Ágil, nas suas 77 passadas de vida, a mulher sobe a estreita estrada que dá acesso ao vale onde se anicha a aldeia. Leva um destino fixo. À volta, rebentos de eucaliptos despontam viçosos da imensa fileira de troncos vestidos de luto que imprimem à paisagem a aspereza do cerimonial de um velório. O mato já se passeia no alcatrão.
A um quilómetro, ou nem tanto, a mulher estaca numa cova que parece ter sido aberta com um propósito. Pula da berma do caminho para a base da encosta, ajoelha-se e esgadanha a terra até ao xisto – onde, depois de o fogo o ter consumido até aos ossos, se encontram restos do corpo do irmão.
Ganhou de há um ano a esta parte uma rotina mórbida. Puxa e repuxa com raiva uma matéria betuminosa. «Está a ver esta coisa preta, gelatinosa? É a gordura do meu Zé, o que sobra dele», grita Olinda mostrando as mãos untadas por uma pasta negra.
«O que é que lhe deu para se esconder aqui, sair da estrada e meter-se neste nicho? O que é que lhe deu para sair de casa? A casa nem ardeu! E eu que não consegui falar com ele… Não havia telefones! E como é que ninguém o socorreu? Deixaram-no sozinho, a morrer lentamente nas brasas! Só no outro dia deram com ele. Ainda ardia». Estas são algumas das questões que Olinda coloca aos jornalistas do SOL que aceitou acolher – para participarem numa viagem que talvez possa aliviar a dor de que não consegue libertar-se.
De regresso a casa, Olinda anda meio perdida na cozinha virada do avesso. O fogo do ano passado chegou ao primeiro piso, onde guarda a lenha, o calor expandiu-se para o andar de cima e derreteu as canalizações, a tubagem do gás e os eletrodomésticos. Improvisa. O seu olhar saltita entre a lareira, onde ramos secos de videira fazem o lume para o churrasco do almoço, e a janela, onde o sol de agosto bate canalha. Tem a noção de que tudo se pode repetir.
Fogo volta a andar por ali
Por esta altura, o tempo andava incerto. A Sul do país, uns quinze dias antes, Monchique quase fora engolida pelo fogo. Com o olhar fixo na janela, as linhas do rosto presas num esgar, Olinda recrimina-se: «Viu o que aconteceu no Algarve? Houve também um tornado como aqui no ano passado! Com este calor, não devíamos estar a fazer churrasco! Como tem visto, nada mudou. Já viu como cresceu o eucaliptal? E as árvores por aí todas queimadas que ninguém deita abaixo! Isto é puro combustível. Um dia o fogo encana de novo pela aldeia acima que nem Santo António nos acode».
Durante a força do calor, as aldeias da zona de Pedrógão parecem moribundas. Não se vê vivalma nas ruas. De Sarzedas do Vasco à EN236-1, que ficará na história como a ‘estrada da morte’, é um pulinho.
Depois de quatro quilómetros percorridos em direção à aldeia das Várzeas, Olinda – como se fizesse uma última saudação – pede que se reduza a marcha num troço onde outros encontraram a morte. Fala deles como se de família se tratasse. Foi a 17 de julho de 2017, faz exatamente um ano e um mês. No espaço de uma hora, 61 pessoas, umas nos carros, outras fugindo deles, pegados num novelo de chamas, partiram numa terrível solidão. Para Olinda, são vítimas de um país anestesiado: «Ninguém liga ao interior. Estamos para aqui sozinhos. Obrigam-nos, com reformas miseráveis, a limpar os terrenos quando o Estado nem sabe dar o exemplo. Nesse dia, não houve um bombeiro, uma ambulância que viesse socorrer esta nossa gente. Se não fosse a ganância… E olhe no que dá, de que serve o dinheiro? Aqui as pessoas morreram carbonizadas, partiram despidas e descalças».
