Uma carta, de Manuel Alegre, um artigo, de Rita Matias, e uma declaração, de José Silvano, ilustraram esta semana o estado da sociedade atual e dos valores, ou da falta deles, do «totalitarismo do politicamente correto» e do conceito de ética reinante.
A expressão citada é do poeta e aplica-se no caso às touradas e à caça, mas vale para muitas outras manifestações culturais ou civilizacionais destes tempos.
Manuel Alegre é um resistente, um livre pensador. Não é nem nunca foi ‘Manel vai com as outras’, nem se sujeitou à ditadura do politicamente correto.
Haja, na ‘geringonça’, quem!
Em relação à caça como à tourada, Manuel Alegre tem toda a razão: somos livres de não gostar, de criticar, de não frequentar ou praticar; como devemos ser livres de gostar, de apreciar, de praticar.
Mas Manuel Alegre, muito mais do que isso, tem toda a razão na condenação do «fundamentalismo do politicamente correto».
Alegre, na carta aberta a António Costa, diz sentir a sua «liberdade pessoal ameaçada»: «Não por causa do que se passa no Mundo. Mas porque o diabo esconde-se nos detalhes. Está no fundamentalismo do politicamente correto, na tentação de interferir nos gostos e comportamentos das pessoas, no protagonismo de alguns deputados e governantes que ninguém mandatou para reordenarem ou desordenarem a nossa civilização».
Mas escreve mais: «O deputado do PAN foi legitimamente eleito, com pouco votos, mas foi» e «tem o direito de defender as suas opiniões», mas «não pode virar o país do avesso, com a cumplicidade dos fundamentalistas de outros partidos (com a honrosa exceção do PCP) e o calculismo dos que pensam que, em certas circunstâncias, o voto dele pode ser útil para a maioria».
Conclui Alegre que um só deputado não pode inquietar milhares de portugueses.
E não devia.
Mas esse é um dos problemas desta solução governativa, que Manuel Alegre aplaude e segue quando lhe convém.
Porque o busílis é que pode. E pode um deputado, como pode uma minoria ou um conjunto de minorias que se juntam e concertam. A isso se chama ‘geringonça’.
Aliás, Alegre esteve muitas vezes ao lado desse ‘pensamento politicamente correto’ em que as minorias se impõem à maioria de forma não democrática e refazendo a norma, violando claramente a vontade e a liberdade de muitos milhões de portugueses.
É o que é.
Leia-se o artigo de Rita Matias no Eco, sobre a Ordem dos Advogados e o seu colega e antigo sócio Ricardo Sá Fernandes.
Diz Rita Matias que o seu colega violou elementares e básicos deveres deontológicos ao proceder à gravação não autorizada de conversas mantidas com constituinte seu (dela), sem prévia autorização deste e com o propósito único de o incriminar.
A advogada apresentou queixa na Ordem em 2006 e, agora, 12 anos (doze) volvidos, veio finalmente o Conselho Deontológico da OA dizer que não aprecia nem se pronuncia sobre o caso porquanto está tudo prescrito.
Ricardo Sá Fernandes é um dos mais mediáticos advogados portugueses. Com reputados conhecimentos da lei e do direito e inegáveis dotes de oratória.
Mas é também um daqueles crónicos defensores do politicamente correto.
Tanto que, como escreve Rita Matias, em dezembro de 2012, Ricardo Sá Fernandes, «numa daquelas tiradas bombásticas que o caracterizam», respondeu na Advocatus: «Aqui fica consignado que já comuniquei à Ordem dos Advogados, ao abrigo do art. 112.º, n.º 5 do nosso Estatuto, que, acaso alguma vez o procedimento venha a prescrever, eu recuso a sua extinção por tal motivo, exigindo a sua continuação até ao seu termo, como é meu direito. É que, para mim, a dignidade não prescreve. Tal como a indignidade».
Daí que Rita Matias termine assim o seu artigo desta semana: «Ao que parece, tal comunicação não foi feita e há que concluir que a dignidade de Ricardo Sá Fernandes, afinal, prescreveu».
Tratando-se de um advogado ainda por cima de reconhecido mérito que se terá sujeitado a fazer de agente encoberto ou provocador para incriminar um constituinte de uma colega e sócia, a Ordem jamais devia ter deixado prescrever tal caso. Ou então, ter-se-á de questionar por que razão a Ordem dos Advogados dá àquele seu órgão o pomposo nome de ‘Conselho Deontológico’.
E passamos à declaração da semana, de José Silvano, o parlamentar que é secretário-geral do PSD e cuja assinatura/password de presença consta em reuniões plenárias do Parlamento onde não pôs os pés.
Veio Silvano dizer na quinta-feira que, se por algum motivo não fosse verdade o que disseram os jornais e o Ministério Público ainda não estivesse a investigar o seu caso, ele próprio exigiria essa investigação. Até porque, disse, não fez nada de ilegal nem eticamente reprovável… que isto não passa de mais um ataque ao líder do partido… e por aí fora. No dia seguinte, ontem, a deputada Emília Cerqueira assumiu ter sido ela a introduzir a password de José Silvano, para trabalhar num ficheiro que ainda não tinha sido partilhado. Enfim, foi só incúria e inexperiência.
Instado a voltar a pronunciar-se, Rui Rio respondeu em alemão. Já o seu vice-presidente Salvador Malheiro entendeu que o importante era saber se se trata de um caso isolado ou se tal prática é useira também noutros grupos parlamentares.
Ora aí está. Estes senhores que passam a vida a clamar pelo ‘banho de ética’, pela honestidade, pelo rigor, pelo politicamente correto, pela transparência, depois fazem destas e acham que tudo não passa de ‘questiúnculas’ sem relevância.
Pois sim, mas é a esta gente que devemos entregar a condução dos destinos do país? A quem devemos delegar a decisão sobre o que é ou não é legal e o que é ou não é ético? A quem devemos dar o poder de ditar qual é a norma e o que é cultural e civilizacionalmente aceitável?
Mas essa gente acha-se com esse poder. E acha que Alegre e todos os que desalinham desse pensamento que se diz politicamente correto já estão fora da história, são avessos à mudança, retrógrados civilizacionais, ‘velhos do Restelo’.
Qual ética e qual deontologia?
Kartoffeln para isto tudo!
Deixem lá as touradas, que o poeta tem razão, e aproveitem e deixem também de nos tourear a todos, que o povo não é cego e só não vê o que não quer ver… até ver.