Embora tenha hoje menos encomendas do que noutros tempos, acorda todos os dias às 5h30 da manhã. Por vezes combina tomar o pequeno-almoço com algum amigo ou cliente na pastelaria Versailles, mas por norma está a abrir a porta do ateliê às 7h. Ali tem um espaço de trabalho que é o seu santuário e outro para receber visitas, uma sala ampla, com uma mesa comprida ao centro. «Parti a mão aos murros em cima desta mesa numa reunião com os patrões das Amoreiras», recorda. Além dos desenhos que forram as paredes, há objetos de decoração inesperados, como uma imagem de Nossa Senhora, uma águia do Benfica e um dragão do FC Porto em bronze. Do Sporting não se avista nada, embora Taveira tenha assinado o projeto do estádio de Alvalade. «O Sporting é gente seca, gente muito seca», desabafa. «Na inauguração do estádio ignoraram-me completamente. E eu estava ali na primeira fila».
Um momento importante da sua carreira são os estádios do Euro 2004. Como surgiu a oportunidade de fazer os projetos?
Um dia o Sócrates chamou-me e disse: ‘Tomás, estou empenhado numa coisa complicadíssima que é trazer para Portugal o Euro 2004’. Eu respondi-lhe: ‘De quê, de snooker?’ ‘Não, pá, de futebol. Mas eu preciso de convencer a UEFA de que temos estádios. Tens de ajudar.’ ‘Mas como é que eu ajudo?’ E ele: ‘Falas como Carlos Cruz, que sabe quem é que quer ter estádios na cidade, e vê o que consegues com essa malta’. Eu gosto do Sócrates, embora ele não goste muito de mim, porque é um indivíduo que não tem sentido de humor e não se esquece desta piada do snooker… Então eu financiei o estádio de Leiria, o estádio de Aveiro, o do Sporting e o do Benfica. Se o Euro 2004 não tivesse vindo para Portugal eu tinha tido um prejuízo louco e explodia. Como veio, pagaram-me, uns melhor, outros pior. Ainda na semana passada recebi a última prestação do estádio de Aveiro, imagine… ao fim de 500 anos.
Ganhou muito dinheiro como o Euro 2004?
Perdi. Perdi muito dinheiro.
Que sentido faz trabalhar nessa incerteza e acabar por perder dinheiro? Não são demasiados riscos?
São, o que é que eu posso fazer? Quer que eu deixe de ser arquiteto e vá vender automóveis ou vá ao seu jornal pedir para ser jornalista? Não posso.
E acha que as alternativas que lhe foram sendo cortadas foi por causa do choque provocado pelas Amoreiras? Ou melhor, sente que as Amoreiras ‘mataram o pai’?
É verdade! Vou contar isto: lembram-se do Sampaio e do Marcelo concorrerem à Câmara de Lisboa? O Marcelo atirou-se ao rio…
E andou a conduzir um táxi…
Isso não sabia. O Expresso fez uma entrevista ao Marcelo e tinha uma das perguntas clássicas da época: ‘O que é que pensa das Amoreiras?’. E ele respondeu: ‘Não gosto’. Na semana seguinte, fizeram a mesma pergunta a Jorge Sampaio e ele: ‘Não gosto’. Isto diz tudo.
E então?
Não gosto do tipo de antropologia comportamental que leva indivíduos como Marcelo ou Jorge Sampaio a terem atitudes eugenistas desta natureza, porque isto é uma coisa criminosa. É jogar com a profissão de uma pessoa. O Jorge Sampaio odeia a minha arquitetura. Tenho um edifíciozinho aqui ao lado que o Sampaio chumbou três vezes, esteve 17 anos para ser aprovado. Aquela porcariazinha. Este tipo de ressabiamento tem a ver com outra coisa que eu penso que na vossa geração já não é tão visível, que é o preconceito de classe. Muita gente me viu de camisa rota, de calças rotas, sapatos rotos subir na vida, mais tarde fazê-los engolir as obras que eu fiz… não resistiram. O Sampaio é um deles.
Nunca quiseram reconhecer o seu valor em Portugal?
Os preconceitos eram fortíssimos, um indivíduo que vinha do lumpenproletariat não tinha direito a subir na vida.
Foram esses preconceitos que impediram o seu reconhecimento?
