Agente já estava a habituar-se à pilhéria: finalmente Os Belenenses cumpriram o seu destino plural – são dois, o do clube e o da SAD. Mas o Belenenses do clube não está mais para aturar o da SAD e, vai daí, avançou com um processo no Tribunal da Propriedade Intelectual reclamando o uso exclusivo dos símbolos, nome, emblema, bandeira, hino e por aí fora, e recebeu uma resposta positiva. Claro que isto ainda vai dar uma carga de trabalhos até porque, imaginemos, se a SAD deixa de ser Belenenses que equipa é que anda por aí nos campos da I Divisão a fingir que é Belenenses? E, se não é Belenenses, com que direito ocupa o lugar que ocupa? Bem sei que um jornal não serve para fazer perguntas, como dizia o grande Carlos Pinhão, serve é para esclarecer e dar respostas, mas neste momento acho que são respostas bem difíceis de explicar por A mais B visto que a SAD finca o pé no não abandono da sua parte belenense.
Veio toda esta Babilónia pôr o velho Belém nas primeiras páginas dos jornais, somando-se a vitória inesperada sobre o Benfica (2-0), e merecer que se recorde um momento único na sua história brilhante, o do título de campeão nacional de 1946, fantástica aventura que durou até ao último pontapé de um inesquecível encontro em Elvas, lá na raia de Espanha, Badajoz à vista, contrabandista de amor e saudade, com licença do Paco Bandeira.
Reparem que era essa, aliás, a manchete de um dos grandes matutinos nacionais: «Belenenses conquistou o título quase no último pontapé».
Faltavam, de facto, treze minutos para o fim do jogo e do campeonato de 1945-46. Era o dia 26 de Maio e já se preparava a pompa e circunstância das comemorações de 28, tão queridas do regime. Ah! E o último pontapé foi de Feliciano, no minuto 89, num livre direto: a bola saiu assobiando no poste.
Antes do apito inicial, ninguém adivinha complicações para os azuis de Lisboa. O Elvas, ainda Sport Lisboa e Elvas – no ano seguinte fundiu-se com o Sporting Clube de Elvas e ficou a ser O Elvas Clube Alentejano de Desportos – tinha ao seu serviço um dos nomes mais formidandos da história do futebol em Portugal: Domingos Carrilho Demétrio, por extenso Patalino. Diz-se que ganhou tal alcunha por ter um pai mestre no jogo da pata, coisa muito alentejana, mas para o caso pouco importa. Era um avançado temível, de pontapé trovejante, chegou a ser sondado pelo Real Madrid, mas quem é que o tirava do Alentejo? Foi ficando, ficando e ficou.
Valadas, o antigo goleador do Benfica, foi enviado para Elvas pelos encarnados para ajudar nos aspetos técnicos. Era fundamental para o Benfica que o Belenenses não ganhasse. Ainda sonhava com o campeonato.
Nessa tarde, aos 3 minutos, Patalino já tinha feito o golinho da praxe. Os jogadores do Belenenses tremeram como varas verdes. O seu ‘association’ tão do agrado dos espetadores emperrou com os nervos.
Não foi surpresa que saísse para o intervalo em desvantagem.
Ah! Mas os azuis tinham jogadores do quilé: Capela, o guarda-redes de Angeja; Vasco de Oliveira, defesa na direita, e António Feliciano, defesa na esquerda, duro como os penedos da sua Covilhã – as Torres de Belém. Mariano Amaro: inimitável! Foi ele, que nas cabinas, soltou o grito: «Temos de ganhar! Temos de ganhar!»
O destino foi cruel com o centro campista requintado que vivia na Rua dos Sapateiros e tinha tertúlia marcada no café Nicola, à Baixa lisboeta, atacando-lhe gravemente os pulmões. E o artístico Artur Quaresma que podia jogar em todos os postos do ataque. E Andrade, o menino dos caracóis. E José Pedro, o interior-esquerdo e Rafael, seu companheiro do mesmo lado. E Serafim das Neves, pois claro, outro canhoto, leiriense de antes quebrar que torcer. Havia ainda Gomes, Sério, o guarda-redes suplente, Armando, extremo-direito, e Mário Coelho, também extremo-direito, funcionário da Carris.
