Inês Henriques. ‘Como é possível uma miúda Estanganhola conseguir tudo isto?’

O ponto de encontro para esta entrevista foi a ‘casa’ de Inês Henriques. Afinal é no Desmor – Complexo Desportivo de Rio Maior – que a marchadora portuguesa faz todo o seu dia-a-dia, chegando até a dormir no Centro de Estágios, como aconteceu no período de preparação que a encaminhou para o título Europeu em…

O ponto de encontro para esta entrevista foi a ‘casa’ de Inês Henriques. Afinal é no Desmor – Complexo Desportivo de Rio Maior – que a marchadora portuguesa faz todo o seu dia-a-dia, chegando até a dormir no Centro de Estágios, como aconteceu no período de preparação que a encaminhou para o título Europeu em 50km marcha, em Berlim. Sempre que se fala na dimensão do feito, a atleta de Rio Maior lembra: «O que eu faço é muito duro, mas o que a minha mãe faz todos os dias é muito mais». A pioneira portuguesa dos 50km continua, desta forma, a fazer uso da resposta que deu após ter conquistado o Mundial 2017, em Londres. Foi, aliás, nesse ano que começou a sua «segunda vida no atletismo». Uma luta que, além das pistas, também tem sido feita nos tribunais. Quando decidiu começar a fazer longa distância disseram-lhe que era «louca», mas Inês diz que sempre soube que era capaz. Já não tem nada a provar depois de ter demonstrado que esta não é uma competição exclusiva ao sexo masculino, mas tem uma meta na agenda: Tóquio 2020. Aos 38 anos, Inês Henriques tem lutado ativamente pela integração dos 50km marcha nos Jogos Olímpicos e confia que este será mais um capítulo vitorioso na sua carreira. 

Como foi a sua infância?

Nasci em Santarém, mas a minha vida foi toda aqui, em Rio Maior. Tive uma infância normal. Os meus pais não eram ricos nem pobres, tinham as suas dificuldades. Sempre nos educaram, a mim e à minha irmã, de forma a que soubéssemos que, para termos as coisas, teríamos de conquistá-las. 

Como é que uma menina de 12 anos opta pelo atletismo?

O filho do meu treinador era professor de Educação Física da minha irmã e convidou-a para fazer o torneio das Freguesias, aqui de Rio Maior. Fui com ela. Tudo começou aí. Na altura [1991] a Susana Feitor tinha sido campeã do Mundo de juniores e havia um grupo grande de marchadores. Decidimos experimentar. Tive muito jeito logo no início. O Jorge Miguel [treinador] ainda me tentou pôr a fazer barreiras, mas aquilo não funcionou e eu também não iria aumentar o meu tamanho [1.58m] por isso não valia a pena [risos]. 

A Susana Feitor acabou por ser a sua grande inspiração?

Sem dúvida nenhuma. A Susana Feitor foi a inspiração para muitos atletas e , de alguma forma, Rio Maior virou-se para o desporto muito pela Susana.

Como era a Inês Henriques com 12 anos que participou no torneio das Freguesias? O seu treinador percebeu logo que estava perante uma atleta de topo?

Não, não. As coisas aconteceram de forma natural, sem grande pressa. O Jorge Miguel tem o cuidado de perceber quais são os atletas que se dedicam mais e aqueles que não se dedicam tanto. Fui uma miúda que me dediquei logo muito e comecei a obter bons resultados. Entrei em 1992 nas provas de marcha, fui campeã nacional de infantis, juvenis, juniores… Fui ao Mundial de juniores quando ainda era juvenil de primeiro ano. Uma vez indo a um campeonato internacional, já não há volta a dar, era algo que eu queria fazer. Eu via a Susana [Feitor] e queria seguir as suas pisadas. Os primeiros campeonatos internacionais a que fui não me ficava apenas pela presença, queria fazer sempre melhor.

Experimentou outras modalidades?

Só experimentei basquetebol, ainda antes do atletismo. Percebi logo que não tinha grande jeito e que iria ser pequena [risos]. O meu pai é 2 cm mais pequeno do que eu, que meço 1.58m, por isso não tinha grande hipótese [risos]. Depois fui logo para o atletismo.