Claro. Na altura eu organizava uns almoços para promover as Amoreiras junto da banca, junto das companhias de seguros, junto das forças vivas da cultura. No verão eram sardinhas assadas, no inverno cozido à portuguesa. Tudo quanto era Lisboa importante ia lá. O Marcelo estava sempre às quintas-feiras. Faz algum sentido uns gajos que passavam a vida a comer e a beber à minha conta dizerem que não gostavam? Só à chapada. De outra maneira não dá.
Hoje as Amoreiras é o centro comercial das elites…
Não sei, porque não frequento. Tenho calçados uns sapatos que comprei em Los Angeles há vinte e tal anos, estas calças foi a minha mulher que as comprou, esta camisa foi uma namorada que me deu. Eu não compro nada.
Não gosta de objetos de design, mobiliário…
Já gostei, agora sou perfeitamente narcisista.
Como é a sua casa? É uma ‘casa de arquiteto’?
Diria que sim, tem muita pintura, tem esculturas. Então a minha casa da D. João V… Sou divorciado e ainda não fizemos as partilhas porque a minha ex-mulher diz que é tudo dela e eu não consigo lá entrar. Aí até tenho esculturas do Salvador Dalí, pinturas que nunca mais acaba, da Paula Rego… Os meus filhos ainda eram pequenos e deixei tudo lá em casa, para manter o ambiente, para manter o status, que era muito elevado. À minha casa iam jantar o Balsemão, o Mário Soares… É uma casa de 500 metros quadrados, só o hall tem 35. Para chamarmos a empregada tínhamos de telefonar.
Sente saudades desses tempos?
Não. Só tenho saudades dos meus pais e dos meus avós.
E a sua casa atual?
É um loft grande ali nas Olaias, com uma vista fabulosa sobre a cidade, sobre o Tejo.
Sempre gostou mais da cidade?
Eu sou um animal do asfalto, alimento-me do alcatrão. Adoro ver o campo, mas é ao longe. Se me dissesse ‘tu agora vais viver para ali’, não queria.
Esse período de há 30 anos ficou marcado pela divulgação de vídeos íntimos, o que talvez tenha até ditado parte do seu afastamento dos holofotes. Como é que hoje olha para trás?
Não quero falar sobre isso.
Mas o homem mudou ou não depois daquele episódio? O ter passado a estar longe dos holofotes também pode ter feito com que hoje ninguém o ligue às Amoreiras, ou não?
Não, não teve influência nenhuma. Nem internacionalmente. Nenhuma.
Não houve quem se tenha afastado de si?
Não me pergunte porque não sei, isso é uma página branca na minha vida.
Branca ou negra?
Branca, branca, branca, branca. Não está lá nada. Seria uma página negra se eu tivesse morrido.
Mas só o ter começado por dizer que não queria falar sobre os vídeos, mostra que não é algo com que se sinta à vontade.
Não quero porque não é relevante para mim como homem, como homem de cultura, como professor catedrático, como pessoa que tem a história que tem. É como dizer que o Charles Aznavour teve um caso com a Amália.
Viu esse episódio como uma traição?
Nunca senti nada disso, sou uma pessoa muito desportiva. Aconteceu? Aconteceu. O que é que vou fazer? Vou-me matar? Não vou, acabou-se. Que importância é que isso tem? Um ex-primeiro-ministro francês há uns anos, um socialista, viu serem divulgadas umas cassetes dele e num programa de televisão questionaram-no sobre isso. E ele respondeu: ‘Viram? Gostaram?’ [risos]. E matou logo a conversa.
Hoje em dia essas questões teriam menos proporções?
Não conheço a juventude, a vossa geração, já deixei de dar aulas há 15 anos, nessa altura ainda tinha contacto com jovens.
Mas gostava de conhecer?
Não. Aliás lamento profundamente ter aceitado o convite para ser professor.
Não gostou?
Odiei. O ambiente na universidade é um ambiente podre, de luta pelo poder, um ambiente não-crítico, onde é impossível falar de cultura.
E os alunos odiavam as suas aulas?
Nunca lhes perguntei. Eu dei aulas gloriosas, em que misturava a pintura com a escultura e com as diferentes tendências de música. Isso fascinava-me, mas acho que nunca ninguém percebeu o que eu disse.
Disse que perdeu o contacto com os jovens. É um homem isolado?
