Para Sara, diz Marco Martins que Beatriz Batarda pôde fazer tudo. Tudo, menos chorar. Porque dirá logo Sara, a personagem, no início: «Merda, merda, merda. Tenho 42 anos, sou atriz, não tenho família, não tenho filhos, e não consigo chorar?» Se houver frase para esta série será esta. Uma cena? Sem grande spoiler, que virá logo de início, aquela em que quase sufoca com um rebuçado. Abertura como prova de que isto há de ser mesmo Beatriz Batarda como ainda não a tínhamos visto. Ainda. Até porque isso somos nós. Para ela, como Sara, atriz de grandes papéis dramáticos em cinema e em teatro, a comédia não será aqui mais do que resultado do confronto com a tragédia de uma atriz esgotada a si própria. Sara, pela diva (Sarah Bernhardt) e pelo deserto, Moreno, nome que foi também seu um dia. Naquele seu primeiro filme, Tempos Difíceis, de João Botelho, em que se estreou no cinema, aos 12 anos. Como Sara, «que tinha uns olhos expressivos, que tinha jeito, que chorava com facilidade». Facilidade? «É como se estivesse sempre a começar do zero», diz Sara. Não exatamente o que dirá Beatriz Batarda a propósito de Sara, a estreia em televisão de Marco Martins, o realizador de Alice e de São Jorge, a partir de uma ideia original de Bruno Nogueira (aos domingos, a partir de dia 7, na RTP2, ainda com Nuno Lopes, Albano Jerónimo, Rita Blanco, José Raposo, Leonor Silveira e outros). Mas assim irá esta conversa, numa tarde de verão ainda, pelas duas atrizes em paralelo, a real e esta outra, ficcionada, que nos traz Beatriz Batarda.
Numa conversa com o Marco Martins a propósito de Sara, quando falávamos sobre o que há em comum entre si e esta personagem, ele dizia que ele próprio só a convidava para papéis dramáticos. Mas nesta série surge num registo completamente diferente do habitual.
Para mim é um drama na mesma. O que a rodeia é que é absurdo – como na vida, não é? A vida tem muitas coisas muito absurdas e, quando não estamos todos na mesma frequência, às vezes o absurdo parece-nos ainda mais do que aquilo que se calhar é na realidade. E o contexto da Sara é o de um momento particular da sua vida, um momento dramático de transição, uma espécie de uma crise existencial. A crise dos atores de quererem deixar de ser atores é recorrente. É uma coisa que começa a acontecer relativamente cedo na vida do ator.
Como provavelmente noutras profissões que são demasiado romantizadas.
Não sei se é por ser romantizado. Acho que é porque é uma profissão de facto muito desgastante e muito exigente para o corpo até. Do corpo físico, do corpo intelectual, do corpo emocional. É uma vida em esforço. A nossa especialidade é precisamente essa: levarmo-nos sempre a explorar a zona do limite, o momento da rutura, o momento das grandes decisões. Na vida não somos permanentemente confrontados com esses momentos. Já as histórias só são interessantes se tiverem um conflito de transformação. São momentos de viragem e és impelido para esses momentos com uma verdade, que mesmo que seja uma verdade poética, tem uma verdade pessoal também implicada, um investimento pessoal muito grande, e vais acumulando essa memória num espaço que é muito perto da memória da realidade. Não que a realidade e a ficção se confundam, mas vivem muito perto uma da outra. E o corpo muitas vezes ‘crasha’, pede descanso, pede um fim. Este é um momento desses, aliado ao facto de ela ter uma vida pessoal bastante estéril em termos de construção de laços de afeto. O único afeto profundo que ela ainda tem é com o pai que vive num estado depressivo muito difícil de resgatar. Nessa frequência tão particular, as outras coisas que são da vida e que são consideradas mais ou menos normais – coisas da mundanidade, do comércio desta área como são as locuções, as novelas, as publicidades, as entrevistas, esse lado mais industrial da profissão ou da arte, vá, surgem aos olhos dela como uma aberração. Portanto para mim ela está sempre em drama. Como atriz não me senti a representar um registo particularmente cómico, acho que a comédia é uma consequência desse desencontro, no fundo.
Mas vemo-la em situações que não imaginávamos provavelmente vê-la alguma vez.
