Como fazer o retrato de uma figura tão complexa – e até contraditória – quanto Fernando Pessoa? O poeta e ensaísta angolano Zetho Cunha Gonçalves encontrou, para este desafio, uma solução a um tempo simples e engenhosa: recuando às origens. Em vez de uma biografia clássica, optou por um mosaico de ensaios, memórias, cartas, testemunhos e poemas do próprio Pessoa ou de pessoas que o conheceram em primeira mão. O resultado são outras tantas janelas para a personalidade multifacetada do Autor. Fernando Pessoa – Um Retrato Fora da Arca exigiu dez anos de pesquisa intensa, não apenas em livros, mas, sobretudo em revistas e jornais »improváveis», como o próprio organizador explica ao b,i. em entrevista concedida por email.
A escolha do título (“um retrato fora da arca”) revela alguma irritação com toda a aura (quase moda) que se gerou em torno da arca de Fernando Pessoa?
O título inicial, bem mais poético, era Fernando Pessoa: As Vozes da Intimidade. Proposto pelo editor Luís Oliveira, e com a concordância do organizador, acabou por ficar Fernando Pessoa: Um Retrato Fora da Arca. Porém, o título não pretende, de modo algum, revelar irritação, nem em relação ao Pessoa agora em moda, nem à tão célebre arca. Pretende, isso sim, dar a ler um Pessoa mais autobiográfico, humana e literariamente, e um Pessoa na voz de quem teve a presciência de lhe notar e reconhecer a grandeza da Obra (tão vastamente dispersa) quando tantos o queriam na prisão ou no manicómio, e com quem ele realmente privou, e neste livro lhe traçam um retrato mais humano e fidedigno do cidadão que dá pelo nome de Fernando António Nogueira Pessoa.
Numa época em que a personalidade e a obra de Pessoa suscitam tantas teorias e tanta especulação, achou que era importante regressar a quem o conheceu em primeira mão, de modo a obtermos um retrato mais próximo e fiel do poeta?
O que me levou a organizar este livro foi a questão que me coloquei: quem, na verdade, em vida de Pessoa, deu pela sua grandeza e pela genialidade da sua Obra? São sempre muito poucos, e em todos os tempos, como ainda hoje se pode facilmente verificar com os contemporâneos de agora e aqui, os prescientes a darem pela grandeza dos seus pares. E, com Pessoa, como com tantos outros antes dele (de Camões e Fernão Mendes Pinto a Cesário Verde e Camilo Pessanha, para lembrar algumas das figuras maiores da Cultura portuguesa) aconteceu o mesmo.
Na verdade, quem melhor pode traçar as linhas do rosto e as cambiantes da alma de alguém, mesmo ou sobretudo quando esse alguém se chama Fernando Pessoa, se não aqueles que com ele mais de perto conviveram, e a quem Pessoa mais revelou de si, da sua intimidade e da sua obra? E é precisamente aí que reside o maior fascínio deste livro: um retrato «fora da arca», elaborado a partir dos múltiplos e variados testemunhos sobre o quem era e o como era, para cada um, o poeta dos heterónimos; ou, ainda, e não de somenos importância, a sua relação e atenção humanas, em permanente estado de dadivosa disponibilidade para com os outros. E, neste sentido, sem nenhuma falsa modéstia o afirmo, há umas poucas de novidades nada despiciendas para uma melhor abordagem do fenómeno pessoano…
A leitura destes textos trouxe-lhe surpresas sobre a vida ou a personalidade de Pessoa?
Naturalmente que sim. Muito embora imaginasse Pessoa a mostrar a alguns poucos os seus escritos ainda a ferver de tão recente fatura, confirma-o Alfredo Guisado de maneira contundente, no testemunho «Fernando Pessoa e a sua influência na literatura moderna»: «É preciso conhecer o que ele escreveu e que não publicou. O que ele lia a alguns dos seus amigos como se lesse a uma multidão. Porque Fernando Pessoa só ficava satisfeito quando dava a conhecer as suas obras àqueles dos seus amigos que escolhia propositadamente para esse fim. Lia os seus belíssimos poemas e os excertos de outros em preparação, que infelizmente a morte lhe não deixou concluir, e de novo os guardava, como se os tivesse lido a uma legião de leitores.» Isto, para além do retrato humano que dele nos dá, quando, por exemplo, o encontrava na rua, «com aquele seu modo modestíssimo de andar, que o apagava por completo entre a multidão», para, por fim, e referindo-se aos heterónimos, afirmar que «foram efetivamente quatro grandes poetas portugueses que desapareceram no mesmo caixão de Fernando Pessoa, quatro formidáveis nomes que hão de ficar gravados para sempre na História da nossa literatura.»