Não. Uma coisa é conhecer a sociedade, outra é conhecer os comportamentos. Por exemplo, eu não imagino um indivíduo à porta de uma discoteca dar uma facada numa mulher ou num homem. Um ou dois sujeitos violarem uma rapariga que estava desmaiada numa casa de banho. Eu não compreendo isso, por isso digo que não conheço esta sociedade, percebe o que eu quero dizer? Eu vivi no meio de ciganos, de operários, os mais reles que havia, e nunca houve um problema de uma violação. Nunca.
Nos últimos 15 anos fez projetos para Angola, Brasil, Argélia, Dubai, Rússia e Cazaquistão. Foi empurrado ou foi uma opção?
Aconteceu. Com o Euro 2004 fiquei um bocado famoso pelo mundo todo. Comecei pelo Brasil, Angola e acabei por ir parar a São Petersburgo, onde ganhei o concurso para o estádio do Zenit – depois disso o primo do Medvedev tirou-me o projeto para entregar a um japonês que morreu dois meses depois. Agora fiz um Palácio do Gelo no meio das montanhas no Cazaquistão, que é uma coisa deliciosa.
Quando faz um projeto para a Argélia, para o Cazaquistão ou para o Brasil molda-o a cada realidade ou qualquer um que lá chegue percebe ‘isto é Taveira’?
Quem estiver consciente da arquitetura que estou a fazer no momento reconhece. Eles têm a arquitetura deles, nós a nossa. Se quiserem a deles vão buscar um arquiteto deles. Até hoje não me tenho dado mal. Algum dia que me dê mal dou um murro e acabou a conversa. E estou preparado para morrer amanhã ou depois, não tenho qualquer relação esquizofrénica com a morte.
Já fez tudo o que queria ter feito?
Eu nasci numa família muito pobre, o meu pai era agulheiro na Carris, a minha mãe era doméstica, o meu avô materno tinha sido morto pelo Salazar na célebre leva da morte em Badajoz – tinha sido um dos fundadores da Carbonária. Tive uma mãe muito presente que foi quem me ensinou a 4.ª classe.
Não ia à escola?
Andei na escola n.º 14 no Largo do Leão. Mas o liceu era caríssimo e a única hipótese era a escola industrial, depois queria ir para marinheiro. Fiz dois anos de ensino preparatório e tirei o curso industrial na escola Marquês de Pombal, ao pé do largo do Calvário. Como o meu pai era da Carris, beneficiei do facto de a empresa dar preferência aos filhos dos funcionários.
Em criança já tinha jeito para o desenho?
Desde miúdo que desenho muito bem. Qualquer tipo de coisa. E isso entronca no que vou dizer. Eu morava no n.º 2 do Largo do Leão e no n.º 4 morava um grande amigo, o Joaquim Pereira – o preto mais bonito que vi na minha vida. O Joaquim Pereira fazia os cenários do Monumental e durante as férias eu ia para o pé dele enquanto ele estava a pintar. Um dia a namorada dele pergunta-me o que é que eu quero ser na vida. ‘Marinheiro’. O Joaquim Pereira responde: ‘Tu não vais ser marinheiro, tu vais ser arquiteto porque desenhas melhor do que eu’. Nunca tinha ouvido falar na palavra arquiteto. O que é facto é que depois ele arranjou-me um ateliê para eu praticar quando saía da Carris.
Que idade tinha?
Tinha 14 anos. Estive na Carris até aos 18 anos. Depois fui para moço de recado de dois arquitetos muito famosos: o Formosinho Sanchez, que fez o Bairro das Estacas com o Rui de Atouguia, e o Maurício de Vasconcelos. Eu ia para lá para comprar o lanche e o petróleo para o aquecimento e eles deixavam-me fazer uns desenhinhos.
Encorajavam-no a desenhar?
Não!
Toleravam?
Nem isso. Eu era o gajo que estava ali para afiar os lápis, para ir comprar o lanche, para atender o telefone se não estivesse mais ninguém. Nunca me ligaram nenhuma. O facto é que fui evoluindo e comecei a perceber que tinha de ser arquiteto. Depois trabalhei como desenhador para tudo quanto era arquiteto bom em Lisboa: como o Alçada Batista, o Laginhas, o Teotónio Pereira, o Portas, com essa gente toda. Houve um conjunto de acasos que aconteceram na minha vida e que me foram empurrando. Nada foi construído, foi tudo por acaso.
Não foi planeado?
Acabei o curso tarde, porque não precisava de ter curso. Tinha muito trabalho no Conceição Silva, tinha acabado de casar, a minha mulher estava grávida da nossa primeira filha. Mas a arquitetura foi-se tornando cada vez mais importante para mim, estudava que nem um louco e candidatei-me a uma bolsa da Gulbenkian. Foi uma sorte brutal porque um dos gajos que decidia as bolsas era meu professor e o outro tinha estado comigo na tropa em Santarém.