Um casal não sabe como passar o tempo
Um quilómetro depois, chega-se às Várzeas. A aldeia tem poucos habitantes. Só no Verão regressam aqueles que um dia partiram para se livrarem dos ciclos do trabalho à jorna. Mas a maioria mantém as suas hortas – e delas leva todos os anos o que a cidade não tem para oferecer. Ao fundo do povoado, num pequeno pátio florido, dois casais de idosos aproveitam a sombra. Olinda abre o diálogo e, como se estivessem unidos pela mesma corrente de dor, recuam ao dia em que o destino lhes fez uma terrível careta. A dimensão da tragédia adivinha-se de rosto para rosto pelo olhar mais ou menos anestesiado da medicamentação.
Maria Odete António e o marido, Eduardo Pinhal, não sabem o que hão de fazer para aguentar o passar do tempo, escorraçar os pensamentos tristes e as ideias negras. Só no passado mais longínquo encontram tréguas. Ela nasceu ali, já lá vão sete décadas. Filha de camponeses, mal terminou a primária marchou com um rancho de mulheres e homens para a apanha da azeitona no Entroncamento. Dormia na caserna, ou ‘casa da malta’, entre os outros, em cima de uma esteira, sem aconchego de pai nem mãe. Cresceu assim, ao ritmo dos ciclos de colheitas e sementeiras, trabalhando meio-dia para um, meio-dia para outro.
Mais tarde, mais velhinha, calham-lhe novos patrões: os madeireiros. Ganha um poucochinho mais no corte dos eucaliptos que haviam de se expandir como pragas: «Era de sol a sol. Cortávamos, descascávamos, e transportávamos os troncos. Eu e uma prima chegámos a carregar às oito camionetas num dia!», suspira Maria Odete com o olhar sumido na cortina de pálpebras inchadas pelos soporíferos.
Um esboço de sorriso abre-lhe o rosto quando olha para o marido, que parece alheio à travessia de recordações: «Ele não é de cá. É de Santa Iria da Azóia. Conhecemo-nos por carta quando estava na tropa, em Angola. Trocámos fotografias. Eu queria um homem de encher o olho e ele enchia. Para mim era perfeito, e eu também não era nada de deitar fora. A minha nora, um dia, leu as cartas que sempre guardei e disse-me: ‘Ena que a senhora teve admiradores por todos os lados!’». As lágrimas apagam com violência o leve sorriso de há pouco: «Coitadinha, morreu com as minhas netinhas! Eu e o meu marido nem queríamos sair de casa. Se tivéssemos ficado todos não tinha sido esta desgraça. Mas também não houve aqui ninguém para nos orientar!».
Mandaram as meninas sair da piscina
Eduardo, que parecia ausente, abandona a teia onde se aninhara. Em tempos terá sido homem de estatura atlética. Agora, o torso de lutador verga-se, abatido, como se o futuro fosse um peso impossível de arrastar. Apesar do acompanhamento psiquiátrico, desde que perdeu a família e por pouco não morreu só consegue olhar para a vida como um longo sofrimento que o tempo agrava: «Esta dor não passa, nunca passará. Ninguém pode apagar o que eu vi. O meu filho construiu a casa a pensar em tudo: tinha um plano para não fugir em caso de incêndio. As paredes têm 90 centímetros de espessura, as portas e janelas são de alumínio. Estávamos protegidos. O que é que nos passou pela cabeça?».
Mário Pinhal, o filho, engenheiro, apesar de já ter nascido longe da aldeia, ali projetara o seu futuro. No fim de semana juntara-se aos pais. Naquele sábado, 17 de Julho, dedicara a folga a murar a casa de dois pisos acabada de construir e o naco de terreno onde se dedicaria à agricultura doméstica. A mulher, Susana, com o curso de economia, parecia ter nascido no campo e, com a sogra, dava uma ajuda.