Sim. Para vocês é que é… novo, vá. Para mim o que é novo é a velocidade. Já tive oportunidade de ter papéis longos e complexos num filme com uma curva bem desenhada e complexa e aqui não é bem uma curva. É um gráfico histérico para cima e para baixo de mudanças drásticas, em segundos, e isso é muito divertido. E enquanto atriz foi uma grande oportunidade, porque pus-me à prova.
Porque nesse aspeto é um papel único numa carreira de mais de 20 anos.
Foi muito bom e foi bom ter acontecido agora, porque sinto-me ainda a aprender, ainda curiosa por experimentar coisas, mas sinto-me também em forma enquanto atriz. Não sei se há dez anos me teria divertido tanto…
Ou tido a mesma capacidade…
Ou, sim, se teria tido tanta flexibilidade, se seria tão atlética, digamos, em termos de mudanças rápidas de estados de espírito.
Mas foi um processo muito diferente este do que seria o da preparação e rodagem de um filme?
Depende de com quem estás a fazer o filme. Com o Marco nunca é tranquilo [risos]. Nada é tranquilo. Mas felizmente! Tenho uma simbiose com ele já há muitos anos e isso é uma grande felicidade. Vivemos sempre tudo num sítio de febre e de paixão que é muito entusiasmante, que nos preenche. Nunca nada é en passant – e eu não gosto de estar na vida en passant.
Falava sobre o lugar em que está a Sara, nesses colapsos que diz que não serão tão difíceis de acontecer assim a um ator. Não digo exatamente deixar de conseguir chorar necessariamente, mas já teve algum do género?
Não sou muito neurótica. Às vezes tenho esse impulso mas não dou grande espaço a que tenha muita voz. Normalmente durmo uma noite e passa.
A experiência, a passagem dos anos, também ajudam a perceber que as coisas vêm e vão e que há fases que passam, não?
Não sei se são os anos. Acho que o contexto da minha vida pessoal ajuda muito. Não a idade, mas o contexto. Tenho a felicidade de ter crescido numa família muito sólida e muito unida, tenho três filhas que são uma alegria de crianças e que me mantêm ligada à realidade e às necessidades concretas dos afetos, portanto não há muito espaço para deixar as vozes existencialistas mais neuróticas ganharem corpo. Percebes? Se a minha realidade tivesse sido a da Sara, eu não seria a mesma pessoa. Não temos que ser o que nos acontece, somos aquilo que fazemos do que nos acontece, mas às vezes fazemos só o que podemos. Às vezes não podemos mais. Acho que a Sara não pode mais. Não sabe fazer melhor.
Uma coisa que acho que é importante não deixar passar, porque algumas pessoas podem não reparar, é que o apelido da Sara, Moreno, é um dos seus apelidos também. No seu primeiro filme aparecia como Beatriz Moreno, aliás.
É. O primeiro filme que fiz, quando tinha 12 anos, do João Botelho, que se chamava Tempos Difíceis [1988].
Com 12 anos, como a Sara também.
Sim. Nesse primeiro filme o nome que o João Botelho escolheu foi Beatriz Moreno. Depois abandonei esse nome porque achei que o meu pai ia ficar um bocadinho triste e comecei a usar mais o Batarda. Mas tenho um saudosismo dessa figura, dessa atriz que desapareceu de circulação que era a Beatriz Moreno [risos].
A Sara é uma espécie de encontro entre as duas.
Exato. Sara, não só por homenagem à Sarah Bernhardt, que é o cliché das grandes vedetas, mas porque é o nome de um deserto. E, tal como o deserto, esta Sara está deserta, árida, sem lágrimas. Foi por isso que propus o nome Sara.
Foi ideia sua então.
Não contribuí muito mais do que isso. Não vou tentar puxar para mim louros porque li os guiões à mesa com o resto do elenco, não tive interferência na escrita.
