Quase venerado no Ocidente, Mikhail Gorbachov (n. 1931) é hoje um homem isolado e odiado na Rússia. Vive rodeado de guarda-costas para não sofrer um atentado e quando se candidatou à Presidência da República em 1996 obteve uns meros 0,5% dos votos.
O povo russo culpa-o pela queda do império soviético em 1991, na sequência das suas políticas de maior abertura ao Ocidente e de alívio do controlo sobre os países-satélite da URSS. Mas Gorbachov, que esteve no poder durante apenas seis anos (foi eleito secretário-geral do Partido Comunista Soviético a 11 de março de 1985 e deposto do cargo de Presidente, a que ascendera em março de 1990, no dia de Natal de 1991), também conseguiu que a Guerra Fria não evoluísse para um conflito nuclear com consequências potencialmente catastróficas. Aliás, estabelecera como meta acabar com a corrida às armas nucleares, o que conseguiu em diálogo com o seu homólogo americano, Ronald Reagan. Isso não só evitou uma guerra de aniquilação que muitos viam como provável como permitiu também à União Soviética diminuir o orçamento da Defesa, libertando assim recursos para distribuir rendimentos às pessoas e desenvolver a economia do país.
O resultado, no entanto, não foi o esperado. «O dinheiro por si só não resolvia os problemas», explica William Taubman, um norte-americano que se dedica há mais de 50 anos a estudar a história da Rússia. Taubman, que em 2003 venceu o Prémio Pulitzer pelo livro Khrushchev: The Man and His Era, é o autor de Gorbachev – A Biografia (ed. Desassossego), que acaba de ser publicado em Portugal. Uma obra que demorou onze anos a escrever e para a qual realizou «oito longas entrevistas» com o biografado. «É um retrato misto», resume, em que Gorbachov surge como um «herói trágico». «Acho que ele não vai gostar disso», reconhece o autor.
A primeira pergunta que tenho para lhe fazer é muito simples: qual é a maneira correta de dizer, Gorbachev ou Gorbachov?
Gorbachov. Na América dizem Gorbachev mas é Gorbachov. Antes deste, escrevi um livro sobre Khrushchov e digo lá que quando o Presidente Kennedy lhe chamou ‘secretário-geral Kruchev’ cometeu quatro erros de pronúncia! Um deles foi esse.
Fala fluentemente russo?
Sim.
Onde aprendeu?
Comecei quando era caloiro na universidade. Aí tive Russo durante três anos, depois tive mais dois anos na pós-graduação. A minha mulher – que está ali em cima no quarto a descansar – também deu aulas de língua e cultura russa, por isso falamos um com o outro. Mais tarde fiz muitas, muitas viagens à Rússia.
Esse interesse todo não podia ser considerado suspeito nos EUA?
Nem por isso. Só aos olhos de pessoas como McCarthy [o senador anticomunista que na década de 1950 promoveu uma caça às bruxas nos EUA], mas há uma tradição e vários grandes centros de estudos russos em várias universidades, como Harvard, Columbia e Berkeley.
Em que ano visitou a Rússia pela primeira vez?
No verão de 1964.
Como nova-iorquino devia ser um mundo completamente diferente do seu…
Sobretudo naquela altura. Agora Moscovo já é uma cidade muito mais moderna, tem arranha-céus e tudo.
O arranha-céus mais alto da Europa está a acabar de ser construído por estes dias em S. Petersburgo. E como era a Rússia há 50 anos?
Era primitiva. As pessoas vestiam-se de forma andrajosa… Não é a coisa mais importante do mundo, mas lembro-me disto com nitidez. Em 64 fomos num grupo de estudantes e viajávamos de cidade para cidade de avião. As casas de banho dos aeroportos eram em anexos no exterior. Não havia sequer uma rede de saneamento. Embora tivesse foguetes que deixavam o mundo a tremer era um país primitivo. Mas também foi uma época de esperança. As pessoas ainda acreditavam, como Khrushchov tinha prometido, que iam apanhar e ultrapassar o Ocidente. Tinham posto o primeiro homem em órbita em 58, Gagarine…
Como reagiam os russos ao saberem que vocês eram americanos?
Ficavam extraordinariamente curiosos. Se nos sentássemos num banco de jardim quase imediatamente éramos rodeados por 10, 15, 20, 30 russos. Bombardeavam-nos com perguntas. ‘O que é que o teu pai faz?’; ‘Quanto dinheiro é que ganha?’; ‘O que é que a tua mãe faz?’. Estavam sequiosos de saber mais sobre o Ocidente. Essa foi uma das razões por que era tão emocionante estar lá, porque nos tratavam como se fôssemos o Cristóvão Colombo: representávamos todo um novo mundo acerca do qual eles queriam saber mais.