Pelas 18h00 ouviu-se um trovão e caíram umas fagulhas (ou ‘velhas’), como se diz nestas bandas. As filhas, uma de 12 e outra de 15 anos, estavam na idade das grandes aventuras. No tanque, pareciam peixinhos num mar de amplos horizontes, quando recebem ordem paterna para irem para casa. Há páginas impossíveis de virar, Maria Odete não contém as lágrimas: «Foram os últimos momentos de felicidade das minhas meninas».
Quando Maria Odete, com o coração fora do lugar, se vai abaixo, entra em cena Amílcar Ferreira, o dono da casa que a recebera e ao marido no seu pátio. Ameniza a conversa: «Com este calor, vai uma cervejinha?». Ele e a mulher, Ilda, são da mesma geração do outro casal, a amizade une-os desde jovens.
Já reformado, o antigo técnico eletrónico da RDP é um sobrevivente. No ano passado, em julho, estava como é habitual de férias na aldeia. Era um sábado como tantos outros, mas muito mais quente. Pela hora do almoço, descargas elétricas numa linha de média tensão da EDP sem manutenção dão início ao dia mais negro daquelas terras. A mulher apercebera-se do fogo que se iniciara para os lados de Pedrógão, em Escalos de Fundeiros, mas Regadas ia ainda muito distante – pelo que sempre esperou que os bombeiros o dominassem a tempo. Mas ao fim da tarde já metia respeito.
Até os animais amansaram com o medo
Com a mão, Amílcar vai tentando desenhar a evolução das chamas naquele dia. Aponta na direção de Escalos de Fundeiros, arrumado a Pedrógão, para uma antena de telecomunicações – e narra como o fogo saltou pelas árvores de copa em copa, ganhou formas monstruosas e se aproximou daquela zona ravinada de pinheiros e eucaliptos. Foi aí que ele tomou a decisão de partir. Daí em diante tem uma noção muito vaga dos amigos. Mas apercebeu-se de que, tal como ele, se preparavam para fugir.
O vento chegou de surpresa, fazia um remoinho, rolos de ervas e troncos de árvores voavam na sua direção. Bolas de fogo caíam aos seus pés. Amílcar aponta para Nodi, o cachorro, que observa todos os seus passos como se o compreendesse: «Foi de tal forma monstruoso, que até os animais amansaram. Este nem ladrou».
A memória de Maria Odete salta e preenche a do vizinho, para retomar o dia sombrio da catástrofe. Enquanto o filho, da varanda da sua casa, observava a evolução do incêndio, ela – que saíra do quintal onde acabara de regar umas vagens – cruza-se com a nora: «Então Susana, já se vêem as chamas?». E ela respondeu-lhe: «Já, vá depressa para casa que vamos fugir. Se ficarmos, como isto está, ninguém escapa!».
Maria Odete crescera com os fogos. Era do tempo em que o povo, apenas com enxadas, o domava. Tentou inverter a situação: «’Ó Susana, fiquemos em casa. Levamos uns baldes de água e se começar a arder ao pé das janelas apagamos!’. Eu não tinha vontade de ir, o meu marido também não». Mas a decisão estava tomada. A família dividia-se. Mário Pinhal assumiria a condução do carro dos pais, um Ford Escort com 24 anos de uso, couraçado a chapa e sem direção assistida, que enganosamente lhe parecia o menos preparado para a saída arriscada. Susana levaria o seu carro de serviço, um Toyota Auris, e as filhas.
Mas, em segundos, a natureza ganhou mais poder. A luz caiu de repente e o vento zoava. Em forma de funil, sugava-os para o seu eixo. E nesse curto espaço de tempo, como marionetes de um sistema falhado, cada elemento da família comportou-se à sua maneira. Maria Odete, sem deixar de observar o espetáculo sinistro que se desenrolava à sua frente, não quis partir sem levar o ouro; e Susana, com parte da vida armazenada em ficheiros word, carregou o carro com os portáteis da família.