Mas, já que fala nisso, se para uma atriz é já um privilégio enorme ter um papel que seja escrito à sua medida, tê-lo por pessoas tão próximas como são Bruno Nogueira e o Marco Martins é…
Devo dizer que nisso fui bastante mimada porque não é a primeira vez que me acontece. Praticamente todos os filmes que fiz, ou os papéis mais importantes para o meu percurso no cinema, foram escritos para mim. Os filmes do José Álvaro Morais, os filmes da Margarida Cardoso, os filmes do próprio Marco Martins, do João Canijo, foram filmes escritos a pensar já em mim. E isso é uma grande sorte, nem toda a gente tem essa… sorte, não há outra palavra, realmente. Dádiva, vá. O que é engraçado na circunstância desta escrita [de Sara] é que são pessoas com quem já trabalhei muito e que não só me conhecem a mim como conhecem a maneira como trabalho. Acho que foi disso que eles mais tiraram partido. De uma espécie de exercício que insisto em fazer em todas as personagens que é construir uma contradição no comportamento, nas atitudes, na maneira de percecionar os outros, no fundo. É uma teima que tenho e eles tiraram muito partido disso. Dessa não lógica comportamental. O «ela não diria isto», «ela não faria isto», isso não existe na maneira como abordo as personagens.
Porquê?
Porque acho que a vida não é assim. As pessoas na vida não são assim.
Não têm que fazer sentido.
As pessoas não fazem sentido, as pessoas são contraditórias. Isso é o que nos dá humanidade, é o que nos põe em contacto com as nossas fragilidades, com o erro. Não somos sempre cool e não somos sempre lógicos. Às vezes saímos do padrão e quando saímos do padrão é quando de facto somos surpreendidos, surpreendemos os outros e aprendemos e crescemos. E acho que as personagens merecem ser tratadas com a mesma humanidade.
É fácil encontrar o espaço necessário para trabalhar dessa forma?
Acho que sim, que isso é sempre possível, porque é um trabalho interior. Pode ser mais ou menos evidente, mais ou menos subtil, mas é uma opção, é a minha identidade enquanto atriz.
O Marco Martins falava-me também, espero estar a ser fiel às palavras, numa espécie de subtexto, um espaço na personagem e na cena que é seu, que aparece no momento, e que ele diz ter ganhado toda uma nova dimensão nesta série.
São coisas que nascem disto de que estamos a falar agora. Vou ser honesta: crias este desejo enquanto artista de criar alguma contradição, que é parte da preparação, mas depois no momento em que estás a representar não estás a pensar nisso. Estás na situação e acontece. É uma coisa que não pode estar no foco, ou já não estou a contar a história, já estou a falar de mim, Beatriz, e isso já não é honesto, tenho que servir aquela história. As minhas ambições artísticas, as minhas procuras, as minhas inquietações enquanto atriz são uma coisa que tem que funcionar paralelamente. Alimentam a história, mas não podem ser mais fortes do que ela. Portanto, há uma parte que é um mistério e que não sei explicar. Chama-lhe maluquice.
Mas tem a ver com isso isto que ele diz sobre a forma como entrou neste papel então.
Tem a ver com isso, sim. Mas é uma coisa que não se ensina. Dou aulas de teatro e essas coisas eu própria também não sei muito bem como é que acontecem. Acho que é uma combinação de muita coisa. De muito trabalho, de a cada coisa que faço questionar tudo, e depois de fazer fico a refletir. Faço algumas escolhas, umas mais conscientes do que outras, do que vou guardar ou não vou guardar para um próximo trabalho. Apesar de tudo são 20 anos e não é só fazer, é também pensar muito sobre como é que se faz e para quê. Gasto muito tempo a pensar nisso.
Ou seria apenas um veículo de…
E sou, também. Tenho que ter essa humildade. Mas há também essa reflexão, essa tentativa de compreender. Não de dominar completamente já. Já não tenho essa ambição, aceitei o tal mistério.
Em relação a esse «dominar completamente». Dominar as personagens também? Porque elas existem por elas próprias, não?
Elas existem. Completamente. O que me é muito difícil é quando não percebo a personagem – às vezes perceber não é perceber racionalmente, é perceber mesmo que seja um perceber mais elevado, uma coisa mais transcendental. Não têm que ser sempre coisas do planeta Terra. Mas quando não percebo fico muito zangada, cria-me muita frustração e dificulta o processo. Uma vez que percebo, que crio uma ligação, é um motor com energia própria. Que vive paralelamente, sim.
É um processo em parte intuitivo, então.
