Uma armadilha fatal

A Oposição não conseguiu derrubá-lo, os seus inimigos no Regime também não, e o homem que governou Portugal durante 40 anos só viria a cair por ação de uma inofensiva cadeira de braços.

Salazar está a passar férias no forte no Forte de Santo António do Estoril, que fica junto à Estrada Marginal que liga Lisboa a Cascais. É o primeiro dia de agosto de 1968. O presidente do Conselho pega no Diário de Notícias, que acabava de chegar pela mão do seu calista particular, Augusto Hilário, e senta-se descuidadamente numa cadeira de braços no terraço. Mas a cadeira desequilibra-se e cai para trás, arrastando com ela o ocupante – que bate violentamente com a nuca no lajedo de pedra.

O calista foi a única testemunha do acidente, embora já só visse Salazar estatelado no chão. Mas o presidente do Conselho pede-lhe para guardar segredo. A governanta Maria de Jesus estava na cozinha e só ouviu o estrondo da queda, correndo a ver o que se passava. A mulher e o calista dizem-lhe que é melhor chamar um médico, mas Salazar recusa: dentro de dias receberá o seu amigo Eduardo Coelho para uma consulta de rotina e não vê razões para antecipar a visita.

 

Operação na Cruz Vermelha corre bem

Nessa consulta, Eduardo Coelho não observa nada de anormal. Mesmo assim, adia uma viagem ao estrangeiro e instala-se no hotel Estoril Sol, para ficar perto de Salazar, e fica em alerta. Tinha razões para isso: o presidente do Conselho começa a sentir dores de cabeça, náuseas e tonturas, mas não conta a ninguém. Como homem do campo, vivendo em quase clausura na cidade, não gosta de médicos e muito menos de hospitais. 

Mas no dia 6 de setembro, mais de um mês depois da queda, Salazar acaba por ceder e contar ao médico o que sente. Pouco depois, o Cadillac ao seu serviço dirigir-se-ia ao Hospital dos Capuchos, onde funciona um serviço de neurocirurgia dirigido pelo médico Vasconcelos Marques, tido como um homem de esquerda mas uma sumidade em acidentes cerebrais. Este diagnostica-lhe um hematoma intracraniano que lhe pressiona a massa encefálica, e aconselha uma intervenção imediata. Horas depois Salazar é transferido para o Hospital da Cruz Vermelha, em Benfica, onde se realizaria a operação. A intervenção corre bem e o doente começa a recuperar.

 

Salazar recupera

Passado o primeiro susto, as altas figuras do regime respiram de alívio. À Cruz Vermelha acorre diariamente uma corte que inclui ministros, deputados, membros do clero e das Forças Armadas, amigos. No quarto do doente, Maria de Jesus, a governanta de Salazar, zela por tudo. O presidente deixa a cama e começa a receber as visitas sentado numa cadeira. Mas a 16 de setembro, dez dias depois da operação, Salazar sofre um AVC que se revelará fatal. Nunca mais recuperará. 

Os médicos dão-no como incapaz para voltar a exercer o cargo, e a 26 de setembro o Presidente da República, Américo Thomaz, anuncia ao país aquilo que durante décadas parecera impossível: a demissão de Salazar, substituído por Marcello José das Neves Alves Caetano, ex-ministro da Presidência, professor universitário e reitor da Universidade de Lisboa, que viera a demarcar-se paulatinamente do chefe do Governo, tendo mesmo renunciado ao Conselho de Estado.

 

Ex-ministros e amigos pagam conta do hospital

Mas ninguém diz a Salazar que foi substituído. As visitas procuram-no e veneram-no como se continuasse a governar, e os ministros vão a despacho com ele, numa encenação patética. Regressa a S. Bento, sendo fotografado por um paparazzi na ambulância que o transporta, e o seu rosto parece já o de um defunto. No Verão de 1969 dará uma insólita entrevista ao jornal francês L’Aurore onde fala como chefe do Governo e analisa Marcello Caetano, as suas qualidades e defeitos, desconhecendo estar a referir-se ao homem que já ocupa há um ano a cadeira do poder que ele ainda julga pertencer-lhe.

