De cada vez que é editado um novo livro de Rui Nunes, das duas uma: ou o leitor desconhece o autor, flanando pelas superfícies comerciais onde o livro esplende no seu valor de exposição, ou então, sabendo ao que vai, sabe igualmente que esta leitura não seguirá sem alguma porrada, alguns choques e espinhos. E isto, para já, se nos detivermos na visualidade gráfica do texto: negritos, itálicos, bocados de prosa, fragmentos em verso, pontuação desorbitada, como que pondo em relevo o branco e o vazio das páginas, não menos importantes do que a suposta legibilidade do texto.
E se é de um livro de Rui Nunes que se trata – neste caso, Suíte e Fúria, editado pela Relógio D’Água no final de outubro –, o leitor antevê uma escrita desconfiada de tudo o que a faz emergir em primeiro lugar. Essa suspeita comunga, por exemplo, do olhar pessimista de um filósofo contemporâneo como John Gray. Em Straw Dogs (2002), escreveu que, em nome do legado de Platão ao pensamento ocidental – uma trindade abstrata de respeitáveis maiúsculas: o Bom, o Belo e o Verdadeiro –, a civilização fez correr rios de sangue, elegeu tiranos, fez Auschwitz acontecer e justificou racionalmente ódios, crimes e mortos. “A Europa”, conclui Gray, “deve boa parte da sua história assassina aos erros do pensamento engendrados pelo alfabeto”.
Não por acaso, Suíte e Fúria começa assim: “letra a letra, o som de uma arcaica máquina de morte”. E essa máquina é implacável, até com as imagens que, na literatura, um leitor é adestrado a interpretar como dóceis ou felizes. O exemplo da infância: “A exasperação atravessa a memória e não torna amena a infância, esse lugar de uma arcádia fugaz: o pão que se comia era mau, a água sabia a barro, a manteiga tinha ranço: a infância idílica é o refúgio de alguns, poucos, que sabem como evitar as portas mais desabrigadas. / (por vezes estou cansado de abrir um livro e de encontrar o paraíso). / Nada acalma esta fome ininterrupta que só mudou o pão: / o pão que se não comeu” (p. 47).
A infância, aqui, não se deixa dourar pelos pós da nostalgia. Ela é (pode ser) uma “ameaça”, esconde uma violência secreta. Desconfia-se da nostalgia dos regressos, que herdamos da Odisseiade Homero, e, por isso, ao longo de Suíte e Fúria, com a evocação musical inscrita no título (presente já no livro anterior, Baixo Contínuo, de 2017), é como se ficasse no ar o desejo perverso de ver Ulisses a ceder ao cântico fatal das sereias, a perdição pela liberdade, recusando o ciclo fechado, harmonioso, de uma suposta unidade que o regresso a Ítaca representaria: “Não uma âncora, mas um lugar à deriva. Uma Ítaca sem coordenadas, aproximação subtil e sempre repetível da morte: escapar à chegada de Ulisses, ao pé que pisa a areia, esse enorme prego a que se virá a chamar reconhecimento” (p. 51). Contra a imagem apaziguadora desse reconhecimento, o autor sugere “a incerteza” como “a melhor viagem”: a incerteza de ser Ítaca o verdadeiro nome que damos à nossa casa.
Mas o risco deste Ulisses que renega Ítaca – ou do sujeito que se recusa a olhar para trás, para o idílio da infância – vai aquém dos núcleos temáticos do livro. É também um programa literário que vigorosamente aí se enjeita (e mais vigoroso pela forma silenciosa como se insinua): “cansado de abrir um livro e de encontrar o paraíso”. O idílio literário é o texto liso, sem atrito, que não acrescenta uma vírgula a tudo o que se edita aos molhos, nem acrescenta nada à vida. O idílio não cria, portanto, vida. É mais do mesmo.
Quando, no final de agosto, António Guerreiro reivindicava no suplemento ípsilona “morte às ficções”, denunciando justamente que a apologia da ficção, ao invés de interromper a tagarelice ruidosa dos dias com um suposto “silêncio” que “tornar[ia]audível um rumor literário”, mais não é, afinal, do que o miasma da sua continuidade, disseminada por todos os media, ininterruptamente, o crítico urgia em defesa de “contra-ficções”, isto é, algo que, sendo ainda linguagem (e linguagem poética e literária), agisse no interior desta para curto-circuitar os regimes da comunicação e de socialização da cultura onde as ditas ficções se alojam, homogeneamente, para contentamento geral. (E, aproveitando esta denúncia, entreabrimos o conto “Escritor Fracassado”, que serve de título à edição do escritor argentino Robert Arlt, pela Snob, com tradução de Miguel Filipe Mochila, e que figura aqui como um reflexo especular: “Momentos houve em que desejei que todos os escritores da terra tivessem uma só cabeça. Que magnífico seria aniquilar então essa única cabeça à martelada, abrir uma fossa num qualquer deserto, sepultar fundo essa massa humana e exclamar muito alto: / – A literatura não existe. Matei-a para sempre!”, pp. 67-8.)
Rui Nunes tem a atroz clarividência de que “falamos continuamente” para “esconder” aquilo que nos incomoda: “temos vergonha da nossa vida pobre” (p. 73). E que só um “ruído próximo da imperfeição”, como o terrível guincho dos gonzos de um portão ao ser fechado, arrepanhando-nos o corpo, se justifica verdadeiramente: porque um ruído desses “leva algumas pessoas a tapar os ouvidos: que vem a ser isto? / Os rapidíssimos subterfúgios da morte, para continuar” (p. 49).