Fazendo um balanço do que Orpheu significou para a literatura portuguesa, Alfredo Guisado dá ainda testemunho vivo das reações trogloditas provocadas pela publicação da revista, dando azo a uma «luta encarniçada contra aqueles que tentavam limpar da poeira um passado que enchia de reumatismo a nossa literatura, uma luta que ia da crítica violenta, guiada pela má vontade, até à ameaça de arruaceiros. A luta foi de tal ordem, que nos vimos obrigados a suspender Orpheu depois da saída do 2.º número, porque chegavam ao desaforo de organizarem grupos de caceteiros para nos espancarem, no caso de continuarmos a publicação desta revista. (…) Os jornais do Norte e do Sul do país encheram colunas de prosa a nosso respeito, sacudiram a opinião pública atirando com os nossos nomes como quem publica uma lista de doidos, tentaram lançar-nos ao ridículo.»
O depoimento de César Porto, cuja afinidade com Pessoa vem da astrologia, e de quem literariamente está nos antípodas, é outra bela surpresa pelo retrato que ali estabelece e pelo que narra da leitura astrológica sobre o fim trágico de Mário de Sá-Carneiro.
Em «Recordando o poeta e o amigo», Silva Tavares revela-nos a generosidade e a atenção aos seus pares, quando nos fala de um Pessoa datilógrafo de versos alheios e revisor tipográfico desses mesmos versos, sublinhando como «o Fernando professava em alto grau o culto da amizade»…
Porém, é a carta de Raul Leal (Henoch) a Pessoa, sobre o suicídio de Mário de Sá-Carneiro, o documento que neste livro mais me surpreendeu e comoveu, não só pelo seu inquestionável valor humano, mas, também, pela importância literária e filosófica que toma, como revelação, ainda que em embrião, do sistema filosófico do Vertiginismo criado por Raul Leal (Henoch), «o mais obscuro colaborador de Orpheu», e que «é o único verdadeiro ‘maldito’ da literatura e da cultura portuguesas do século XX», como afirmo no prefácio a «Notícia do Maior Escândalo Erótico-social do Século XX em Portugal».
Augusto Ferreira Gomes, na entrevista concedida a Óscar Paxeco refuta a biografia canónica de João Gaspar Simões, referindo que Pessoa «nunca passou pela miséria nem é verdade que tenho sido vencido pelo álcool»…
Com todos os erros que se possam imputar a João Gaspar Simões (e não serão poucos, como os elencados por Augusto Ferreira Gomes na citada entrevista), é inquestionável a importância capital do seu trabalho para a divulgação de Pessoa e da sua obra. E, ao nome de Gaspar Simões, há que acrescentar os de Luís de Montalvor e de Adolfo Casais Monteiro, a quem cabe a primazia na publicação mais sistematizada da obra poética ortónima e heterónima do autor de Ficções do Interlúdio.
O retrato que resulta destes textos desfaz alguns mitos?
Eu creio que sim. Bastará atentar no mito do Pessoa gélido e misógino, aqui contraditado à saciedade no belo e privilegiado depoimento de Ofélia Queirós, quando ela se não coíbe de referir certos arroubos de paixão, como nessa «outra vez, num desses seus ataques repentinos, estávamos nós na paragem do eléctrico, na Rua de S. Bento; empurrou-me para o vão de uma escada. Não percebi o que era; até pensei que fosse ele que, pela sua timidez, tivesse visto alguém e não quisesse que nos vissem juntos. Mas, sem eu esperar, agarrou-me com toda a força e beijou-me: um beijo enorme, enorme.»
Para quem imagina o poeta como uma figura algo antissocial, solitária, também surpreende a quantidade de amigos que surgem mencionados nestas páginas. Afinal Pessoa não era, como se costuma dizer, um “bicho-do-mato”?