Como reagiu a sua família com a decisão de fazer da marcha uma coisa a sério? 

Foi fácil. A minha irmã gosta muito de desporto, mas treinar por obrigação não, muito obrigada [risos]. Mas para mim ir treinar era um prazer. A minha irmã seguiu os estudos dela, foi estudar para Leiria e eu, que sou disléxica, tinha algumas dificuldades na escola. No meu tempo de escola, da primária ao 3.º ciclo, a dislexia não era comum e tive algumas dificuldades por isso. Os professores não entendiam, até que tive uma professora fantástica de Biologia, a professora Maria do Carmo, que percebeu. Pediu-me autorização para levar o meu teste para demonstrar que havia ali algo diferente e aí fez-se o ‘clique’. Já não tinha de me esconder porque alguém tinha dado conta do meu problema. Eu tinha as minhas estratégias para tentar esconder-me, escolhia aquela mesa [mais longe] porque ali não me chateavam muito. Tive alguns problemas na escola por isso mesmo.

Antes do 12.º ano os professores nunca tentaram arranjar uma solução?

Não. Era a burrinha da turma. Agora já é uma coisa banal, mas naquela altura não e eu sentia-me um bocadinho constrangida porque, às vezes, os meus colegas gozavam. Inclusivamente tive uma professora de português que ajudou os meus colegas a gozarem comigo e eu arrumei as minhas coisinhas e fui-me embora. Levei uma falta disciplinar. Quando a Diretora de Turma me perguntou o que se tinha passado eu disse: «Desculpe mas não autorizo que os meus colegas gozem comigo e que a professora ainda os ajude». E pronto, de alguma forma o atletismo era o meu refúgio. Ali podia sentir que era melhor do que os outros. Quando os meus pais se aperceberam que eu fazia aquilo de que gostava, continuaram a dizer-me para ter atenção aos estudos e ter boas notas. Foram sempre pais cautelosos e atenciosos que nunca me deixaram descurar dos estudos. 

Como é que uma menina de 12, 13, 14 anos consegue privar-se de um certo estilo de vida associado aos adolescentes para dedicar-se ao desporto?

Em todas as fases da minha vida, eu tive tudo, mas sabia quando é que podia ter. Não ia estar a treinar imenso e estragar tudo numa noite. Aproveitava as férias e os momentos em que tinha menos competições para ir sair e para me divertir com os meus amigos. Houve coisas que se calhar nunca fiz, mas também nunca tive vontade para isso. O atletismo dava-me outro prazer. Às vezes diz-se que abdiquei disto e daquilo, mas é a minha opção de vida. Percebi logo que havia coisas de que teria de abdicar, mas passei por todas as fases, o que é muito importante. Sou da opinião que, enquanto somos jovens, devemos passar por todas as fases senão, mais tarde, vamos querer fazer tudo de uma vez e cometemos excessos. Passei por isso tudo e tive uma infância e uma juventude fantásticas. 

Quando é que sente que as pessoas começam a reconhecê-la enquanto atleta portuguesa?

Nunca fui a atleta que mais se destacou. Inicialmente havia a Susana [Feitor], depois a Vera [Santos], a Ana Cabecinha e eu era sempre a segunda, a terceira ou a quarta. Mas fazia o meu trabalho e tentava fazer o melhor possível. Houve uma fase complicada porque nós éramos quatro e cinco atletas com mínimos para os grandes campeonatos mas só poderiam ir três. Era uma luta constante. Nós não queríamos tirar as outras, mas queríamos o nosso lugar. Na marcha era super importante estar no projeto olímpico, porque se não estivéssemos não tínhamos forma de nos sustentar, e os meus pais nesse aspeto sempre foram pessoas que diziam ‘se não há dinheiro vê lá’… 

O que faziam os seus pais?

O meu pai foi mudando de ramo ao longo dos anos, mas vendia lenha e era produtor de carvão. Muitas vezes, eu e a minha irmã, no fim de semana, tínhamos de ajudar. Em todas as minhas férias, dos 12 anos aos 18 anos, andava na apanha do tomate. Aos 18, como o meu pai já tinha empresa própria, disse-nos que precisava de nós para ajudar na lenha e no carvão.

Decidiu ir para a apanha do tomate para ‘ganhar’ a sua independência?