Desespero e alívio
Aos 22 minutos do segundo tempo, Vasco teve um arremedo de revolta. Foi pelo campo fora com a bola colada aos pés. Ameixa e Alcobia partiram no seu encalço. Debalde. Só o travaram com recurso á brutalidade. Justificavam que, momentos antes, Vasco tivera, igualmente, uma entrada duríssima sobre Massano. Mariano Amaro, como sempre, impôs-se. Acalmou os adversários e censurou o seu colega: «Não é com quezílias que vamos ganhar», terá dito.
Andrade, Manuel Andrade, nascido no Funchal em 1927. Passou pelos pupilos do exército, chegou a fazer parte do Sporting dos Cinco Violinos. Foi ele o autor do golo do empate. Faltavam, então, vinte e três minutos.
Andrade beneficiara da lesão dos dois habituais titulares, Mário Coelho e Eloy (às vezes também Elói) e foi resolvendo o problema apesar da sua idade tenrinha.
Era a hora! O Belenenses lançou-se sobre o seu opositor com o peito mais enfunado do que vela de galeão, daquelas que traziam ao meio a cruz de Cristo e sulcavam os mares da eterna esperança.
Tinha-se entrado no lendário último quarto-de-hora à Belenses. Consta que alguém na bancada fazia silvar um apito, mas não há quem o confirme. 77 minutos: outra vez Vasco rompendo pelas linhas inimigas. Entrega a bola a Quaresma que remata. Confusão na área de Semedo. Rafael tem um toque precioso. Tão precioso quanto preciso: 2-1. Já nada faria com que o Belenenses perdesse esse título tão ansiado. O povo, nas bancadas, raiava o histerismo. Gritava até à rouquidão: «Belém! Belém! Belém!» Augusto Silva, o treinador, bufava de ansiedade: por que demorava meia hora cada minuto para o final?
Rafael, Rafael Correia. A sua morte ainda hoje é um mistério. Foi encontrado cadáver na Trafaria, em circunstâncias nebulosas, por um guarda nacional republicano à paisana. Tinha simpatias comunistas. Sussurrou-se por toda a parte o envolvimento da polícia política. Não era extremo-esquerdo à toa, Rafael.
Manuel Andrade diria, muitos anos depois, ao jornalista David Marques: «Só para ter uma ideia, o primeiro jogador nosso a tocar na bola foi o Capela, que a foi buscar dentro da baliza. Um quarto de hora depois, estou a cerca de um metro e tal da baliza. O Rafael cruzou uma bola em direção a mim, mas deixei de a ver por causa do sol. Fiz um calculo: deve estar a chegar e meto-lhe o pé. A bola foi pelo mesmo caminho. Foi um caso sério. Toda a gente sabia que éramos obrigados a ganhar. Caso contrário, o Benfica era campeão. Ganhámos. No fim do jogo, toda a gente chorava na cabine. Eu era o único que não sentia nada. Era um puto com 18 anos. Se ganhasse, ganhava. Se perdesse, perdia. Viemos para Lisboa em carros particulares, mas não me lembro de nada da viagem».
Milhares de adeptos do Belenenses tinham ido de longada até aos confins do Alentejo. Valeu tudo: automóveis, camionetas, comboios. As pessoas juntavam-se na berma das estradas à passagem dos campeões. À medida que estes se iam aproximando de Lisboa, a festa recrudescia. Em Cacilhas, o largo em frente ao apeadeiro dos barcos estava entupido de gente. Do outro lado, no Cais do Sodré, o caos era idêntico. Um cordão humano foi ladeando a Avenida 24 de Julho para ir desaguar a Belém.
Manuel Andrade outra vez: «Chegámos à uma e tal da manhã. Demos três voltas à estátua do Afonso de Albuquerque, nos jardins de Belém. Era uma tradição de vitória. Ainda foi pior. Toda a gente chorava. Eu dizia ao José Pedro: As pessoas estão a chorar porquê? Deviam era estar a rir. Festa não era para chorar».
Fora nos jardins de Belém que o clube fora fundado, no dia 23 de Setembro de 1919. Está lá um banco de pedra a recordá-lo, um daqueles bancos de pedra onde se sentam os velhos do jardim do meu querido Rui Veloso. E todos nós sabemos: «Não há nada no universo/Que aconteça sem o não e sem o sim/Dos velhos do jardim».