De modo algum Pessoa era um ser bisonho ou um ‘bicho-do-mato’. Muito pelo contrário: era um ser de convivialidade, que, embora tímido, tinha um apuradíssimo sentido de humor, que encantava quem dele se acercasse. E era alguém que gostava de se rir, e «ria como uma criança», como o lembra Ofélia Queirós.
Escreveu no prefácio que é na homenagem que a Presença lhe faz, em 1936, «que Fernando Pessoa, o poeta, começa a nascer em crescendo para o mundo». O nome de Pessoa, à data da sua morte, era apenas conhecido de um círculo restrito de figuras do meio literário? Ou a notícia do seu funeral no Diário de Notícias permite concluir que já era uma figura bem conhecida fora desse círculo?
Na verdade, a obra tão vastamente dispersa de Pessoa era já uma alentadíssima soma de poemas e de prosas do mais variado teor, aquando da sua morte. Por outro lado, Pessoa esteve no centro do furacão das mais violentas polémicas do seu tempo, acabando por ser mais conhecido aquando da publicação do artigo sobre as sociedades secretas, já nos últimos tempos de vida, fama que não granjeara com a publicação de Mensagem, sequer com o prémio que lhe fora atribuído… Mas, se é vasta a sua colaboração na imprensa, que leitores tinha essa mesma imprensa, quando parte importante dela eram revistas de tiragens certamente não muito grandes, de difícil penetração no mercado, e de tão curta duração a maioria delas? Isso, fatalmente, fará com que Fernando Pessoa seja apenas apreciado por um número relativamente pequeno de eleitos, e são esses leitores atentos que lhe darão um espaço à sua medida na Presença, que é justamente a revista que mais longamente lhe rende homenagem na morte (cujos textos neste livro se reproduzem na íntegra), nunca deixando de incluir nos números subsequentes colaboração de Pessoa e seus heterónimos.
Assim, o n.º 36 da Presença, de que Jorge de Sena disse ser «ainda hoje uma peça fundamental da bibliografia fernandina.», se tornou um marco fundamental na divulgação mais lata de Fernando Pessoa e da sua obra, razão por que afirmo ser ali «que Fernando Pessoa, o poeta, começa a nascer em crescendo para o mundo». E não tem parado de continuar nascendo para o mundo…
Fora dos círculos literários, chamemos-lhes assim, Pessoa era conhecido e estimado nos estabelecimentos comerciais onde trabalhara, quer pelos patrões quer pelos empregados. E, também nestes casos, o leque de pessoas não formava certamente nenhuma legião… o que significa que é a poesia quem vai dar o Pessoa a conhecer-se ao mundo culto dos anos de 1940, tendo a sua obra vindo a conquistar um número cada vez maior de leitores, um pouco por todo o mundo, desde então.
Dos textos (autobiográficos ou não) escritos pelo poeta, qual considera o mais revelador da sua personalidade?
Não há uma só linha escrita onde não esteja implícita, e não raro inteira, mesmo quando sub-reptícia, a autobiografia do seu autor, e Pessoa não é exceção à regra. Mas, respondendo concretamente à sua questão, creio ser na belíssima carta para o poeta brasileiro e companheiro de Orpheu, Ronald de Carvalho, na correspondência para Armando Côrtes-Rodrigues (e na lamentavelmente perdida e dirigida a Mário de Sá-Carneiro) que se encontra em grau maior de revelação, no mais rigoroso sentido da palavra, a personalidade de Fernando Pessoa.
No ensaio ‘O que é a metafísica?’, Álvaro de Campos ‘corrige’ e argumenta contra Fernando Pessoa. Estas contradições e conflitos são comuns no universo pessoano?
Sim, o ortónimo, e, muito em particular visando ou sendo visado por Álvaro de Campos, não raro e em variadas situações, rebate ideais, entra em discordância ou mesmo em polémica. É um dos característicos da obra de Pessoa, desde quando, por exemplo, no começo da polémica que em 1922 teve início na revista Contemporânea sobre a publicação da segunda edição das Canções, de António Botto (de que neste livro se publicam o texto que abre a contenda, «António Botto e o ideal estético em Portugal» e o manifesto que sela a polémica, «Sobre um manifesto de estudantes»), Álvaro de Campos escreve no n.º 5 da Contemporânea, rebatendo, ponto por ponto, todo o texto de Pessoa, defendendo inclusive a obra de Botto com uma coragem que Pessoa ele-mesmo não ousou, e acabando por pedir ao diretor da publicação, José Pacheko: «Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.» No fundo, esta espécie de diatribes entre ortónimo e heterónimo(s) era uma forma de Pessoa dar azo ao pleno exercício da sua prodigiosa inteligência, quiçá divertir-se com as próprias situações inauditas que criava.