Tem de ser sempre intuitivo. Não sei se isto é válido para toda a gente mas tenho para mim a ideia de que quando é só intuitivo é amador – amador no sentido em que é amoroso, mas não é um exercício de pensamento artístico – e que quando é só reflexão e exercício técnico perde o lado amador e passa a ser um exercício formal. Aquilo que procuro é um encontro das duas coisas. Procuro ter um caminho que me alimenta, que me estimula enquanto ser pensante, mas com muito amor, sempre. E intuição. É isso.
Falou no José Álvaro Morais [Morais é o nome do realizador interpretado por José Raposo com quem a Sara está a trabalhar no início da série] e veio-me à memória um filme de que acho que as pessoas se lembram muito pouco, o Quaresma [2003], que gostava de trazer para a conversa porque deu-lhe um desses papéis gigantes, que imagino que tenha sido muito importante na altura.
Foi um papel que tomou conta de mim, foi complicado. Esse eu não domei, lá está. Guardo uma memória muito ternurenta desse papel, porque a Ana era um bocadinho bipolar e isso foi coincidente com o facto de termos filmar para a Dinamarca no verão, o que fez com que houvesse poucas horas de noite, ou nenhumas. Eu não dormia e aconteceu, de facto, perder um bocadinho as estribeiras por falta de sono. Uma pessoa quando não dorme vários dias emaluquece um bocadinho. A única coisa consciente que guardei foi que aceitei, que não resisti, e que de forma um bocadinho mercenária usei isso para a personagem. Não tinha o guião, nunca li o guião desse filme, foi um acordo que o José Álvaro fez comigo. A cada dia, de manhã, ele explicava-me a cena e dava-me um diálogo.
Mas os outros tinham-no?
Acho que quase toda a gente tinha. Talvez o Ricardo Aibéo também não tivesse, não estou segura. Comigo ele quis experimentar isso e eu deixei-me guiar completamente. Cada dia era uma coisa e talvez por isso também tenha acontecido essa falha no sistema [risos].
Acho engraçado isto de se falar tão pouco nesse filme, porque sempre que penso em Beatriz Batarda é um dos primeiros que me vêm à cabeça.
Acho que o José Álvaro foi sempre um fenómeno desses porque esteve sempre um bocadinho à frente do seu tempo. O Bobo [1987], por exemplo, que foi um filme estudado muitos anos no conservatório, quando foi feito não teve impacto. Depois é que foi sendo descoberto e redescoberto. Penso que são filmes que não correspondiam à sua época.
Esta série, rodada há um ano e qualquer coisa, chega à televisão numa altura em que está no Teatro D. Maria II com uma peça de Pascal Rambert…
A fazer de atriz.
Exato. Nunca antes tinha interpretado uma atriz, pois não?
Não. O Marco fez uma coisa que no fundo foi a semente para o espetáculo Atores [estreado este ano no São Luiz, em Lisboa] e que o fez também querer abraçar logo esta ideia do Bruno [Nogueira, companheiro da atriz]. Quando fizemos As Criadas, no Teatro Nacional também, o Marco agarrou como princípio para a encenação num texto do Jean Genet sobre a representação em que ele fala do ensaio e da repetição e de como cada espetáculo deve ser encarado como um ensaio, não um objeto fechado. Mesmo com a presença do público, deves ter a honestidade e a coragem de experimentar coisas que não estão estabelecidas e usá-las para fazer crescer o espetáculo e o texto. Acho que foi a partir daí que começou a nascer o Atores, e [a partir daí] fazia todo o sentido ser ele a realizar [esta série]. Claro que ajudou muito a eu aceitar ser escrita pelo Bruno e realizada por ele. É preciso confiares muito nas pessoas com quem estás a trabalhar para fazeres uma personagem destas. Se não sentes que estão a olhar para ti com olhos de ver, que não estão a cuidar da personagem, da história, não dá vontade de dares tanto. Isto possibilitou-me uma entrega muito especial porque estou realmente em total sintonia, porque acredito no talento destas pessoas.
E confia.
Confio nelas afetivamente, o que também é muito importante. Conheço as referências, conheço a ética profissional deles e identifico-me com essa ética. É quase como se fôssemos todos a extensão uns dos outros.