Onde conheceu Herberto Helder…
O Herberto Helder e o Fernando Assis Pacheco. Eles eram super-amigos e eu… Eu fui sempre um personagem menor. Nunca fui o centro das atenções.
Isso incomodou-o ou trouxe-lhe alguma desvantagem?
Desvantagens terá trazido, como se vê agora. O governo entrega tudo ao Souto Moura e ao Siza e a mim não me entrega.
Sente-se injustiçado?
Não. As pessoas têm direito a entregar o que querem a quem querem. Agora, conto-lhe uma história. Em dada altura havia um japonês que eu conhecia bem de Los Angeles, que me telefonou a dizer: ‘O júri do prémio Pritzker vai a Portugal ver a tua obra, portanto tens de estar aí’. O júri veio no avião do Jay Pritzker e instalou-se no hotel Ritz. Tinham que ir ao Porto ver o Siza mas havia um nevoeiro louco, não se via puto, zero, então alugaram uma limusine. Quando vieram do Porto recebo um telefonema do motorista da limusine. ‘Arquiteto, você já ganhou o prémio. Sei inglês e ouvi as conversas todas para cima e para baixo’.
Mas não ganhou.
Porquê? Porque o Jay Pritzker era judeu e o Siza também.
Deve ter sido um balde de água fria…
Veja bem: um indivíduo que nasce operário, filho de operários, que vivem no lumpen, e chega onde eu cheguei… São tudo bênçãos! Já nada me toca.
O que não quer dizer que não tenha ambição…
Tenho ambição de ser um grande arquiteto, ainda maior do que sou – porque acho que sou um grande arquiteto, e sei mais do que estes gajos todos juntos, porque estudo todos os dias. E fui aproveitando os acasos.
Nos últimos anos tem andado à procura dos acasos?
Vou apanhando ideias. É preciso fazer um aeroporto? Então faço um aeroporto. É preciso fazer um estádio? Eu faço um estádio. Tenho que estar numa posição muito mais proativa do que antigamente.
Antes as coisas vinham ter consigo…
Antigamente tocava o telefone era um cliente. Hoje não tenho muitos clientes. E depois só quero coisas grandes, não faço certos trabalhos. Aqui há tempos um tipo importante dizia-me: ‘Você põe-se nessa posição aristocrática’. E eu disse-lhe: ‘Você nunca conheceu Van Gogh, pois não?’. ‘Não’. ‘Se o tivesse conhecido ia-lhe pedir para pintar uma retrete?’. O gajo ficou ofendido. Eu sou modesto – esta entrevista é a entrevista de uma pessoa modesta, ou não?
Mas que está muito consciente do que vale…
Não estou aqui a dizer que sou o maior. Mas tenho pena que não haja dez Taveiras.
Trabalhou para outros arquitetos célebres que lhe diziam o que fazer. Quando começa a desenvolver a sua linguagem?
No quarto ano da escola. Fui convidado para ir trabalhar no ateliê do Conceição Silva e do Maurício de Vasconcelos, que de repente obteve uma encomenda de 70 ou 80 trabalhos. Foi quando se começou a falar do turismo do Algarve. E eles tiveram necessidade de recrutar arquitetos, de preferência jovens. No dia 1 de maio de 1964 o ateliê abriu. Eles tinham uma mesa comprida semelhante a esta, o Conceição Silva sentou-se à cabeceira, o Maurício ao lado, e todos nós nos distribuímos à volta da mesa. O Conceição Silva tinha um molho de dossiês, que eram programas para trabalhos. ‘Você como é que se chama?’. ‘Chamo-me não sei quê’. ‘Vai fazer um aparthotel em Quarteira’. Chegou a minha vez. ‘Como se chama?’. ‘Tomás Taveira’. ‘Vai fazer um hotel na Balaia’. Foi assim que começou a minha profissão a sério como arquiteto. Eles davam-nos liberdade total, embora às vezes houvesse uns diálogos mais crispados, mas nada de especial.
Não havia uma linha do ateliê?