Imagino que tenha feito muita pesquisa para reunir estes textos. Onde e como os procurou? Deixou outros de fora?
Foram dez anos de trabalho e de pesquisa, não só no material já editado em livro, mas, sobretudo, em revistas e jornais os mais improváveis. Essas pesquisas foram levadas a cabo na Hemeroteca Municipal de Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal e Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil, onde me foi possível transcrever, tal como foi originalmente dada a público, a carta de Pessoa ao poeta brasileiro Ronald de Carvalho, no jornal Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, a 12 e 13 de Fevereiro de 1955, onde saiu com o título «Carta inédita de Fernando Pessoa a Ronald de Carvalho».
Não podendo garantir que não me tenha escapado algum texto importante, lamento que não figurem neste Retrato Fora da Arca, por motivos óbvios de edição, toda a correspondência de Mário de Sá-Carneiro para Pessoa, e a correspondência integral de Pessoa para Armando Côrtes-Rodrigues, indiscutivelmente «dos mais pungentes monumentos epistolográficos da história da literatura portuguesa».
Falta, porém, no presente livro, por não ter sido autorizada pelos herdeiros a sua reprodução, o peculiaríssimo ensaio genealógico-biográfico de Mário Saa, «[Um retrato de Fernando Pessoa]», o qual pode ser lido pelo leitor interessado em A Invasão dos Judeus, Lisboa, edição do autor, 1925, pp. 291-295. Enfim, «malhas que o império tece…»
Quando e em que circunstâncias começou a interessar-se pela vida e obra de Fernando Pessoa? E quando começou a estudá-las de forma mais sistemática?
Fernando Pessoa, que é inquestionavelmente um génio, nunca foi «o meu Poeta». Na Angola colonial, onde nasci e cresci, também os feriados nacionais de Portugal eram todos celebrados. E foi justamente na comemoração de um desses feriados, o 10 de Junho (Dia da Raça, se chamava então) de 1967, que eu, obrigatoriamente inserido no desfile escolar, tive que ler em público o poema «Padrão» do livro Mensagem, de Fernando Pessoa. Esse poema, como é sabido, tem que ver com a ‘descoberta’ de Angola por Diogo Cão, razão da sua escolha.
Foi esse o meu primeiro contacto com a obra poética do genial malabarista das máscaras e dos heterónimos. Anos depois, fui lendo a sua obra, tão vasta e desigual. Enquanto leitor, tenho para mim que a obra poética de Fernando Pessoa e seus heterónimos carecia de uma escolha antológica implacável, baseando o seu critério de feitura apenas na mais extrema qualidade estética e poética.
Relidas as antologias existentes e de que tenho conhecimento, elaboradas todas elas com os mais nobres e variados propósitos, em nenhuma achei o prazer estético e a deleitada fruição de leitura que a mim mesmo me queria oferecer. Daí, ter organizado Os 47 Poemas de Vida de Fernando Pessoa: Antologia de Cabeceira, que são (resguardando toda a subjetividade que qualquer escolha deste jaez sempre comporta) os mais belos e fundamentais poemas da sua obra.
E, na sequência desta antologia, reuni todos os textos de ficção, começados e acabados pelo autor, em Contos completos. Depois, coligi todos os textos que enformam aquela que foi talvez a mais violenta polémica intelectual do século XX em Portugal, espoletada por Fernando Pessoa, em Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal e, noutro volume, este Fernando Pessoa: Um Retrato Fora da Arca, onde acolhi todos os textos dos testemunhos dados à imprensa escrita por aqueles seus contemporâneos com quem mais intimamente conviveu, foi amigo, e, não raro, sobre quem escreveu, ou a quem mais revelou da sua intimidade literária.
Não existindo nenhum livro de prosas de Pessoa para um público juvenil, organizei também um volume, em vias de publicação, Paixões & Aventuras de Fernando Pessoa para Jovens Irreverentes.
Aqui muito à puridade lhe digo, que a prosa de Pessoa (e não me refiro apenas ao Livro do Desassossego) me interessa e encanta bem mais que a sua multímoda obra poética.