Falando em referências, a série está repleta delas, mas é construída em camadas. E com isso tem a capacidade de chegar a vários públicos.
A história do universo da ficção é um trampolim para falar de outras coisas. Aquilo é uma reflexão sobre o mundo atual, não é uma coisa fechada. A primeira premissa, que é uma premissa dramática, quase trágica, no meu entender, que é ela já não conseguir chorar, que se transforma num dispositivo risível, cómico, é uma premissa trágica porque reflete a perda da capacidade de espanto desta mulher perante a vida. E não podes nem fazer arte nem ver arte, seja literatura, dança, poesia, música, teatro, cinema, se tiveres perdido essa capacidade de espanto. Isto é muito trágico, é uma espécie de divórcio com a vida e isso é uma metáfora para muitas coisas que estão a acontecer na nossa sociedade. Há uma espécie de abandono da pessoa para um abraçar quase total da imagem. Nem é a máscara, é a imagem da pessoa, como se fosse uma invenção virtual de uma identidade que não corresponde a todas as outras cores que trazemos dentro de nós. E isso é um drama social atual, que não é só desta área.
Sim, a Sara é uma personagem com quem é muito fácil qualquer pessoa identificar-se. Logo de início, quando percorre tudo aquilo de que abdicou durante a vida inteira por uma carreira que de repente também já não está a funcionar.
Mas ela é que é a culpada. Não é o contexto. O mundo atual é o que é, é uma máquina que funciona sozinha. Estamos aqui, olha, porque estamos aqui, há de ir para outra coisa. Ela é que se esgotou a ela própria, ela é que, movida por uma paixão, se secou a ela própria.
Dizia no início que não há aqui uma curva muito bem desenhada, mas há uma curva, ainda assim. Ela muda. No final não é a mesma pessoa que encontramos no início.
Há uma possibilidade de redenção porque há uma tomada de consciência de um fim. Há a aceitação de um fim de qualquer coisa. De uma era, de uma maneira de estar, de uma maneira de olhar a vida. Ela estava a resistir a isso e quando há uma aceitação abre-se a possibilidade de um início. Um início verdadeiro, que não seja um início forçado como aquele que ela tenta ao abraçar um mundo que lhe é completamente estranho.
Já alguma vez lhe passou pela cabeça ir fazer…
Novela? Sim. Já se falou disso. Mas, repara, quando digo que tenho muita sorte, tenho mesmo.
Por nunca ter estado numa situação em que tivesse que fazer uma novela, por exemplo?
Não é ter que, porque há pessoas que só ambicionam isso.
Mas há quem ambicione outras coisas e não chegue a ter essas oportunidades.
O meu percurso não se desenhou assim. As minhas escolhas, as minhas influências não se desenharam nesse sentido. Fui criando interesses e curiosidades noutras direções, que mais depressa me levaram para a encenação, e tenho sempre coisas a um ano ou dois à frente. Seja no teatro, a encenar ou a representar, no cinema ou no ensino. Abdicar disso para estar meses a fazer uma novela, nunca tive esse impulso. Seria falso em mim, percebes? A atração nunca foi suficientemente forte para me fazer mudar o rumo.
Sim. Mas não é uma opção para toda a gente.
Possivelmente. Acredito que muitas pessoas não tenham ambicionado fazer novelas. Suspeito que grande parte.
Entrar no cinema como ator é difícil. Falava em escolhas agora. É uma escolha realmente?
Também é. Há um fator sorte, que não controlas, mas há um fator escolha. Por exemplo, eu escolhi ir estudar. Já tinha começado um percurso cá, já estava a trabalhar há quatro anos na Cornucópia, já tinha feito uns quatro ou cinco filmes, já tinha algum trabalho significativo.
Foi estudar para Londres com que idade?
Com 23 anos. E comecei com 18.
Está a excluir o Tempos Difíceis, do João Botelho.
Sim, porque foi um ato isolado. Depois fiz um filme do [Manoel de] Oliveira aos 18, o Vale Abraão [1993], e a partir daí é que fui fazendo regularmente.
É a partir daí que conta.