Para ganhar dinheiro, para ter as minhas coisas. Eu e a minha irmã desde muito novas comprávamos as nossas coisas. Os livros escolares os meus pais compravam sempre, mas a roupa era eu que comprava. É muito importante valorizarmos o dinheiro. Custava-me imenso gastar dinheiro porque me custava imenso ganhá-lo. Mas acho que foi muito importante para mim – e muitos jovens deviam fazê-lo para perceberem que o dinheiro não cai do céu, que custa a ganhar. Iriam valorizá-lo e gastá-lo de forma diferente. 

Enquanto atleta de 20 km de marcha nunca alcançou títulos. Arrependeu-se em algum momento de ter optado por este percurso de vida?

Não, porque fazia o que gostava, mas é óbvio que houve momentos muito difíceis porque quando não alcançamos os nossos objetivos pomos as coisas em causa. Eu fiz a minha licenciatura em enfermagem, que demorei dez anos a concluir. Vi os meus colegas todos a conseguirem trabalho e, embora estando no projeto olímpico, ganhava tanto como uma enfermeira. Mas às vezes pensava: «Fogo só vou entrar na minha profissão com 40 anos, credo».

Como surgiu a enfermagem?

Gostava de tirar fisioterapia, mas para isso tinha de mudar a minha vida toda para Lisboa e era muito mais difícil conciliar com o atletismo. O Jorge Miguel estava em Rio Maior e seria muito mais complicado. Ainda pensei ir para Desporto, mas precisava de ter algo diferente. Desporto já eu tinha muito [risos].

Mas licenciar-se sempre foi uma meta obrigatória?

Os meus pais nunca me deixaram facilitar nesse aspeto. Sempre fui muito preocupada com o meu futuro e, para mim, era sem dúvida uma prioridade ter alguma coisa depois de terminar a carreira. Se não desse certo, teria uma profissão para exercer. Entrei em enfermagem em 2003. Estive dez anos sem férias, mas tinha de ser para poder ficar mais tranquila para o meu pós-carreira. Acabei o curso no final de 2013 e no Dia do Pai, em 2014, imprimi o diploma e foi a prenda para o meu pai. Já gozava comigo, dizia que eu só ia acabar o curso quando me reformasse, mas afinal foi um bocadinho antes [risos].

Voltando à marcha. Os insucessos nos 20 km acabaram por levá-la a pensar em colocar um ponto final na carreira…

Sim. 2014/2015 foram anos muito complicados. Eu não conseguia demonstrar, acho que estava em overtraining. O meu treinador hoje diz que não valia a pena dizer-me porque eu não aceitava. Foi preciso chegar a um momento dramático para dizer não – ou termino a carreira ou tenho de mudar algo. Optei pela última. Em 2015, O Mundial [Pequim] foi provavelmente o único em que falhei redondamente [25.º lugar]. Foi muito duro para mim. 

Sentia-se frustrada?

Muito frustrada. Disse ao Jorge Miguel: «Se calhar já não consigo, estou velha». Mas respondeu-me que só faltava um ano para os JO [Rio 2016] e pediu-me que aguentasse. Tinha acabado de comprar uma casa, a minha terapia nas férias foi pintar a casa toda por dentro [risos]. O meu treinador estava a começar a ficar aflito porque eu não estava a treinar e perguntou-me se eu não ia. Respondi que ainda não tinha saudades. Estive um mês e meio sem treinar. Nem passava pela pista, nem aqui pelo centro [Desmor]. Tive de me afastar. Quando voltei a treinar, fi-lo sem grandes objetivos, queria ver no que aquilo ia dar.

Como são os treinos?

Duas vezes por dia.

A preparação para 20 km ou longa distância [50 km] tem muitas diferenças?

Basicamente, a única diferença do treino dos 20 km para os 50 km são só mesmo os quilómetros, de resto é tudo igual. Treino todos os dias, duas vezes. Normalmente, durante a semana, tenho direito a uma tarde de descanso. Faço entre doze a treze treinos semanais. O treino da manhã é o mais específico, de marcha, e demora mais tempo, o treino da tarde é de regeneração, faço marcha, corrida, elíptica…

A alimentação é certamente outro fator muito importante para obter bons resultados. Tem muitos cuidados neste campo?