Durante os dias de internamento, Salazar confiara a Maria de Jesus um inesperado segredo: juntara umas economias para pagar a despesa do funeral, mas, caso o Estado a liquidasse, a governanta deveria usar o dinheiro para comprar mobília para a casa que acabava de adquirir. Para lá dessas economias, o presidente do Conselho não tinha nada. A conta do internamento na Cruz Vermelha seria paga por ministros e amigos, que se associaram para o efeito – como contaria muitos anos mais tarde o seu último ministro da Educação, José Hermano Saraiva.

 

O ‘mago das Finanças’

Filho do feitor da família Perestrello, de Santa Comba Dão, Salazar seguiu as pisadas do pai – só que, em vez de ser feitor de uma família, foi durante 40 anos feitor do país.

Católico, asceta, abstémio, detestava o comunismo e fez o juramento de salvar o país da ideologia bolchevique. Poupou-o à 2.ª Guerra Mundial, numa intrincada ação diplomática onde não se juntou nem aos Aliados nem às potências do Eixo. Mais tarde, em 1961, iniciaria uma guerra colonial com vista a preservar o império, que achava dever transmitir intacto aos que lhe sucedessem. A unidade do território era para ele sagrada.

Herdara um país em ruínas, abalado por uma República perdulária que o deixara de rastos. Em 16 anos tinha havido 45 governos e 8 presidentes da República. A instabilidade política e social era enorme – e quando o general Gomes da Costa arrancou em Braga, no dia 28 de Maio de 1926, disposto a tomar o poder, recebeu um apoio quase unânime. Os portugueses estavam cansados de revoluções, de guerras entre os partidos, de atentados. E o país ainda sofria a ressaca da 1.ª Grande Guerra, onde o Corpo Expedicionário Português fora dizimado na batalha de La Lys.

 

Recusa empréstimo externo

Mas os militares são preparados para fazer a guerra e não para governar. Assim, uma vez vitorioso o golpe iniciado em Braga, e depois de dois anos de desgoverno militar, foram chamar Salazar a Coimbra para assumir a pasta das Finanças, esperançados nos seus conhecimentos económicos e na elevada convicção que alardeava. E ele não os desiludiria. Poria as Finanças em ordem num ano, conseguindo um superavit orçamental, depois de recusar um empréstimo da Sociedade das Nações, por considerar as condições vexatórias. Chamaram-no o ‘mago das Finanças’ e as mulheres portuguesas entregar-lhe-iam os ouros que possuíam para salvar as contas do país. Era apoiado pelos católicos, mas no seio do poder era um homem quase isolado. Apenas se impunha pelo seu trabalho. Definindo um rumo, abriria caminho para chegar a chefe do Governo – onde chegaria em 1932. 

Alguns dos militares que tinham feito o 28 de maio foram presos, outros afastados. Metodicamente, Salazar construiu uma ditadura mansa, com um partido único, uma polícia política e uma censura. Elevado a ‘pai da Pátria’, governaria entre 1932 e 1968 como um monarca absoluto. Fez eleições fantoches, mas mesmo que fossem livres ganharia a maior parte delas, pois os 16 anos de República haviam sido muito traumatizantes, assim como o desastre de La Lys. E a poupança do país à 2.ª Guerra Mundial, o milagre económico e uma ousada política de Obras Públicas, impulsionada por Duarte Pacheco, trouxeram-lhe um enorme apoio e elevaram-no à categoria de mito.

 

A cadeira que substituiu a oposição

Em 1968, quando caiu da cadeira no Estoril, tinha 79 anos. E nessa altura já era dado quase como eterno no poder. A oposição não tinha maneira de o destronar, apesar da implantação do Partido Comunista, que sempre conseguiu manter no interior do país uma estrutura clandestina. E no lado do Regime ninguém tinha coragem para o fazer.

Quanto à guerra colonial, com exceção da Guiné, a situação das outras colónias parecia militarmente controlável.

Tendo sofrido vários atentados, designadamente um à bomba planeado por anarquistas, haveria de ser vencido por uma inofensiva cadeira de braços – que se revelou uma armadilha fatal.