E é neste conflito que Maria Odete, como se andasse à procura das coisas que se escondem atrás das coisas, se interroga: «A Susana não se despachava, perdeu tempo a levar os computadores para o carro. E a minha irmã, a Maria Helena, também não queria ir. Descia as escadas, voltava a subir. Tinha muitos valores em casa. Se nos tivéssemos metido logo dentro do carro… Pois era, mas não tinha de ser assim».
Nesse momento só pensámos em sobreviver
Amílcar, esse, animado por um instinto feroz que o impelia a lutar pela vida, obrigou a mulher e o cão a entrarem no carro. Já não tinha muita noção do que se passava em seu redor e não hesita em expor-se: «Num momento como aquele, não pensamos em ninguém, só em sobreviver!». Eram 20h00 quando saiu da aldeia atrás dos carros da família Pinhal, que mal apanham a EN236 viram à esquerda na direção de Figueiró dos Vinhos. Numa curva fechada, quase a 90 graus, perde-os de vista. Mas depois apercebe-se que a viatura de Mário, seguida de perto pela da mulher, faz inversão de marcha. E ambas passam por ele com destino a Castanheira de Pera: «Como dali não via nada, não me apercebi do que se estava a passar nem porque mudaram de ideias. Decidi continuar para Figueiró».
O acaso nunca se pode excluir. Quando chega à curva, Amílcar entende. Parecia que ia entrar na boca do inferno: «Era fogo por todos os lados, fogo por cima, fogo por baixo. Muito fumo, não se via nada. A minha mulher, que geralmente me dizia ‘Amílcar, tira o pé do acelerador!’, só gritava: ‘Marido, acelera!’». A atmosfera tornava-se pesada, irrespirável. O fumo pica-lhe os olhos. Bate nos rails, segura o carro. Não perde o sentido prático. À sua direita, um carro está a ser tragado pelo fogo. Ao lado, na estrada, uma pessoa aflita pede ajuda: «Eu não podia parar, senão ficava também ali».
A estrada transformara-se num funil cintilante. Os carros eram aspirados pela sucção do abismo. O fumo intenso impedia a visão. Mário Alves, afilhado de Amílcar que saíra dez minutos depois dele das Várzeas, já não se cruza com o padrinho. Vira à direita na direção de Castanheira de Pera, para onde seguira a família Pinhal. Com o fumo a turvar-lhe a visão, encosta-se à direita, orienta-se pela linha da berma. O jovem, de 33 anos, que trabalha na montagem de infraestruturas de telecomunicações, não está preparado para espetáculos daquela natureza: «Passo por um carro que tinha ardido e a minha mãe pergunta-me: ‘O que é aquilo filho?’. Disfarcei, disse-lhe que eram os bancos do carro, mas eram duas pessoas queimadas, os cabelos pareciam lã de rocha das obras, todos colados. Os corpos todos pretos…».
A estrada transformara-se num forno crematório
Mário vive em Pedrógão, mas todos os dias, quando sai do emprego, passa pela casa da mãe para alimentar o gado. Naquele dia, levava com ele o filho pequeno e a irmã. Eram 19h30 e a horta onde tem os animais já ardia: «Liguei à minha mulher para vir buscar o menino e fui tentar apagar o fogo». Pede à irmã que leve o menino para o topo da aldeia. Mas em pouco tempo viu-se cercado. Um manto de fumo cobria a aldeia. Não sabia da mãe. Acabara de se cruzar com ela, mas nem dera por isso. Subiu o monte, para o local onde o padrinho e a família Pinhal moram, e pergunta a Maria Odete que se preparava para fugir: «Viu a minha mãe?». Encontra-a por fim, enfia-a no carro e procura o filho e a irmã: «Não os vi em lado nenhum, pensei que tinham fugido. Ia desesperado, mas segui».