Não. Cada um fazia o que lhe apetecia. O hotel da Balaia foi a minha primeira obra, as moradias da Balaia, que eram inspiradas nas casas algarvias, foram a segunda. Depois acabei uns apartamentos que tinham sido começados por um arquiteto que já faleceu, e que era talvez o mais talentoso da nossa geração, o Manuel Sheppard. O Manuel Sheppard estava ligado à arquitetura inglesa, que estava a fazer a viragem do neo-brutalismo para uma arquitetura mais libertária. Por exemplo, há uma obra do James Stirling – que tive a sorte de conhecer – que tem um auditório saliente do edifício apoiado num tubo de vidro (risos).
Onde o conheceu?
Na Bienal de Veneza.
Conheceu outros arquitetos célebres?
Muitos. Fui para os EUA com uma bolsa do governo de lá e fiz um PhD [doutoramento] no MIT, que durou dois anos. Conheci a nata da arquitetura e do design. Conheci o Frank Gehry, o Peter Eisenman, que ainda está vivo, o Michael Graves, que fez célebre Portland Building, que é, para mim, o nascimento do pós-moderno. O Michael Graves esteve cá em Portugal num seminário que organizei. Vieram pessoas fabulosas. Além do Michael Graves, o Peter Eisenman, o Mário Botta… O impacto desta gente na minha arquitetura foi muito grande e de alguma maneira houve também uma passagem de nosso espírito para eles. Alguns deles nunca tinham ouvido falar no Bernini, por exemplo. E eu puxava as conversas sempre para o meu lado, para o sentido de articular aquilo que se fazia com o barroco. No fundo eu sou um arquiteto barroco, mais do que pós-moderno.
O sentido de escala também se alterou com a sua passagem pelos Estados Unidos? As Amoreiras têm uma escala que não era habitual na arquitetura portuguesa.
Sim, essa escala eu apanhei-a nos EUA. Depois do doutoramento vou dar aulas, e de repente penso: ‘É preciso fazer umas torres para romper com este clima de ruralismo de Lisboa’.
Era um marasmo?
Não, era rural. Agora está a ficar um rural sofisticado. Um IKEA mais bem pintadinho. Vai à Baixa, o Cristiano Ronaldo – conhecem? Fez um hotel.
O CR7 Corner.
Do ponto de vista da cultura é zero. Não faz sentido, ou faz? Faz, porque ele está integrado neste mainstream em que os fundos absorveram a arquitetura. O importante é engraxar as fachadas e lá dentro põem uma cama com mais sofisticação, uma cadeira mais bonita, uns LEDs. Uma saloiice total.
Disse um dia que foi com as Amoreiras que as pessoas ‘descobriram que não eram daltónicas’.
Sim, sim…
Hoje somos um país menos daltónico?
Vocês veem cor em algum lado? Há algum edifício com cor? Eu não vejo. Desde o meu BNU, ou a Malha J de Chelas, que não vejo cor. Enquanto o Siza não usar cor, ninguém usa.
Ou enquanto não apostarem mais nos seus projetos…
Já não há tempo. Esta nova geração [de arquitetos] é uma geração forte, larga – há mais de 40 mil arquitetos. Esta enormíssima massa de criadores vai continuar a fazer arquitetura sem cor.
Mas houve uma altura em que chegou a ter seguidores. Via-se moradias, prédios que eram claramente influenciados pelo seu trabalho.
Mas não eram seguidores cultos. Eram imitadores, que é uma coisa diferente.
Nos últimos anos houve alterações no interior do shopping das Amoreiras, no sentido de tornar o ambiente mais escuro, mais sóbrio. Como viu isso?
Aquilo sempre me fez lembrar um bordel chinês.
Não vê vantagem, portanto…
Vejo vantagens nos bordeis chineses, naquilo não.
Já esteve nalgum?
Num bordel chinês? Nunca estive. Mas vejo nos filmes. É nojento!
Quando olha hoje para as Amoreiras o que sente?
Não olho.
Não pensa: ‘Como é que eu fiz isto?’
Pelo contrário, apetecia-me era deitar aquilo abaixo e fazer ali outra coisa. Hoje fazia uma coisa ainda mais retórica, ainda mais cidade.
Não gosta do que vê?
É um objeto icónico e que do ponto de vista da cidade teoricamente vai ser eterno, mas do ponto de vista da minha arquitetura está ultrapassado. Hoje a grande tendência são edifícios híbridos, que têm shopping, escritórios, habitação, hotel e estacionamento.
Não tem um carinho especial por aquele projeto?
