Os resultados eleitorais e os receios de um eventual entendimento entre Sá Carneiro e Mário Soares em torno de um pacto de regime que pudesse colocar em causa o «pacto constitucional» celebrado entre o PS e o Presidente levaram a candidatura de Eanes a ensaiar um afastamento da FRS. Eanes não queria ficar associado ao grande derrotado das eleições legislativas e não gostou que após o desaire da FRS Mário Soares não tivesse procurado encontrar-se consigo nem esclarecê-lo «acerca da possível conciliação do ‘acordo de regime’ que propusera à AD com o ‘pacto constitucional’» que tinha sido celebrado com Ramalho Eanes. Foi também com preocupação que Eanes interpretou as declarações proferidas por Soares. Pouco depois da vitória da AD, o líder socialista afirmou que o Presidente não era candidato do PS nem da FRS, que os socialistas e Eanes partilhavam «alguns objectivos convergentes», apesar daqueles considerarem que Eanes tinha «cometido erros que a história julgará e que abriram as portas do regresso da direita».
É neste contexto que se inserem as confidências de um elemento da estrutura de apoio à recandidatura que defendeu que a FRS se tinha colado excessivamente a Eanes no decurso da campanha e que reconheceu que a derrota produzira um inevitável desgaste, embora não colocasse em causa «a enorme popularidade do Presidente da República». Segundo este membro da candidatura, um dos elementos centrais da estratégia da campanha passava por apresentar Eanes como o «último reduto da defesa do regime democrático», tese que se desenvolveria a partir da ideia de que a AD ameaçava «toda a estrutura democrática» que seria inevitavelmente destruída se Soares Carneiro fosse eleito. Em todo o caso, antecipava-se uma «cautelosa demarcação da FRS», destinada a acentuar o carácter suprapartidário da candidatura de Ramalho Eanes e a destruir a ideia, alimentada pela FRS durante a campanha, segundo a qual a vitória da Frente nas legislativas era indispensável para que se assistisse à vitória de Eanes nas presidenciais.
Foi com estas preocupações em mente que, na qualidade de Presidente da República, Ramalho Eanes fez, no dia 14 de Outubro, fez uma comunicação seguida de uma conferência de imprensa que iria agitar as já conturbadas águas da vida política portuguesa.
(…) Eanes e Soares almoçaram a sós no dia 16. O líder socialista fez um ultimato: Eanes deveria retractar-se e esclarecer o seu posicionamento perante a AD, caso contrário os socialistas teriam de retirar-lhe o apoio e procurar uma alternativa. Ficou então combinado que Eanes daria uma entrevista onde esclareceria as suas anteriores palavras em relação à Aliança Democrática.
Nessa mesma noite, realizou-se uma reunião da Comissão Directiva do PS. Soares fez o relato da conversa que mantivera durante o almoço com Eanes e que este iria, através de uma entrevista a conceder ao semanário O Jornal, aclarar as suas anteriores afirmações. Durante o encontro vários dirigentes que tinham sido os principais defensores do apoio a Eanes, como Vítor Constâncio e António Guterres, não esconderam a sua perplexidade com o sucedido. Manuel Alegre, Catanho de Menezes e Tito de Morais advogaram uma candidatura civil, mas Salgado Zenha, embora tivesse considerado que Eanes tinha cometido um erro político, defendeu que era necessário manter o diálogo. Enquanto decorria o encontro, chegou ao Largo do Rato a prova tipográfica da entrevista que estaria nas bancas no dia seguinte.
Na primeira página, com grande destaque, surgia como título principal: «Eanes a O Jornal Identifico-me com a social-democracia e o socialismo democrático». Na segunda página surgia o esclarecimento: «quando falei em identificação entre o modelo de sociedade da AD e o meu, a minha afirmação não podia deixar de cobrir senão aquilo que é matriz fundamental de todos os regimes democráticos pluralistas: a democracia política». Ramalho Eanes esclareceu também a referência que fizera ao «Bloco Central», afirmando que este se traduzia por um «entendimento entre a social-democracia e o socialismo democrático».
Tudo parecia indicar que se estava no bom caminho para uma reaproximação entre Eanes e o PS e que os socialistas aceitavam as explicações do candidato. No entanto, a mesma edição deste semanário trazia também um artigo de Mário Soares, intitulado Política e coragem. Nele, o secretário-geral socialista defendia a necessidade de se «ter a coragem de tudo pôr em causa – homens, teorias e preconceitos. Para construir de novo, com solidez e audácia».
No dia seguinte, 18 de Outubro, realizou-se uma reunião da Comissão Nacional do PS. O secretário-geral manifestou-se contra o apoio à recandidatura de Eanes. Em sua opinião, os esclarecimentos não eram suficientes, o PS não deveria continuar amarrado a uma candidatura que iria destruir o partido e, recorrendo às ideias expressas no artigo que publicara no dia anterior, defendeu que era necessária coragem moral e política. Feita a intervenção, anunciou que, como cidadão, tinha decidido retirar o seu apoio a Eanes, que colocava o seu lugar à disposição da Comissão Nacional e que escrevera uma carta ao Presidente dando conta da sua decisão. Este anúncio foi recebido com espanto por todos os presentes. Como tinha anunciado previamente, depois de ter feito esta declaração bombástica, o secretário-geral deixou a reunião. Esperava que os socialistas se sentissem órfãos e se verificasse uma vaga de fundo que primeiro o ungisse como candidato presidencial e que, depois, o levasse em ombros até ao Palácio de Belém.