Na estrada, o cenário era terrível. O turbilhão de fogo aumentava também para os lados de Castanheira de Pera, mas Mário estava decidido a não recuar: «A minha mãe gritou: ‘Não vamos atravessar o fogo!’. E eu disse-lhe: ‘Baixa a cabeça!’. Entretanto, dois carros que estão à minha frente decidem fazer inversão de marcha ao mesmo tempo. Mas consegui passar entre eles!». Tratava-se da família Pinhal, que decidira mudar novamente de rumo. Maria Odete procura nas brasas da mente o momento em que a família se separou definitivamente: «O meu filho, antes de fazermos inversão, fez sinal à mulher para voltarmos para casa. Mas uns metros adiante, havia um pinheiro caído e tivemos de mudar outra vez de direção. Depois houve um jipe, bateu-nos e começou a arder. Como não se via nada, o meu filho pensou que eram elas e quis sair».
A temperatura atingiu os 1.300 graus centígrados, qual forno crematório. Os pneus derreteram e o carro ficou a andar sobre as jantes. Uma onda gigante de fogo passa-lhes por cima. No carro, Maria Odete obedecia às ordens do filho que, com o coração fora do lugar por não saber das filhas e da mulher, mantinha o raciocínio oleado e os avisara para não abrirem as janelas e respirarem com calma: «Era um calor horrível. Lá fora só se ouvia os gritos das pessoas e os carros a explodirem. Bum, bum, bum…».
Tal como eles, outras famílias dividiram-se para tentar salvar os carros. Seguiam uns atrás dos outros. Quando uma das viaturas começava a arder, tentavam saltar para outra. Pelo vidro, Maria Odete via vizinhos e amigos debaterem-se com um adversário cruel sem nada poder fazer: «Vi um rapaz que eu conheço, o Ricardo, a sair do seu carro para entrar no outro, mas já ia com o cabelo a arder. Já não saíram dali, morreram todos. De repente, fez-se um enorme silêncio, já não se ouvia gritos. Havia muito fumo, cheirava muito mal. Eu achava que as minhas netas estavam atrás de nós e dizia ao meu filho para irmos lá, que podiam estar só desmaiadas. Mas não eram elas…».
Eu não queria ir, queria que salvassem as minhas netas
O imenso gargalo de fogo perdera a forma. Estava na hora de abandonarem o carro. Fugir a pé sabendo que só contavam com eles próprios. Maria Odete lembra-se cada vez mais do acidente que se cravou no abismo da memória: do pormenor mais fútil às cicatrizes inesquecíveis. A noite estava escura, só os carros ainda a arder a iluminavam. Seguia à frente da coluna familiar a indicar o caminho. Atrás, o filho amparava o pai e a tia, que mal metera os pés no alcatrão em brasa derretera os sapatos. Quando deles se perdeu, nem deu conta. Na cabeça, para se proteger, Maria Odete enrolara o avental. O caminho estava minado como um cenário de guerra. Afastava-se dos carros que rebentavam: só se ouvia pum, pum, pum. Ia avisando: «Mais para a direita, mais para esquerda!». Não sabia o que pisava: «Tropecei num corpo, estava todo encarquilhado, sem roupa, só restava a fivela do cinto». Sufocava com o calor: «Estava tão quente que até o saco do ouro se desfez. Era um saco plastificado e, como o fio era de nylon, ardeu, descoseu-se todo e o ouro caiu. Mas apanhei-o. Tirei o avental da cabeça, meti-o lá dentro e atei as pontas».
De repente, um buzinão orienta Maria Odete, que se tinha perdido do resto da família. Ao volante de uma carrinha pick-up, o adjunto do comando dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande manda-a entrar: «Eu não queria ir. Pedia-lhe para ir salvar as minhas netas. Mas empurrou-me e tive de ir. No carro ia mais gente ferida, uma vizinha minha gritava: ‘Ai, ai que estou toda queimadinha!’».
