A maquete de Salazar e os pequenos-almoços de Amália

‘Sala de jantar’ dos condes de Barcelona e lugar de eleição de políticos, empresários e artistas, o English Bar abriu pela mão de um escocês, para dar cobertura à sua atividade de informador dos serviços secretos britânicos. José Manuel Cima Sobral, o proprietário, conta-nos a história.

No átrio de entrada do English Bar não cheira a comida, mas a madeira: madeira antiga, escurecida e bem tratada. Não falta muito para o meio-dia e, na luminosa sala de refeições debruçada sobre o mar, os empregados estão a preparar as mesas para o almoço – a «mise en place», como lhe chama o proprietário, José Manuel Cima Sobral. Para que tudo esteja nos eixos, hoje acordou, como sempre, às seis e meia da manhã. «Nesta vida, há uma regra de ouro: temos de ser os primeiros a entrar e os últimos a sair». À tarde desforra-se com uma sesta, ou não fosse ele de ascendência espanhola, mais concretamente galega.

O anfitrião encaminha-nos para uma sala mais pequena e recatada, a do English Bar primitivo. A mesa do canto, atrás da nossa, foi onde Marcelo Rebelo de Sousa escreveu a sua tese de doutoramento.

Nos tempos que correm dá muito jeito ter duas salas – assim José Manuel Cima pode gerir as marcações consoante as simpatias ou os ódios de estimação entre clientes. «Isso é fundamental», considera o proprietário. «Independentemente de se saber muito ou pouco de cozinha, tem de haver compreensão relativamente aos clientes. Nos últimos tempos, por causa daquilo que se tem passado na banca, é preciso gerir muito bem» quem se senta onde. E até há quem lhe ligue a perguntar se está lá esta ou aquela figura com quem prefere não se cruzar.

Mas também pode acontecer o contrário, que é como quem diz coincidências felizes. Quando Joaquim Oliveira queria adquirir à PT a Lusomundo Serviços, que detinha um conjunto de órgãos de comunicação como o Diário de Notícias, o 24 Horas e vários outros jornais e revistas, foi José Manuel Cimas que apresentou o empresário do Norte a Patrick Monteiro de Barros. «Conheço o Patrício há muito tempo, trato-o por tu, e disse-lhe que o Joaquim Oliveira tinha interesse em ficar com a parte deles dos jornais e das revistas». O negócio concretizou-se. «Depois o Joaquim Oliveira até festejou aqui a concretização. Mal sabia ele as chatices e problemas que lhe ia trazer».

José Manuel Cima esclarece – «não sou lobista». Mas também não é nenhum leigo no que respeita a negócios. Embora sonhasse seguir uma carreira na Marinha (o seu pai foi embarcadiço), acabou por licenciar-se em Gestão no ISEG, onde foi colega de Ricardo Salgado, de quem continua amigo. «O Ricardo é meu colega de curso. Ia com ele para a sala de jantar do conselho de administração do Banco Espírito Santo e pedíamos para nos levarem as calculadoras facit. Eu era o homem que sabia mexer naquilo».

Conciliou sempre os estudos com o apoio aos pais no restaurante. Nas alturas de exames chegava a fazer diretas e «fumava um maço de tabaco inteiro para aguentar». Já na altura tinha a incumbência de percorrer os mercados de manhã para comprar os produtos que depois eram servidos à mesa. «Passava no Mercado da Ribeira e chegava à faculdade com o carro cheio de compras para o restaurante. Era gozadíssimo pelos colegas. Assistia às aulas teóricas e depois vinha para aqui».

Terminada a licenciatura (que na altura se chamava Finanças), José Manuel Cima ainda trabalhou numa empresa desta área, passando depois por vários restaurantes da família, até se fixar definitivamente no restaurante do Monte Estoril. «Você vai-se rir. Na altura ainda se podia estacionar o carro na Marginal».

A fama do Cimas atravessa fronteiras, muito graças à sua clientela cosmopolita. Jorge Amado, por exemplo, escreveu na Folha de S. Paulo: «Fomos jantar a um restaurante de sublime cozinha portuguesa, propriedade de galegos, com nome inglês ‘English Bar, porquê, vá-se lá saber…». Averiguemos então as origens deste nome.

 

Salazar exigiu uma maquete

Foi ainda no século XIX que a família materna do proprietário emigrou da Galiza para Portugal, acabando por fundar ou tomar conta de várias casas emblemáticas, como o Gambrinus, o Paris e o Mónaco.

