É um teste de pressão em 48 horas. O Papa Francisco chega hoje à Irlanda, para presidir ao Encontro Mundial das Famílias, mas os holofotes mediáticos não vão estar apontados na direção de questões ligadas à pastoral familiar. Cinco anos e meio depois de ter começado, o pontificado de Bergoglio enfrenta a maior onda de choque e de turbulência.
Por um lado, o Vaticano vê-se a braços com um novo mega escândalo de pedofilia, desta vez no estado americano da Pensilvânia. Por outro, há um circo de feras montado em torno do Papa, cada vez mais evidente e menos silencioso – de tal forma que há já quem garanta que um terço dos cardeais que integram o Colégio Cardinalício consideram (ainda que, por enquanto, a maioria só murmure nos bastidores) que o estilo de Francisco se aproxima da «heresia».
Até aqui, o atual Papa tem-se mostrado à prova de ondas de choque e hábil em comunicar. Esta semana, depois de divulgada uma carta em que pede perdão pelos abusos sexuais na Igreja americana, a Santa Sé anunciou que Francisco se irá encontrar, este fim de semana, com vítimas de abusos na Irlanda (ver texto na página seguinte). Ao fazer questão nesse encontro, o Papa sabe que terá de enfrentar o tema e encontrar uma estratégia para minimizar estragos. Até porque, em 2009 e 2010, o seu antecessor, Bento XVI entrou em queda livre devido a escândalos semelhantes, na Irlanda e na Alemanha.
Foi só o começo de um calvário que acabou com a sua resignação, fortemente motivada por opositores de dentro da Igreja – com ataques, crises, tensões no Governo da Cúria e o escândalo Vatileaks. Em 2013, com a eleição de Bergoglio, todos estes temas saíram de repente da agenda mediática, que passou a centrar-se totalmente nos gestos e nas palavras do novo Papa. «Uma retórica de mel transformou Francisco numa personagem melodramática», escrevia , na altura, o jornalista italiano Mario Giordano.
A ideia do Colégio Cardinalício de trazer para Roma um Papa «vindo do fim do mundo», distante das lutas de poder na Cúria, parecia ter funcionado. A Francisco caberia unir as fações divergentes que guerreavam dentro da Igreja de uma forma tão evidente que se tornara insustentável. Mas, cinco anos depois, o Papa argentino vê-se, também ele, apanhado em tramas e guerras de bastidores. A última evidência do estado de tensão dos opositores do sumo pontífice é um apelo aos cardeais da Igreja Católica divulgado muito recentemente, vindo de um grupo de teólogos e outros intelectuais, quase todos americanos, a propósito da alteração que Francisco fez ao Catecismo – que passou a considerar a pena de morte «inadmissível» em qualquer caso.
O texto é arrasador e pede aos cardeais, que são conselheiros do Papa, que o sensibilizem para acabar com uma situação «gravemente escandalosa». Isto porque, defendem, a Bíblia admite a pena de morte em determinadas situações e enveredar por outro tipo de doutrina é adulterar o sentido das Escrituras. «[O Papa] já manifestou publicamente, mais do que uma vez, a sua recusa em transmitir esta doutrina e (…) tem trazido grande confusão à Igreja», lê-se no texto.
A oposição ao Papa vem em crescendo, entre a incredulidade da ala mais conservadora da Igreja e o medo dos que poderão estar comprometidos. Em dezembro do ano passado, o jornalista britânico Andrew Brown escrevia que Francisco se transformara mesmo num dos homens mais odiados do mundo. E citava uma conversa que manteve com um cardeal, em que este dizia: «Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado. Sempre que dois padres se encontram, falam sobre o quão horrível Bergoglio é… ele é como Calígula: se tivesse um cavalo, fazia dele cardeal. Não pode publicar nada disto, senão serei despedido».
Certo é que a carta dos teólogos não foi a primeira iniciativa escrita dos opositores de Francisco. Em setembro de 2016, um grupo de cardeais conservadores – os alemães Walter Brandmüller e Joachim Meisner, o italiano Carlo Caffarra e o americano Raymond Leo Burke – escreveram ao Papa, acusando-o de lançar a confusão com a publicação da encíclica Amoris Laetitia [Alegria do amor], em que Francisco propõe que a Igreja seja mais acolhedora face às realidades das famílias contemporâneas, admitindo que os divorciados possam, em alguns casos, aceder à comunhão. O Papa preferiu ignorá-los e nunca, sequer, lhes respondeu.
O estado de graça do atual Papa chegou ao fim. E se meses depois da sua eleição já se discutia quando terminaria, a verdade é que há cinco anos ninguém previa que corvos muitos parecidos com os que ensombraram o pontificado de Bento XVI pudessem vir a sobrevoar o do Papa Francisco. Sendo certo, como escrevia o vaticanista Andrea Tornielli, que todos os sumos pontífices gozam de boa imprensa e boa imagem no começo dos pontificados. Até o próprio Bento XVI, teólogo alemão com fama de reservado e solitário, gozou de um certo estado de graça nas primeiras semanas. Consciente da efemeridade destes fenómenos, o antigo confessor de Francisco em Buenos Aires, Frei Berislao Ostojic, mostrava-se, logo em 2013, preocupado com a boa fama que o atual Papa estava a angariar. «A experiência mostra-nos que, com frequência, aqueles que hoje exaltam amanhã, por razões ideológicas, poderão passar-se tranquilamente para o lado oposto», escreveu Ostojic numa carta supostamente privada, mas que acabou divulgada num portal croata.
Não se sabe ao certo qual será a estratégia que o Papa Francisco seguirá deste fim de semana em diante. Mas parece evidente que alguma coisa irá mudar, para que o Osservatore Romano não tenha de voltar a escrever, como fez em 2012 falando de Bento XVI, que o sumo pontífice se transformou num «Papa cercado por lobos».