Também Maria Odete sofre, com uma queimadura do braço ao pescoço provocada pela explosão de um carro quase à sua beira, durante o percurso que fizera a pé. Quando chegam a Pedrógão, 12 ambulâncias dos bombeiros e cerca de quatro dezenas de homens aguardavam, serenos, como numa parada. O sofrimento acidula o caráter de Odete, que lhes grita: «O que é que estão aqui a fazer, seus bandidos, quando há tanta gente a morrer na estrada?». «Não temos ordem do nosso comandante», foi a resposta que recebeu.
Em situações limite, o pior e o melhor da natureza humana vem à superfície. Com banca no Mercado de Pedrógão, a mulher – que ao sábado vendia o pescado de porta em porta – tem um especial código de conduta. Começou a trabalhar quando nem tinha idade, no mister que os pais herdaram dos avós no tempo em que ainda se andava num burrinho por montes e vales a fazer a venda. Aos 10 anos já apregoava de aldeia em aldeia no carro dos pais. Era também muito nova, quando já casada, montou o negócio na praça.
‘Cheguei a andar com 15 carros atrás de mim’
Hoje, olha para o país que pouco tinha para lhe oferecer, de Londres, para onde emigrou após a tragédia. A voz suave, pausada, contrasta com a velocidade daquele dia em que o fogo parece ter acalmado após o sacrifício humano: «Houve clientes meus que consegui salvar. Mas lembro-me da Fátima, uma moça que conhecia há muito tempo da aldeia de Pobrais. Nesse dia cheguei atrasada. Aviei-lhe duas douradas para ela e para o marido, e ela brincou comigo: ‘Chegas sempre em cima do almoço. Qualquer dia, temos as brasas prontas e comes connosco’. Horas depois acabou por morrer com o marido. Ia ao telemóvel com a filha, que ouviu tudo».
Anda de porta em porta, pelas aldeias do concelho, apesar de o marido já lhe ter dado o alerta do incêndio em Escalos de Fundeiros. Perto das seis da tarde, o fogo expandira-se por um perímetro de 106 quilómetros e atingia três concelhos: Pedrógão, Castanheira de Pera e Góis. Ninguém pedira informações sobre a previsão do vento, que parecia brincar às escondidas. Ora bufava para um lado, ora para outro. Muitas das aldeias por onde Celestina passara já ardiam. Parecia andar sempre à frente do fogo. Com muita gente em fuga, a GNR, com indicações do comando, decide cortar a IC8, a ponte de salvação entre as aldeias e a ‘estrada da morte’. Na sua carrinha frigorífica Ford Transit, que conhece aqueles caminhos de olhos fechados, Maria Odete transforma-se numa guia para muitos que entravam em desespero: «Cheguei a andar com 10 a 15 carros atrás de mim a indicar-lhes o caminho para fugirem. Até caravanas. Quando via um carro parado, com alguém desnorteado, colocava os quatro piscas para me seguirem».
A senhora só queria salvar o gato
A vendedora ambulante não mede o perigo, a audácia está presente em cada uma das suas fibras. Acompanhada por uma empregada, Fernanda, mantém a ideia firme de terminar a venda. Noutra aldeia, em Salaborda, enquanto está a aviar uma velha cliente, ouve aquela zoada, o manto negro do fumo que galga veloz, e as labaredas a aproximarem-se. Está sem bateria e pede para carregar o telemóvel, mas a luz falha: «Aí percebo que tenho de fugir. A dona Albertina estava sozinha com a neta. A senhora só queria salvar o gato, não saía de lá sem o gato. E eu disse-lhe: ‘Não temos tempo, tragam o cão, o gato, o que quiseram mas entrem já no carro’. Liguei para o filho da senhora e disse-lhe para vir ter comigo a outra aldeia, onde as entreguei».