É um sentimento estranho, porque em circunstâncias normais aquilo não seria possível. Quem construiu as Amoreiras foi um grupo que reunia os maiores construtores e investidores daquela altura. Hoje não há força na sociedade portuguesa para construir um objeto daqueles, não investidores, não há energia, não há cultura, não há nada. Estes gajos da banca e dos fundos nem sabem o que é um tijolo.
Sente aquele projeto como um filho especial ou não?
A dimensão que tem – ou que teve, porque de momento já não tem tanto – na sociedade culta portuguesa, na sociedade isenta de preconceitos, é efetivamente uma coisa única. Mas o BNU é igualmente um edifício com um significado espetacular e depois tem as guitarras, que é a minha homenagem ao fado. Não estive com meias medidas. Quando me perguntavam porquê as guitarras, eu explicava: está em frente à Praça de Touros. E o fado e os touros representam o marialvismo português. Quando eu era miúdo quem não fosse pegador de touros era maricas. E na altura ser maricas era chato. Desculpem esta linguagem tão alcantarense… Sei que escandalizou muita gente eu dizer que aquilo era o símbolo do marialvismo português. Mas desde que um indivíduo esteja seguro da cultura em que se vai alicerçar, é possível dizer coisas destas. Portanto tenho um carinho muito grande pelo BNU. Lá dentro tem uns bebedouros para pássaros, onde eles punham aqueles papeletes para a malta preencher as contas. Eu nunca preenchi nenhum, nem sequer sei ir a um ATM tirar um tostão.
A seguir às Amoreiras recebeu muitas encomendas, por ter sido um edifício que se tornou um símbolo da cidade?
Não. Uma vez estávamos num almoço no Estádio do Sporting e alguém comenta: ‘Tu é que tens sorte, fazes sempre projetos grandes’. E o Alves Ribeiro, que conheço desde miúdo, volta-se para as pessoas e diz: ‘Ele ficou famoso com as Amoreiras e nós tivemos os ataques de coração’.
Disse que como arquiteto se define como barroco. E como homem?
Um homem simples.
Um homem que apesar de não ter sido marinheiro, como imaginava em criança, foi ainda assim um mulherengo?
Não.
Não é um mulherengo?
Nunca fui.
E um pouco marialva?
Isso muito menos.
Disse que se acha um grande arquiteto, mas que nunca foi reconhecido. Acha que esse reconhecimento chegará num futuro em que já não estará cá?
Quando disse que era um grande arquiteto é porque considero que ainda tenho capacidade para fazer obras que espantem, pelo menos a sociedade portuguesa. E é nesse sentido que eu digo: ‘Estou vivo’. Não é no sentido de dizer que sou um grande arquiteto, melhor do que os outros. Quanto ao reconhecimento post-mortem, a mim não me diz nada. Sabe, gosto de ver uma série em que há um miúdo índio que diz que fala com o além. Eu gostava que houvesse o além. Ele existe, de facto, agora qual é a forma que ele tem, como é que se manifesta, como é que funciona, isso eu não sei.
Mas gostava de…
De ser espírito. Gostava.
E de um reconhecimento em vida?
Não, não me interessa para nada, eu quero é ter saúde.
Tem ali uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, porquê?
Foi-me oferecida por um arquiteto. Está ali porque sou um devoto de Nossa Senhora de Fátima. E ao lado tenho a águia do Benfica.
E ao lado da águia um dragão do Porto.
Sim, o Pinto da Costa ofereceu-me o dragão. O João Santos, antigo presidente do Benfica, ofereceu-me a águia, quando me veio convidar para fazer o projeto do estádio da Luz.
Não tem nada do Sporting…
O Sporting é gente muito seca. Na inauguração do estádio fizeram-se vários discursos. Falou o Dias da Cunha, então presidente do Sporting, e falou Jorge Sampaio, que era Presidente da República. Nenhum disse o meu nome, ignoraram-me completamente. E eu estava ali na primeira fila. Pensa que isso me incomodou? Nada. Estou a lembrar-me agora.
Qual é a obra de que mais se orgulha?
Não me orgulho de nenhuma. Orgulho-me de ser arquiteto, porque fiz a vontade ao meu amigo Joaquim Pereira e não o deixei ficar mal. Isso sim.
E qual a sua obra mais incompreendida?
Pensando no Jorge Sampaio e no Marcelo Rebelo de Sousa, acho que é as Amoreiras, foi a obra que criou mais inimigos. De tal maneira que os donos da obra nunca mais me encomendaram nada.