A minha mãe sempre fez comida muito saudável em casa, mediterrânica. Eu gosto de tudo. A partir de novembro passei a fazer todas as minhas refeições aqui no centro de estágios então não me preocupo em escolher isto ou aquilo. Tenho alguns cuidados, claro, mas como de tudo, tudo. Às vezes dizem-me que não posso comer, mas digo logo: «Eu é que posso comer isto, porque eu vou gastá-lo» [risos]. Há um mês por ano em que faço tudo o que me apetece, como tudo, mas quando vejo que o peso começa a aumentar… Tenho terror de engordar, sinto-me bem assim. Mas para os 50 km não posso estar demasiado magra, tenho de ter os 46 quilos. 

Estava a contar… Como volta a treinar?

Ah, comecei por treinar com a consciência de que estava a fazê-lo apenas por prazer e sem grandes expectativas e é aí que se dá o ‘clique’. 

Acha que a obsessão para ter bons resultados afetava as suas prestações?

Sim, sem dúvida, cometi muitos exageros. É como costumo dizer: sempre errei pelos excessos e não pelos défices. Em 2016, nos JO, tive o meu melhor ano, com 36 anos. Bati o meu recorde pessoal por três vezes. Os JO foram bons [12.º lugar], mas houve ali qualquer coisa que também não consegui dominar, poderia ter sido melhor. Eu e o Jorge Miguel queríamos o top-10. O meu sistema nervoso não permitiu que conseguisse demonstrar realmente o que estava a valer. No final da prova dos Jogos Olímpicos, o Jorge Miguel disse-me que só iria conseguir fazer melhor dali a 8 anos, nos 50 km [risos].

Acha que esse desafio chegou na altura certa?

Nesse ano [2016] já tinha o meu curso terminado, pensei que depois dos JO, se achasse que o meu corpo não estava a dar resposta e se já não tivesse prazer no que estava a fazer, terminava a minha carreira. Como consegui ter bons resultados e percebi que, se não cometesse exageros, o meu corpo correspondia. Pensei: «Ok, ainda não consigo viver sem isto, vou continuar».

Em 2016, tinha 36 anos. Nunca pensou retirar-se do atletismo para constituir família?

Tinha as coisas mais ou menos organizadas e depois dos JO queria ser mãe, mas por muitas razões essa opção deixou de existir e naquele momento pensei: se engravidar, engravido, se não acontecer, vou continuar. Com tranquilidade e sem grande pressão, o que for é. Depois, em outubro, o meu treinador soube que a Federação Internacional iria certificar o primeiro recorde do mundo em 2017 e que as mulheres podiam participar no Campeonato do Mundo, mas com os mínimos iguais aos dos homens [4h06m], numa prova mista. No dia 10 ou 11 de novembro, estava a fazer a minha corridinha, quando o Jorge Miguel me chamou à parte e perguntou: «O que achas de teres o primeiro recorde do mundo nos 50 km de marcha, no dia 15 de janeiro [Porto de Mós]?». Eu disse-lhe: «Ó Jorge Miguel, mas faltam dois meses!». E o ele respondeu-me: «Mas tu tens 25 anos de trabalho!». Pediu-me que fosse para casa e pensasse no assunto. Uma hora e meia depois, liguei-lhe e disse que fizesse o plano de treinos [risos]

Soube imediatamente que seria capaz?

Sou das atletas com mais quilómetros no mundo e o Jorge Miguel é a pessoa que mais sabe disso. Muitos dos meus excessos vieram beneficiar-me para os 50 km. O trabalho estava muito feito, tinha só dois meses para preparar-me mas todos os quilómetros que já tinha iam refletir-se. Os 50 km são uma prova de paciência e de muito trabalho – e eu nunca tive medo do trabalho. 

Acha que os mínimos impostos, de 4h06m, iguais aos dos homens, nos 50 km, foi uma medida para tentar banir as mulheres desta categoria?

Acho que sim. Como o advogado norte-americano fez pressão para que as mulheres fizessem os 50 km, eles chegaram a uma altura em que deixavam as mulheres participar, mas pensaram que 4h06m nenhuma mulher iria fazer. O Jorge Miguel tinha noção de que eu conseguiria alcançar essa marca, mas no dia da prova houve uma altura a partir dos 25/30 quilómetros, em que me excedi muito e nos 38 comecei a sentir algumas dificuldades. Fiz 4h08m26s em Porto de Mós, não fiz a marca. 