Os caminhos estavam todos armadilhados. Celestina tentava sair da ‘estrada da morte’. Eram 20h10, já não havia saídas a não ser a estrada nacional. Seguia em direção a Figueiró dos Vinhos, e pela frente surge-lhe um gigantesco cilindro com as paredes vibrantes de fogo: «Nunca mais vou esquecer na vida. Parecia um túnel em chamas. Devia ter mais de 20 metros de altura e a largura da estrada. Peço à empregada uma garrafa de água, despejo-a pelo corpo e só penso: ‘Morra aqui ou acolá, não tenho outra solução senão seguir em frente’. Não via nada, bati em carros que estavam a arder, andei à bulha muito tempo. Quando dou por mim tinha chocado com um carro de bombeiros. Tinha os pirilampos ligados, a porta do lado do condutor aberta, lá dentro não estava ninguém, e a luz do pendura, acesa, encadeava-me. Para mim era um cenário de terror».
À sua frente, a imagem permitia-lhe reconstituir parte do que se passara. Um Mercedes 250 CLK, com um casal e uma criança, tinha embatido no autotanque dos bombeiros. Mas destes nem sinal. Deveriam ter saído para socorrer pessoas. Respirava-se com dificuldade, o corpo ardia como pão em forno de lenha, mas Celestina mantinha a frieza e não abria as janelas. Salvou-as a água e o gelo do peixe. Puxa o lustro às velhas imagens e enobrece os instintos: «A dada altura tive o pressentimento que o carro ia explodir e fiz marcha atrás. Bum, bum, bum. Há coisas que não se explicam. Só passada uma hora ou mais apareceu um carro dos bombeiros para recolher os colegas que estavam mais à frente, mas eu nem vi. Fui ter com eles e pedi: ‘Por favor, tirem-nos daqui!’. E um deles perguntou-me espantado: ‘Como é que vocês sobreviveram?’».
Vai ao cemitério chamar os filhos para o almoço
Passou um ano por esta zona. Mas as populações das aldeias junto a Pedrógão parecem acorrentadas àquele dia. Nas Várzeas, no pátio de Amílcar, atropelam-se recordações, elaboram-se sentenças. O dono da casa, depois da corrida pelo inferno, remexe as memórias. «Não sei como, mas consegui chegar a Figueiró dos Vinhos. Eu, a mulher e o cão. Parei o carro junto ao tribunal, saía fumo do capot. Alguém me deu uma garrafa de água e uma senhora deu-nos uma sandes de atum que dividimos pelos três. Felizmente, não necessitei de acompanhamento psiquiátrico nem de medicamentos…», diz sem terminar a frase, enquanto aponta para Eduardo e Maria Odete. O casal, como a maioria dos sobreviventes que perderam a família no fogo, continua perturbado por pesadelos horríveis, medos súbitos que lhes gelam o sangue. Ela fixa-se numa imagem que a sua imaginação criou: «O meu filho nunca mais foi o mesmo, está de baixa, não consegue trabalhar. E eu dou por mim tantas vezes a pensar: ‘Quem terá morrido primeiro, os pais, os filhos?’».
Escurece. Olinda receia o escuro. Acompanhou atentamente a história dos vizinhos. Tem sede de dor, porque lhe desperta a raiva. Já tanta coisa correu, os políticos disseram tanta asneira, o destino dos donativos que o povo português deu para a reconstrução das casas anda mal parado. Não tem ilusões sobre o alcance das reclamações que podem exigir, pois sabe que ninguém as levará em conta. Resta-lhe um ritual: zelar pelo buraco onde o irmão se consumiu. Em casa tem uma taça onde vai juntando fragmentos de ossos que por lá ficaram.
Cada pessoa desta zona lida com a perda à sua maneira. Mas em todos habita o mesmo sentimento de culpa, apenas porque sobreviveram. António Damásio, 69 anos, apesar dos medicamentos, tem noites de convulsões dolorosas que o fazem chorar como uma criança. Perdeu os dois filhos. Vive na irrealidade. Ganhou o hábito de ir ao cemitério chamá-los para o almoço da família: «Eles não me respondem!». Sente-lhes o hálito e nada poderá mudar isso.