O estilo do autor (des)faz-se na deflagração de imagens que tiram o fôlego a qualquer um, como aquele degrau que se conta calcar ao fim de um vão de escada e que, de um dia para o outro, deixa de existir, e todo o corpo cai de pé: “ver é o apocalipse dos nomes” (p. 33); “os suicidas precipitam-se para os museus” (p. 51); “um espaço completo é o massacre de qualquer memória”. Não são aforismos que facilmente se ajustem ao mobiliário das fotos de capa no facebook, com soturnos pores-do-sol ou pegadas na areia. Ora desfocam a imagem, ora o zoomsai excessivo, ora é a língua de fora quando a seriedade é uma cínica impostura. “A imperfeição revela a intimidade de um texto. A aspereza da sua luz” – a aspereza imanente a “um segundo de desatenção [que torna] súbito o que não quisemos ver” (p. 62). Como a morte, o mal, a malignidade que rumoreja nos nossos microfascismos de circunstância: “A palavra atribui-nos a medalha de mérito por bom comportamento: pobre bicho, coitado daquele homem que tanto deve ter sofrido, é muito triste não ter um tecto. Estamos fodidos. Estou farto da “literatura”. Vou partir a merda destas palavras todas. Vou partir a palavra merda. M-e-r-d-a: e lá se foi a merda. La mer du Roi. La mère du Roi, Carnuntum, Spiegelei, Mesdames et Messieurs, blood on your hands, Blut und Boden, o que é isto? O que é isto? De vez em quando, apetece-me escrever o que me vem à cabeça, têm alguma coisa contra?” (p. 61).
Pois, então, o que é isto? Uma escrita que é radicalmente uma ex-crita, que fere, que incomoda até com o silêncio e a imobilidade da luz. Não o faz com os excursos convencionalmente descritivos das boas e belas histórias, visto que “[d]escrever é petrificar” (p. 74). Pelo contrário, o trabalho está no ritmo sintático, nas farpas que se aguçam na leitura quando uma frase, à medida, que a lemos, de súbito se quebra, se interrompe, ficando a meio, macerada, sem indicação do rumo a seguir – e isto para “torna[r] pungentes as pequenas valências do corpo: a tosse, as dores, a febre” (p. 74). É um modo de escrever rente ao corpo, que torna a leitura suficientemente inquietante para que, no meio de tanto olhar a morte de frente (uma das obsessões do autor), o leitor se sinta radicalmente vivo.
Por outro lado, a quem se dirige um escritor assim? Diante as esculturas de Giacometti – essas magras e frágeis figuras, de superfícies moídas, como corpos ressuscitados que caminham na nossa direção –, Jean Genet dissera que a verdadeira obra de arte não pode tornar-se refém da histeria da inovação, nem é para “ser entendida pelas gerações futuras”. Pelo contrário: “toda a obra de arte que pretenda atingir os mais altos desígnios deve […] recuar milénios e juntar-se, se possível, à imemorial noite povoada pelos mortos que irão reconhecer-se nessa obra” (in O Estúdio de AlbertoGiacometti, trad. Paulo da Costa Domingos, 1988, pp. 19-21). Nesse sentido, a escrita de Rui Nunes irrompe sob o signo dessa noite, da força da desagregação: “Comecei a escrever e já não sei porquê, nem quando, estou onde não sei para onde, não se escreve para o futuro, mas para um passado sempre incompleto: quanto mais se escreve mais incompleto fica: eis a única coisa que aprendi” (p. 56).
Chegando ao fim, imagine-se uma aula, com aquelas perguntas habituais endereçadas aos alunos: como é que caracterizariam este sujeito poético? Ou: o que é ele exprime, aqui?Fica o desafio: nada a caracterizar, nada a exprimir. Enfrente-se a agonia de existir em pleno estado de perplexidade, com a cara encostada ao gume da faca. Perceber o que realmente tem escasseado nas aulas de Português: a pura intransitividade do texto literário, a experiência profunda do estranhamento. Ler, às vezes, também é isso. Às vezes, é mesmo isso que basta: ler. Partilhar a voz com a dos outros, reconhecer o outro no mesmo gesto de aproximação em que esse outro se estranha e se distancia. E o outro do outro sou eu, somos nós: a pequena comunidade, ali, no meio do desaire que muitos dizem ser a sala de aula. Recusando o sentido pleno disto ou daquilo, “quando percebemos a linha subtil que separa aquilo que podemos daquilo que não podemos conhecer” (p. 87), faz-se até mais pela vida quando se acolhe a plenitude inexpugnável dos seus restos: “Apontamentos, notas, erros, repetições, eis o único modo de escapar” (p. 90). O leitor que recusa tornar-se um “criador de cadáveres” aceita o desassossego dos textos, não se esquiva ao inesperado dos versos por temer ser abalado por eles. Ler devém uma questão de atitude, radicalmente transgressiva: “O que é contemporâneo num livro? / Quem, ao lê-lo, o invade” (p. 93). Em tempos de indigência, como aferira Hölderlin, os poetas, que não servem para nada, servem o nada. É o serviço mais difícil: o da contra-ficção, que não se deixa engatar na lógica do serviço produtivo e da comunicação lisa. O improdutivo, o inacabado, o desintegrado. Difícil, também, de pôr isto no sumário e de dizer que sai p’rò teste.