Quando é que percebe que mais do que uma batalha nas pistas esta era também uma luta pela igualdade de géneros?

Percebi antes de fazer os 50 km. Quando anunciei que ia fazer a prova em Porto de Mós, a frase que mais ouvi foi: «tu és louca». No Facebook diziam que isto não era para as mulheres, que não conseguíamos. Depois da prova, essas pessoas tiveram de me dar os parabéns. Provei que era possível.

O que é que sentiu?

Orgulho, muita satisfação e alegria por demonstrar algo que toda a gente dizia ser impossível. 

O facto de dizerem tantas vezes que não ia conseguir deu-lhe ainda mais força?

Sem dúvida que foi um desafio as pessoas dizerem-me que não era capaz. Mas não sou capaz porquê? Se treino com homens, o que é que tenho a menos do que eles? Ando mais devagar, mas consigo na mesma.

Desde que entrou nesta categoria apercebe-se de que chegou finalmente ao patamar que pretendia dentro do atletismo?

Os 50 km foram uma oportunidade. Foi a visão do meu treinador. Nunca pensei que fosse surgir desta maneira. Quando o Jorge Miguel me lançou o desafio, sabia que eu tinha uma carreira muito bonita, mas já ninguém se lembrava de quem era a Inês Henriques. Queria que eu ficasse com algo histórico. Iria ser o primeiro recorde do mundo e isso ninguém me tirava.

Quando chega o Mundial 2017, em Londres, consegue muito mais do que ‘apenas’ sagrar-se campeã…

Sim, fui campeã do mundo, bati o recorde do mundo [4:05.56] e fiz menos do que a marca de 4h06m, demonstrando à Federação Internacional que sim, as mulheres conseguem fazer menos de 4h06m! Os 50 km são a minha segunda vida no atletismo. Tenho quase 40 anos, mas sinto que o meu corpo ainda tem energia para continuar. No final da prova disse: «O que fiz é duro, mas o que a minha mãe faz todos os dias é muito mais». E é o que sinto. Os meus pais vendem lenha e produzem carvão e aquilo é realmente duro – e posso dizê-lo porque andei lá. Muitas vezes, vejo a minha mãe dizer ‘dói-me isto ou dói-me aquilo’, mas continua lá. Não sei como aguenta. O que faço é duro, mas faço o que gosto. Há muitas profissões em que as pessoas têm de trabalhar porque precisam de levar o dinheiro para casa e, às vezes, é tão pouco. Por isso, sou uma privilegiada.

Quando acaba o Mundial de 2017 em que pensou?

Fiquei admirada com a minha conquista ao fim de tantos anos. Quando me perguntavam se eu ia fazer os 50 km, costumava dizer são 25 voltas por cada ano da minha carreira: e é fantástico ao fim de 25 anos ter conseguido chegar ao topo dos topos.

Chegou a ser abordada pelo Benfica ou pelo Sporting?

Fui abordada por um clube da Madeira há uns anos e depois por outros clubes, mas na altura, para sair de Rio Maior, o valor tinha de ser bom. Sair por alguns tostões não valia a pena. Preferi ficar em Rio Maior, foi a minha opção. No ano passado houve ali uma oportunidade, mas preferi ficar. Estou tão perto do final da minha carreira, foram 25 anos a representar Rio Maior e não me fez sentido ir para outro clube.

E o contacto das pessoas na rua?

Fora de Rio Maior foi a primeira vez que fui abordada. Estar no shopping em Lisboa e as pessoas virem ter comigo… Não estava habituada, é estranho, mas é bom sentir que as pessoas reconhecem o que fiz. As mulheres abordam-me e agradecem o facto de ter demonstrado que nós conseguimos.

Mesmo quando terminar a carreira vai ser sempre lembrada por ter sido a pioneira portuguesa nos 50 km marcha…

Fui a primeira recordista do mundo, a primeira campeã do mundo e a primeira campeã europeia e isto fica na história. De certa maneira, também queria deixar o meu treinador, que tem uma carreira tão longa, com esta marca na história. 