Os pais de José Manuel Cima Sobral mudaram-se de Lisboa para o Estoril em 1952, quando o filho tinha «de 12 para 13 anos», para assumirem os comandos do English Bar. O espaço, que ocupava uma pequena villa construída em 1890, tinha sido inaugurado durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Estoril era um centro internacional de espionagem, pela mão do escocês Horace Bass, «um tipo pequenino», «que o abriu como bar para dar cobertura à sua atividade de informador dos serviços secretos ingleses». Os seus sócios eram um italiano com pergaminhos nas artes gastronómicas e um barman do Hotel Palácio. «O Horace Bass vivia na Travessa do Ferragial, mas de vez em quando fazia-nos uma visita. Vinha com o cão e andava com o seu boné e aquelas calças de tecido escocês com atilhos», explica José Manuel Cima.

 A configuração atual do restaurante, com a sala principal no lugar do antigo terraço, remonta à década de 60, quando o pai do atual proprietário comprou o edifício e fez obras de remodelação profundas, que lhe deram uma feição «mais inglesa», num «estilo mais Tudor, que não tinha».

«Eu conto-lhe a história, que é engraçada», continua José Manuel Cima. «O estatuto de utilidade turística era concedido pela presidência do Conselho de Ministros. Quem despachava era Salazar, que exigiu que lhe levassem uma maquete para perceber o que ia ser feito. Mas uma vez aprovado o projeto, o arquiteto não me dava o caderno de encargos. Começou a parte dos toscos e eu voltei ao arquiteto: ‘Preciso de pormenores’. E ele: ‘Põe-se umas madeiras…’».

Sem indicações mais precisas, com a ajuda de um engenheiro e de um desenhador, José Manuel deitou mãos à obra. «Inscrevi-me no Instituto Britânico e fui buscar livros de casas inglesas. E nessa altura havia carpinteiros. Toda esta madeira que vê aqui nas janelas é pitch pine que aproveitámos de um palácio lindíssimo que demoliram para fazerem esta monstruosidade do Hotel Eden».

Quanto ao recheio, foi adquirido sobretudo em antiquários. «Fui a Sacavém escolher as peles de vitela», recorda o anfitrião, apontando para as cortinas. «Isto tem muito de mim». O serviço de loiça inglês, o faqueiro Christofle e a carta de vinhos, em cabedal puído por muitos anos de uso, dão conta de um gosto por artes e ofícios que caíram entretanto em desuso. Para os candeeiros, por exemplo, já não se encontra os abajures em pele de porco doutros tempos.

 

Pequenos-almoços com Amália

Lugar de eleição de políticos e empresários, como Francisco Balsemão, Mário Soares, Proença de Carvalho ou Joe Berardo, o Cimas English Bar tem um lugar assegurado na história do país. 

José Manuel Cima assistiu ali a reuniões clandestinas dos capitães de Abril (à quarta-feira, dia em que o estabelecimento estava encerrado), a maratonas de trabalho entre Freitas e Sá Carneiro, «à dissolução do governo de Santana Lopes e à constituição do governo de Passos Coelho com Paulo Portas». Mas isso foi nos tempos mais recentes. «Conheci todos os reis que estavam cá exilados em Portugal», gaba-se o proprietário. Segundo o livro que reconstitui a história do English Bar, D. Juan de Borbón, o pai de D. Juan Carlos, utilizava o Cimas «como salão de receções e sala de jantar particular. D. Juan Carlos, na altura ainda criança, brincava pelas mesas do restaurante».

Uma das mais recordações mais gratas do proprietário são as madrugadas na companhia de Amália Rodrigues. «Terminava a atuação no casino por volta das 3h, nós abríamos a porta e ficávamos aqui até às oito. Vinha com o D. Fernando Mascarenhas, que gostava muito de sangria de champanhe. De manhã eu servia-lhes o pequeno almoço, café com leite e ovos mexidos». 

Nem sempre os encontros corriam de forma tão harmoniosa. «O Marcello Caetano fazia aqui umas reuniões que às vezes terminavam de forma um bocado tempestuosa. O Manuel José Homem de Melo, conde de Águeda, chateava-o bastante». E o anfitrião, como lidava com isso? «Tinha de fingir que não via. Nesta vida, a gente não ouve, não vê, não sabe nada», diz José Manuel Cima. Para que não fiquem dúvidas, reforça: «E não sabe mesmo».

 

Cimas English Bar

Avenida Marginal, entrada pela Avenida de Saboia

2765-278 Monte Estoril