A transferência de competências em 21 áreas para as 308 autarquias está a gerar polémica com alguns autarcas a ameaçar rasgar o acordo firmado entre o Governo e a Associação Nacional dos Municípios (ANMP).
Os autarcas, de várias cores partidárias, e sobretudo do norte do país, consideram o processo como um «logro» e enviaram cartas ao secretário-geral da ANMP, Rui Solheiro, a apontar várias críticas. Os presidentes das câmaras frisam ainda que as verbas previstas para cada município, para suportarem os custos com os salários dos funcionários que vão herdar, com a manutenção de edifícios e com os serviços que vão passar para a sua responsabilidade estão «erradas».
Criticas que não foram bem acolhidas na ANMP. «Lastimavelmente a aplicação do logro é aplicada à la carte. A carta é um logro porque é uma informação equívoca do que está em presença. Isso é que é um logro. Não sou pessoa de alinhar nesse tipo de procedimentos. Um logro é ofensivo, é impróprio», disse ao SOL o presidente da ANMP, Manuel Machado, em resposta às criticas dos autarcas.
Além disso, Manuel Machado, que é presidente da Câmara de Coimbra, enviou na semana passada uma carta aos autarcas a pedir-lhes que lessem «mais atentamente a documentação», lamentando ao SOL a situação, frisando que «não é hábito» corresponder-se com os seus «pares através da comunicação social».
Também o vice-presidente da ANMP, Ribau Esteves, criticou os autarcas que «falam de forma superficial em vez de falarem com os seus colegas».
As críticas dos autarcas
Uma das vozes mais críticas foi a de Eduardo Vítor Rodrigues, presidente da Câmara de Vila Nova de Gaia, eleito pelo PS. Na carta que enviou a Rui Solheiro, datada de 9 de julho, classificou o processo como um «logro» e que «ficou aquém das expectativas».
Em causa está o levantamento enviado há duas semanas pela ANMP às autarquias com o número de funcionários, os edifícios e os serviços que cada câmara vai herdar com a descentralização. O levantamento estava acompanhado de uma estimativa de custos para suportar as despesas que cada autarquia terá. No total, o pacote financeito previsto para as 308 autarquias ronda os 890 milhões de euros anuais, sendo que cada município vai receber valores diferentes, de acordo com o número de funcionários, de serviços e de edifícios.
Os autarcas tiveram três dias para confirmar os dados e só agora estão a conseguir analisar o documento com mais calma. Mas, de acordo com o presidente da Câmara de Vila Nova de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, as «contas estão erradas» e, «nem de perto e nem de longe, chegam para suportar as despesas».
De acordo com as contas da ANMP, Vila Nova de Gaia vai receber 20,7 milhões de euros. Mas o autarca do terceiro maior concelho do país disse ao jornal i que no levantamento foi considerado «apenas um funcionário para todos os centros de saúde do concelho» que atualmente funcionam com «cerca de 30 pessoas». Para os 18 agrupamentos escolares está calculado um custo de 140 mil euros anuais para a manutenção de todos os edifícios e, segundo os cálculos do autarca «só em três escolas» vão ser gastos «três milhões de euros».
Por isso, Eduardo Vítor Rodrigues garante que não vai avançar com a descentralização caso os números não sejam corrigidos.
O mesmo cenário está a acontecer na Câmara de Vila Nova de Famalicão. O autarca Paulo Cunha, do PSD, lembra que, na saúde por exemplo, o poder da autarquia esgota-se na pintura e limpeza de uma parede.
No entanto, a ANMP garantiu ao jornal i que os dados enviados têm como base cálculos feitos pelo Governo.
Além destes dois autarcas, também Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, já fez saber que vai levar a reunião de câmara, marcada para dia 24 deste mês, a saída da ANMP. Mas não é líquido que o consiga e que faça aprovar tal proposta na Assembleia Municipal do Porto. À RTP3, Rui Moreira, voltou a defender ontem que «está em curso um processo de tarefização e não de descentralização».
Lei aprovada para amanhã
A lei-quadro da descentralização já foi votada na generalidade no Parlamento e a votação final está agendada para esta quarta-feira. A par da descentralização, os deputados vão votar ainda a revisão das Lei das Finanças Locais, que trouxe algumas alterações para o financiamento das autarquias.
A descentralização foi o primeiro acordo firmado entre o Governo e PSD, sendo que Rui Rio é um defensor desta reforma. E tanto o PS como o PSD não fecham a porta a aprofundar a descentralização, sendo que o acordo estabelecido abre a porta à regionalização.
No entanto, durante a votação das leis no Parlamento, tanto o PSD como o PS foram alvo de duras críticas de todos os partidos: PCP, Bloco de Esquerda e CDS.
Os comunistas acusaram mesmo o Executivo de aproveitar a descentralização para uma «desresponsabilização do Estado em várias competências, para tramar as autarquias». Já os bloquistas, através do deputado Pedro Soares, dizem que o bloco central está a fazer «publicidade enganosa» e a «enganar os portugueses ao confundir desconcentração com descentralização».
Mas para o presidente da ANMP, o acordo conseguido com o Governo para a descentralização e para a revisão das Finanças Locais traz ganhos para as autarquias. Manuel Machado lembra que «nenhum» dos municípios reduz os valores que hoje recebe. Pelo contrário, «aumenta entre 2% a 10%, em função de um conjunto de parâmetros», explicou ao SOL, recusando que a ideia de que as autarquias passarão a ter papel de tarefeiros. Este reforço de verbas corresponde a um aumento de 200 milhões de euros já em 2019. Além disso, as autarquias conseguiram introduzir uma norma-travão que impede que a transferência orçamental fique abaixo de 5% face ao ano anterior.
A somar a estas alterações as autarquias conseguiram ainda nas negociações subir de 5% para 7,5% a participação das câmaras no IVA gerado localmente, em bens essenciais como, tais como comunicações, eletricidade, água e gás, bem como nos setores de alojamento e da restauração. regra que se vai aplicar a partir de 2020 e que traduz um encaixe de 72 milhões de euros nos cofres das câmaras.
Por tudo isto, a descentralização não é sinónimo de delegação de poderes, defende a ANMP que garante que não encara os municípios como «servos da gleba».
O processo de descentralização vai arrancar no próximo ano e cada autarquia vai ter liberdade para ir assumindo as responsabilidades nas 21 áreas de forma gradual, até 2021, data das próximas eleições autárquicas.