Além de que também ele não considerava justo que as mulheres não pudessem competir os 50 km, prova que para os homens já existia desde 1932 [JO Los Angeles]. Nós só conseguimos um Mundial em 2017? Estamos um bocadinho atrasados. Se bem que nunca houve grande força por parte das mulheres para competirem os 50 km. 

A verdade é que, em apenas um ano, as atletas presentes na competição quase triplicaram: passaram de 7 marchadoras no Mundial para 19 no Europeu…

Exatamente. Sou pioneira e as outras mulheres reconhecem-no e agora tentam também. Agora a luta é para os Jogos Olímpicos.

Em que processo está esta batalha para os JO?

Tive uma reunião com o advogado e não é muito fácil porque o Comité Olímpico alega que existem desportos no feminino que não existem no masculino e vice-versa. Os 50 km vão estar garantidos até 2020, mas eles queriam tirar-nos isso. Houve mesmo um processo em que nós, marchadores mundiais, tivemos de fazer um abaixo-assinado para manterem os 50 km em Tóquio porque afirmavam que não havia igualdade de género – e o Comité Olímpico é muito sensível a estes aspetos. Então quer dizer, há Campeonatos do Mundo, Campeonatos da Europa e nos Jogos Olímpicos, onde vão fazer todas as disciplinas do atletismo, ficam de fora os 50 km de marcha? Não me parece justo. Temos ganho todas as batalhas porque, efetivamente, não é justo que não façam. Acredito verdadeiramente que vamos conseguir.

E acredita também que vai juntar o título olímpico ao título europeu e mundial?

Tenho noção de que vai ser mais difícil porque outras atletas vão surgir. Sem dúvida nenhuma que, neste momento, as atletas que podem dar-me mais luta são as chinesas, mas pode aparecer outra atleta qualquer, de outro país, tendo em conta que os 50 km são uma prova nova, com grande qualidade. Eu e o Jorge Miguel temos essa noção e estamos a preparar as respostas. 

Em Tóquio 2020 terá 40 anos. Nos 50 km é mais importante a experiência ou a idade?

Os 50 km são uma prova que exige muita experiência, mas há muitas miúdas a participar. Aliás, a ucraniana [Alina Tsviliy] que ficou em segundo lugar [no Europeu], tinha 23 anos. É um bocadinho dos dois, mas sem dúvida nenhuma que é uma prova que permite atletas com mais idade fazerem-na com boa qualidade. Se eu conseguir estar focada e contar com todas as outras ajudas como a nutrição, descanso e recuperação, o meu corpo vai certamente responder. Quero lá estar e vou investir nos próximos dois anos para tirar o recorde à chinesa [Rui Liang com o tempo de 04:04.36] e, claro, ganhar uma medalha.

E, já agora, tem palpites para o possível número de marchadoras nos próximos JO?

O atletismo no próximo ano vai mudar, vai ser através de ranking e não pelos mínimos alcançados. Nos Campeonatos do Mundo de 20 km podem estar até 60 homens e até 60 mulheres e o advogado já me disse que, em princípio, serão até 60 participantes ao todo em Tóquio nos 50 km, não se sabe ainda é se serão 30 homens e 30 mulheres, mas está a tentar que seja assim, de igual forma. Se formos aos JO, o número será limitado, por isso não sei. 

É agora líder de todas as disciplinas de marcha do atletismo no ranking mundial feminino. Qual é a sensação de estar no topo? Alguma vez imaginou?

Não, até comentei com um colega: «Como é que é possível uma miúda da Estanganhola conseguir tudo isto?» [risos]. É muito bom perceber que o meu trabalho está a ser recompensado, estou muito orgulhosa. No aeroporto veio um jovem ter comigo, assim muito encavacado, que me disse: «Quero dar-lhe os parabéns. Representa muito bem Portugal. É pena não darem tanto valor à Inês e a outros atletas que o fazem tão bem e só pensarem no futebol». É óbvio que o futebol vai ter sempre um destaque em Portugal que as outras modalidades não têm, mas são estas abordagens que nos aquecem o coração.

Neste momento está a gozar um período de férias. O que costuma fazer nos tempos livres?