No entanto, a atitude do líder socialista não foi bem recebida pela maioria dos presentes. A proposta de se fazer um apelo para que Soares regressasse à reunião foi rejeitada. Perante o impasse, foi decidido enviar-se uma delegação para analisar o problema com o secretário-geral. Intransigente, Soares reafirmou a sua posição: se o PS mantivesse o apoio ao general iria suspender as suas funções até ao final da campanha eleitoral. Se, pelo contrário, a Comissão Nacional optasse por retirar o apoio a Eanes, elencou vários possíveis candidatos a apoiar pelos socialistas, entre os quais incluiu o seu próprio nome. Neste último caso, Soares revelou que só estaria disponível caso se verificasse uma deliberação da Comissão Nacional aprovada pela esmagadora maioria dos seus membros. Apesar de se terem levantado algumas vozes a favor da retirada do apoio à candidatura de Eanes, a encenação não criou qualquer vaga de fundo. Dos 129 elementos da Comissão Nacional presentes na reunião que se arrastou até ao dia seguinte, apenas 43 votaram a favor do fim do apoio do PS à candidatura do general, 78 consideraram que Eanes deveria continuar a ser apoiado e 8 abstiveram-se. No final da reunião, foi emitido um comunicado onde se reafirmava o apoio do PS à recandidatura do general Ramalho Eanes, que era descrito como aquele que «melhor permite derrotar o candidato da AD e garantir, assim, o respeito pelas regras democráticas e constitucionais» em face dos «graves riscos» que ameaçavam o regime democrático. Na mesma nota, informava-se que «em virtude da decisão da Comissão Nacional de manter o seu apoio à recandidatura do general Ramalho Eanes» o secretário-geral tinha decidido «suspender a sua actividade partidária até às eleições presidenciais».
A suspensão da actividade partidária e a confirmação do apoio do PS à candidatura de Eanes não significavam que Mário Soares tivesse baixado os braços e desistido dos seus intentos.
No dia 20 de Outubro, algumas centenas de manifestantes, segundo a descrição feita pelo Diário de Lisboa, deslocaram-se ao Largo do Rato onde gritaram «Soares a Belém». No dia seguinte, Manuel Alegre declarou que existia «uma vaga de fundo não só no PS como noutros sectores democráticos de apoio à posição de Mário Soares» e fez um apelo para que Ramalho Eanes «reconsidere a sua posição e desista da sua candidatura». Se o fizer, defendeu Alegre, «prestará um serviço à democracia, contribuirá para a unidade do PS e facilitará a apresentação de uma candidatura capaz de mobilizar todo o eleitorado que se identifica com o regime democrático». Iniciava-se assim uma maratona que pretendia levar por diante uma candidatura alternativa à de Eanes, apesar dos sinais pouco animadores, que revelavam que uma vez conhecida a posição oficial do PS, todas as forças políticas que constituíam a FRS mantinham o seu apoio em Eanes.
A 22 de Outubro, Soares recebeu na sua residência uma autodesignada «Comissão Coordenadora de Apoio ao secretário-geral do PS» e foram anunciadas várias sessões de esclarecimento para as bases socialistas da área urbana de Lisboa, que contariam com a presença de militantes pró-Eanes e pró-Soares. Dois dias depois, o dirigente do Partido Socialista Revolucionário (PSR), Francisco Louçã, escreveu um artigo para O Jornal onde defendia a candidatura presidencial de Mário Soares e, passando das palavras aos actos, o PSR promoveu a realização de um comício no Teatro Vasco Santana, em Lisboa, de apoio à candidatura de Soares, descrito como «um candidato dos trabalhadores para vencer os generais de direita».
Apesar da derrota sofrida na reunião da Comissão Nacional dos dias 18 e 19 de Outubro, Soares e os seus apoiantes continuaram a medir forças nas bases do partido, tendo algumas secções e federações manifestado apoio ao secretário-geral. A antevisão de uma luta fratricida levou o histórico Henrique de Barros a manifestar-se contra a posição assumida pelo líder socialista que pareceu dar um passo atrás com a publicação de uma «carta aos socialistas» onde esclarecia que a retirada de apoio a Eanes não fora tomada na qualidade de secretário-geral, mas que tinha sido uma atitude pessoal, fruto «de um longo e áspero debate» interior e, agradecendo os apoios que tinha recebido dos militantes do PS, apelou à desconvocação de uma manifestação agendada para o dia 25, dia em que estava prevista a realização de uma nova reunião da Comissão Nacional.
A pressão exercida por Soares, estimulando as bases do partido, tinha dois objectivos. Por um lado, pretendia provocar alterações nas decisões já tomadas pelos órgãos superiores do partido e, por outro, pressionar Eanes, fazendo-o reconsiderar a sua própria candidatura. No entanto, nenhum destes objectivos foi alcançado e Soares foi obrigado a mudar de estratégia. Em causa estava a unidade do partido e, em última análise, a sua própria liderança.