Embora não me considerasse atriz nessa época. Trabalhei esses cinco anos e senti necessidade de ir estudar porque não me considerava atriz. Comecei a sentir-me um bocadinho um bluff, a ocupar um espaço do qual não me sentia merecedora. Tomei a decisão de ir estudar. E abandonei projetos. Nesses anos, foram-me feitos convites que recusei. E essa escolha foi muito importante. Depois, como estava um bocadinho na moda, porque há esse fenómeno também, das modas, havia uma grande variedade de ofertas, e as escolhas que fiz dessas ofertas…
Está a falar agora do que aconteceu depois de voltar de Londres?
Sim. Os dois filmes do José Álvaro, por exemplo [Peixe-Lua e Quaresma]. Já havia convites para ir fazer séries para a televisão e eu não quis ir por aí. Não novela, séries. Na altura havia séries, mas não era o que eu queria. No período em que não estava cá houve dois fenómenos que foram importantes para o desenvolvimento da televisão e das novas gerações de atores que foram o Riscos e os Morangos com Açúcar. Ainda estava em Inglaterra quando isso aconteceu. O Levanta-te e Ri, que o Bruno fez, também. Foi um momento de grande transformação na televisão esse. E eu fiquei lá. Mal acabei a escola arranjei logo um agente e estive um ano a trabalhar num teatro, fiz dois espetáculos, um deles com uma digressão muito longa pelo Reino Unido inteiro, mas depois estive nove meses sem nada. Com ofertas cá. Mas não queria voltar porque ainda não tinha esgotado aquilo. Estive esses nove meses a fazer outro tipo de trabalhos. De servir às mesas e serviço de mulher a dias, de limpeza, que foi muito enriquecedor para mim como atriz.
Pelo acesso a uma realidade nova.
O meu ADN é um ADN burguês, mais ou menos polido, e portanto um bocadinho redutor em termos de personagens. Aquele trabalho árduo, físico, numa realidade de classe operária não só me fez pensar sobre essas realidades ao estar em contacto com elas, mas também descobrir um corpo diferente que me permitiu fazer outras personagens. Como na Noite Escura [de João Canijo, 2004], por exemplo, ou a personagem do São Jorge [2016] embora seja um papel pequeno.
Só quando vi o filme pela segunda vez é que consegui descobrir-la entre os não atores. Lembrava-me da personagem mas não a tinha reconhecido de todo.
Não foste a única. Fizemos um trabalho bastante sério, acho, de aproximação daquelas pessoas. Eles são muito reais e a presença de um ator ali era muito difícil porque é uma energia muito diferente. E conseguires destruir tudo isso, todos os teus artefactos, todos os teus recursos, despojares-te disso para poderes desaparecer, no fundo, com os outros… Não é um trabalho simples de se fazer, mas é muito gratificante. Depois, tinha tido a minha última filha e o Marco pediu-me por tudo para não emagrecer – engordei uma brutalidade nessa gravidez porque parti uma perna, foi uma gravidez não muito elegante – e lá me aguentei mais pesada durante uns meses para o filme.
Voltando a essas experiências de trabalho em Londres de que falava.
Acho que o trabalho de um ator enriquece muito com a sua experiência de vida, que não tem só a ver com os traumas ou as perdas ou a sua experiência freudiana. Vai para além disso, às vezes até este tipo de experiência de abraçar realmente outras realidades. Para a Noite Escura estive um mês a trabalhar numa casa de alterne. Nem todos os projetos pedem esse tipo de trabalho, mas são experiências muito enriquecedoras, porque criam memória no corpo, que é mais um recurso que ganhas. Os atores têm que estudar muito, sim, trabalhar muito, mas também têm que saber viver.
Foi também essa consciência que a levou a esses trabalhos? Ou foram só o que apareceu?
Não sei sequer se tive essa consciência. Acho que pura e simplesmente não estava preparada para voltar. Não tinha esgotado a minha experiência, o meu momento lá. Não só profissional, mas o que precisava de explorar enquanto pessoa.
Mas queria voltar?
Sim, mas também estava preparada para ficar lá para sempre. Estava disponível para as duas coisas. Depois a vida trouxe-me de volta.
A vida?
O amor. A minha filha Maria. Fiquei à espera dela lá e não a quis ter lá. E pronto, voltámos.
Foi estudar para Londres porquê? Porque nasceu lá [em Londres] e veio viver para cá, mas depois estudou no Liceu Francês.