Há muito tempo que não vou para um sítio descansar, sem fazer nada, mas este ano tive de fazê-lo. Fui até aos Açores ter com um amigo que mora lá. Descansei, fui à praia, visitei, mas sobretudo aproveitei para descansar verdadeiramente. Foi um ano muito difícil para mim, foram muitas mudanças. O sucesso é bom, mas também envolve outras coisas que não são tão boas…

Como por exemplo…

Às vezes as pessoas pensam que nos alteramos pelo sucesso que alcançamos, mas eu alterei algumas coisas na minha maneira de ser e de estar por algumas questões da minha vida pessoal. Foi um ano muito duro para mim e tenho de fazer um ‘reset’ para continuar. Vamos ver.

Já tem a próxima prova em agenda?

Eu e o meu treinador ainda não falámos de objetivos para a próxima época, mas em maio é a Taça da Europa, na Bielorrúsia, onde em princípio devo fazer os 50 km e depois vou ter de descansar um pouco para fazer os 50 km no Campeonato do Mundo, em finais de setembro, no Qatar.

Quatro meses de descanso é o mínimo obrigatório de intervalo para provas tão exigentes?

Para fazer 50 km nunca se pode fazer mais do que duas vezes por ano, por ser uma prova muito exigente. Há quem faça três, mas é uma prova muito dura e, com a minha idade, é preciso ter alguma contenção.

Acha que há atletas portuguesas com capacidade para seguirem o seu caminho?

Não é fácil, a marcha portuguesa está a atravessar uma crise bastante grande. A retirada da Susana Feitor, a Vera Santos, que foi mãe, também não sei se tenciona voltar ou não… Neste momento a Ana Cabecinha está nos 20 km e aí se mantém porque não é atleta para fazer uma distância maior, é uma atleta de 20 km. Depois temos algumas jovens, mas a diferença do que nós as quatro – eu, a Susana, a Vera e a Ana – fazemos para o que elas conseguem fazer é muito grande e, por isso, não será fácil. 

Mas tem noção de que, tal como a Susana Feitor a inspirou, agora, pode ser o próximo modelo a seguir para a nova geração de atletas portuguesas?

Espero que sim e que, de alguma forma, tenha dado a conhecer a marcha aos portugueses. 

Se agora visse uma menina de 12 anos a participar no torneio de Freguesias o que lhe diria?

Diria para trabalhar. Há uma miúda que faz marcha aqui em Rio Maior e nota-se que tem boas características para ser atleta. Ficou muito contente por ter ganho uma medalha num campeonato de juvenis e mandei-lhe uma mensagem a dar os parabéns. A miúda é muito focada e provavelmente pode conseguir. Mas isto… Em dez, às vezes conseguimos um atleta de elite. Um ex-treinador de atletismo mandou-me uma mensagem e disse: «Quem diria? Recordo-me, há mais de 20 anos, de uma miúda pequenina e franzina que nunca ninguém diria que seria uma atleta de alta competição e vê onde tu chegaste?». Às vezes o que parece não é, tem muito a ver com o nosso querer. Lá está, há os atletas com muito talento que chegam muito rápido como o Nelson Évora e a Susana Feitor. Eu não, fui uma atleta com algum talento e foi com muito trabalho que lá cheguei. Mesmo quando pensamos que já não vamos alcançar, e eu pensei assim, conseguimos chegar ao topo. 

Já impôs alguma data para o fim de carreira?

Eu e o meu treinador temos um compromisso até Tóquio 2020. 

Quando terminar, considera seguir enfermagem ou quer continuar ligada ao atletismo?

Se puder estar a trabalhar com desportistas, e já fiz o curso de massagem terapêutica desportiva a pensar nisso, é óbvio que prefiro. Já sou uma princesa aqui neste centro [Desmor].

No dia 3 de setembro vai ser recebida pelo Presidente da República, em Belém. Como recebeu essa notícia?

É fantástico. É das tais situações em que me questiono como é que consegui isto ao fim de tantos anos. Um português receber a medalha pelo Presidente da República é o topo. Neste momento sinto que já não tenho de demonstrar mais nada a ninguém. Vou-me divertir.  
 

Entrevista publicada no b.i. deste fim de semana (1/08/2018)