Este domingo, pelas 15h15, finalmente um Barcelona-Real Madrid sem Ronaldo e sem Messi. O finalmente não entra aqui em tom de alívio, longe disso, é apenas o sublinhar de uma constatação. O português marchou para Itália e para a Juventus, o argentino partiu um braço na última jornada, frente ao Sevilha, cada um tem o seu motivo para não surgir no relvado de Camp Nou. A verdade é que há muito tempo que não nos víamos perante uma situação com esta, desde de Dezembro de 2007, mais precisamente.
A razão é boa para ir à procura daquele que foi o primeiro clássico de Espanha marcado por duas figuras acima de todas as outras e, nessa busca, acrescente-se, os espanhóis não têm muitas dúvidas quanto ao resultado: dia 25 de Outubro de 1953.
As figuras digo já aqui quais eram: Di Stéfano e Kubala! Assim mesmo, com ponto de exclamação.
Entretanto, falo de um filme: Once Pares de Botas, realizado por Francisco Rovira Beleta em 1954, um ano após esse clássico histórico, portanto. E refiro a película para assinalar um pormenor revelador: Di Stéfano e Kubala eram grandes amigos. O argentino chegara primeiro a Barcelona do que a Madrid, fez mesmo três jogos particulares com a camisola azul-grená, mas depois um tal de general Moscardo, ministro do Desporto, meteu-se ao barulho no conflito entre Real e Barça sobre quem tinha, de facto, direitos sobre o jogador que fora vendido aos catalães pelo Millionarios de Bogotá e aos madrilenos pelo River Plate, subsistindo dúvidas sobre que transacção era válida. Militar de boa cepa, Moscardo foi salomónico: Di Stéfano jogaria primeiro quatro anos pelo Real Madrid e, em seguida, outros quatro pelo Barcelona. Os dirigentes do Barcelona não quiseram sequer ouvir a estapafúrdia proposta e mandaram o general às urtigas. Di Stéfano ficaria onze anos seguidos em Madrid.
Voltemos aos Once Pares de Botas: Di Stéfano e Kubala faziam deles próprios. A trama foi modificada várias vezes, começou num tom dramático e acabou num tom de comédia, descrevia as relações entre Laura, a filha do presidente do Club Deportivo Hispania, e dois jogadores contratados para o clube, Ariza e Mario Valero, sendo que este último se deixa subornar para provocar a derrota da sua equipa e não restava a Laura, descoberta a marosca, mais do que o lesionar para evitar que entrasse em campo. Nada de muito significativo, como se depreende. Mas havia protagonistas de truz filmados a fazerem aquilo que sabiam melhor, jogar futebol: Zarra, Ramallets, Segarra, Gainza, Molowny, além dos já citados Don Alfredo e Don Ladislao. Cenas de partidas verdadeiras misturadas com outras feitas de propósito com os actores escolhidos.
A goleada!
Lazlo Kubala Stecz, ou Ladislao em castelhano, nascido em Budapeste em 1927, chegara ao Barcelona em 1951 mas ainda não tinha jogado contra o Real Madrid. Já Alfredo Stéfano Di Stéfano Laulhé, o avançado escolhido pelo Barcelona para jogar na frente de ataque ao lado de Kubala, estreara-se pelos merengues um mês antes num particular contra os franceses do Nancy.
Estavam, nessa tarde, 100 mil pessoas em Chamartín decididas a não perder pitada do confronto entre os gigantes. Do lado dos da casa, nomes como os de Muñoz, Molowny, Zárraga, Atienza e Roque Olsen, outro argentino que acompanhava Di Séfano. Do lado contrário, Segarra, Bosch, Machón, Basora e Moreno que acompanhava Kubala.
Logo aos 10 minutos, Di Stéfano fez 1-0.
O povo tonitruou nas bancadas.
O Barcelona era o líder do campeonato e fora campeão de Espanha na época anterior. O Real perdera em Sevilha por 1-2 e vinha com o orgulho ferido. Ferdinand Daucick, treinador dos catalães ameaçara na véspera: «Kubala está no topo das suas capacidades. Nunca o vi jogar tão bem. Mais resistente, mais rápido, de uma visão de jogo e de uma técnica impressionantes. Com ele em forma o nosso ataque é temível!».
Não foi.
Toda a gente esperava um desafio equilibrado e o que aconteceu foi um vendaval branco que arrastou o Barcelona para um buraco sem fundo. 2-0 aos 34 minutos, por Roque Olsen; 3-0 aos 35, outra vez por Roque Olsen; 4-0 aos 39, por Molowny.
Por quantos iria ganhar o Real? Era essa a pergunta que se ouvia ao intervalo, de boca em boca, os adeptos madridistas eufóricos com a sua equipa e com aquele Alfredo, Stéfano duas vezes, que enchia o campo com as suas enormidade de Saeta Rubia, a Flecha Loura que nascera em Buenos Aires, no ano de 1926, e passara quatro épocas no futebol colombiano.
Antonio Valencia, o jornalista da Marca que fez a crónica do jogo não desperdiçou muitas linhas com a exibição do Barça: «Me defraudó el Barcelona desde Velasco a Manchón, si se salvan los islotes de Flotats y Kubala».
Os catalães estavam destinados e serem personagens secundários da primeira grande faena de Di Stéfano em Chamartín. Rabos e orelhas!
«Futebol tridimensional», inventou o cronista no ponto mais alto da sua imaginação. Bela expressão.
No minuto 89, Di Stéfano concluiu a sua cena com uma estocada final: 5-0!
Braços erguidos em triunfo.
Por momentos, ninguém tinha dúvidas: batera Kubala em toda a linha. A história estava à beira de mudar.
Podem nem sequer acreditar, mas os factos não se desmentem: até à chegada de Di Stéfano, o Real Madrid tinha sido campeão por duas vezes, em 1931-32 e 1932-33. Antes da Guerra Civil. Esse ano de 1953 seria o do seu terceiro título. Com Alfredo Di Stéfano ganhou oito.
Mais tarde, já a euforia da goleada se desvanecera, perguntaram ao argentino. «Kubala?».
E ele: «Estuvo estupendo!».
A amizade tem destas coisas.