Tenho a nacionalidade, mas não foi por essa razão. Quando pensei em sair para fora para estudar, o meu primeiro impulso foi ir para França porque tenho família francesa do lado da minha mãe, que foi o que me levou a estudar no Liceu Francês, e o Francês era a minha segunda língua. Mas nessa altura estava a trabalhar na Cornucópia e tinha uma ligação muito forte ao Luís Miguel Cintra, que começou a crescer como uma espécie de referência e de mentor na minha vida, e quando discutimos esse assunto ele, que tinha tido formação em Inglaterra, na Old Vic, deu-me um argumento muito engraçado, que foi o teatro que estávamos a fazer na época em Portugal – e está a voltar a acontecer, é bonito ver isso – era um teatro muito influenciado pela corrente francófona. Muito pouco na linha dos ingleses, com uma tradição de storyletting. Aqui, o movimento teatral era mais focado na forma, na construção da estética. E ele disse-me: «Acho que aquilo que vais buscar a França já tens aqui. Aquilo que não temos para te oferecer deves ir buscar a Inglaterra.» E não era a minha primeira nem segunda língua, eu não sabia ler em inglês – sabia ler silenciosamente, mas não sabia ler em voz alta. Aliás, uma das provas de acesso era ler o Great Gatsby [de F. Scott Fitzgerald] em voz alta e foi um horror porque eu lia palavra a palavra, não conseguia sequer formar uma articulação de pensamento. Mas não foi impeditivo para entrar.
Essa relação com o Luís Miguel Cintra e a ida para a Cornucópia veio de algum dos filmes que fizeram juntos? Porque foram vários.
Contracenámos a primeira vez no Vale Abraão do Manoel Oliveira em que fiz de filha dele. Depois, no filme a seguir, A Caixa [1994], também. Ele fazia o cego nas escadinhas de São Cristóvão e eu fazia a filha escrava. Aí ele convida-me para um Shakespeare na Cornucópia e assim começa este amor.
Mas pelo meio disto ainda entrou em Design.
Entrei em Design já depois d’ A Caixa, já tinha feito três filmes.
Como é que foi parar ao Tempos Difíceis e depois ao Vale Abraão? Não queria ser atriz, pois não?
No filme do João Botelho havia uma atriz inglesa, a Júlia Britton, que na verdade não era atriz, era montadora de cinema, mas fazia um papel, e o início do filme era a infância das personagens. Precisavam de uma menina que tivesse os tons da inglesa olharenta que era a Júlia Britton e então foram a estas escolas estrangeiras ver crianças. Eu estava no recreio e abordaram-me, pediram-me o meu nome, e depois os meus pais receberam um telefonema em que eles explicaram que gostavam muito de me conhecer, que era um realizador importante, que era um filme sério, enfim, se poderia ir fazer a audição. Os meus pais tiveram muita resistência mas consultaram-me e eu disse que gostava de experimentar. E depois fiquei.
Tão aleatório quanto isso.
Ser atriz nunca foi uma coisa que eu quisesse. Depois, a minha prima Leonor Silveira foi acompanhar uma amiga ao casting de um filme chamado Os Canibais [1988] Não ia fazer o casting, mas o Oliveira quis vê-la a ela também.
Ela não queria ser atriz também?
Não. Tinha ido fazer companhia à amiga. E ficou no filme. E depois, quando ela foi fazer o Vale Abraão, eu tive umas férias e fui fazer companhia à Leonor, a Peso da Régua, no início da rodagem. E o Oliveira disse «ah, tu é que podias fazer a filha da tua prima quando ela está mais velha». Foi assim.
Que lindo. Ele tinha muito isso. Fixava-se em caras de pessoas para os filmes, não era?
Sim, fixava-se numa pessoa e não descansava enquanto não a pusesse num filme [risos]. Como achou que eu tinha assim uns ares de parecença com ela… pronto. E olha, agora tenho tentado merecer esse lugar que me deram. Quis ser designer, artista plástica, mas acho que também faço artes plásticas na performance. Em vez de ser numa tela ou num objeto, é no meu corpo, na transformação do meu corpo. Acho que há qualquer coisa de plástico nisso. Não me sinto frustrada porque sinto que essa minha paixão tem um caminho para se expressar.