tempestade acabou por dar cabo dos planos – nenhum dos homens morreu, mas, que se saiba, não houve mais tentativas de homicídio contra Jagger, explicou o ex-agente Mark Young.
Em Portugal também existiram vários episódios de violência associados a este grupo de motards. Em 2010, por exemplo, o Tribunal de Sintra condenou seis membros do bando a cinco anos de prisão com pena suspensa pelos crimes de sequestro, roubo, ofensa à integridade física, coação e extorsão a um antigo membro.
Já em 2013, 12 membros dos Hells Angels foram constituídos arguidos por atacarem elementos das forças de segurança que estavam de folga e participavam na Concentração de Motards de Faro.
Requisitos e hierarquia
A violência impera neste tipo de grupos e nem todos são bem-vindos. Várias páginas dedicadas ao mundo dos Hells Angels consultadas pelos SOL referem que um motard que queira entrar neste bando tem de ser homem, caucasiano, ter uma mota e «não pode ter feito uma candidatura ao cargo de polícia ou guarda prisional», nem «ser pedófilo». Quando integra o grupo passa a ser designado full colour.
De acordo com o site de um dos núcleos dos Hells Angels, a figura máxima é o presidente – normalmente é um dos fundadores e está responsável por organizar todas as reuniões e impor a ordem sempre que necessário. Segue-se o vice-presidente, que substitui o presidente na sua ausência, e o secretário, que é responsável pelas atas das reuniões e pela correspondência do núcleo. Existem também o tesoureiro, que assegura as contas do núcleo e cobra as quotas aos seus membros.
A categoria ‘sargento de armas’ é uma das mais importantes dentro do núcleo: estes homens «asseguram a ordem nas reuniões e nas atividades do grupo, garantem que os membros cumprem com as regras e os modelos de conduta quando em interação com outros membros ou ‘outsiders’ e defendem os membros do clube, propriedades e territórios de ameaças exteriores», refere o mesmo site.
Existem ainda os ‘veteranos’, responsáveis por mediar conflitos dentro do grupo e aplicar «processos disciplinares», e os ‘capitães da estrada’, que planeiam as viagens, asseguram a formação durante as mesmas e gerem a manutenção dos veículos.
A hierarquia tem um grande peso para os Hells Angels – mesmo durante as viagens, os motards organizam-se de acordo com o seu estatuto. Os blusões que vestem exibem as divisas conquistadas e o escalão que ocupam no bando.