Sentia-se bem na Rússia?
A Rússia e os russos sempre me fascinaram. Havia uma espécie de mistério, que era o seguinte: ‘O que é que as pessoas estão realmente a pensar quando falam connosco? Estarão a proteger-se a si próprias dizendo aquilo que acham que devem dizer?’. Isso sempre me intrigou e constituiu uma das razões para me tornar um estudioso da Rússia.
E alguma vez conseguiu resolver esse mistério?
Mais ou menos. Já depois do colapso da União Soviética encontrei no Ocidente uma mulher que tinha conhecido quando era estudante em Moscovo em 65, 66. E pedi-lhe: ‘Agora conta-me a verdade. Quantas daquelas pessoas eram uma espécie de ‘dissidentes secretos’ que pensavam como os ocidentais, mas tinham de o esconder?’. E ela respondeu-me: ‘A maioria’.
Gorbachov também era assim, não é verdade? Dizia uma coisa e pensava outra.
Pois era. Claro que estas pessoas tinham de ser cuidadosas com a forma como falavam. E ele então tinha de ser super-cuidadoso porque estava a subir a escada do poder.
Pode dizer-se que a postura dele por vezes roçava a hipocrisia?
Sim. Um dos momentos clássicos é quando a União Soviética invade a Checoslováquia para sufocar a Primavera de Praga, em 1968. O melhor amigo de Gorbachov na universidade tinha sido um checo, que em 68 era o braço-direito de Dubcek [o líder do Partido Comunista Checo que começou a empreender reformas no sentido de um ‘comunismo de rosto humano’]. Gorbachov recebeu uma ordem vinda de cima a dizer: ‘Tens de condenar a Primavera de Praga e justificar a invasão’. E foi isso que ele fez.
Como é que ele se sentia com isso? Ficava com remorsos?
Ele diz que sim e penso que é verdade.
Gorbachov não é um russo típico. Não é um grande bebedor e houve até um psiquiatra americano que questionava como é que um sistema tão rígido tinha produzido um líder tão ‘inovador e criativo’. Esses traços de personalidade deram-lhe vantagem sobre os seus concorrentes na ascensão ao poder?
Acho que Gorbachov era excecional em vários sentidos. Era o único líder do seu grupo que queria transformar o comunismo. Era o homem que queria acabar com a Guerra Fria, não apenas aliviar a tensão. Em termos pessoais, era um homem particularmente decente. Tinha um casamento maravilhoso. Muitos oficiais russos que eu conheci tratavam as mulheres muito mal – ele tratava-as muito bem. Acho que isto tem tanto de pessoal como de político. Ele queria democratizar a União Soviética e achava que a confiança era a chave para a democracia: as pessoas tinham de confiar umas nas outras. Era otimista acerca das suas hipóteses de o conseguir. Era autoconfiante. Tudo isto são qualidades pessoais que tiveram consequências políticas. Começou a reunir-se com Reagan, Mitterrand, Thatcher, todos o acharam encantador, podiam falar com ele, ao contrário do que acontecia com Gromyko ou Brejnev.
Que eram mais ‘monolíticos’.
Sim, enquanto Gorbachov tinha um estilo ocidental.
Qual era a situação da União Soviética em 1985, o ano em que Gorbachov chegou ao poder?
Não era famosa. Havia falta de comida. A tensão com os Estados Unidos estava alta. E três líderes velhos e doentes tinham morrido nos quatro anos anteriores. Gorbachov chamou-lhe uma situação de pré-crise, mas tratou-a como se fosse uma crise total.
Mas quando chegou ao poder ele sentiu que era quase impossível mudar instituições tão esclerosadas e resolver problemas com raízes tão fundas como os que havia na União Soviética. Nesse sentido, podemos dizer que foi a novidade do seu estilo, da sua linguagem e da sua atitude face ao Ocidente que acabou por desencadear as mudanças?
Não. Quando ele tomou as rédeas, o sistema soviético estava a debater-se, estava podre, as pessoas não podiam comprar muita comida ou outros bens de consumo. Era consensual que era preciso fazer algum tipo de reforma moderna e foi por isso que os seus camaradas o escolheram. Mas veio a verificar-se que ele levou a cabo mais do que essa reforma, ele transformou o país e as relações internacionais. Nessa altura, em 1985, havia uma grande tensão no mundo. Os russos tinham abatido um avião de transporte de passageiros coreano. Também em 1983 os russos pensaram, quando um computador deu um alerta errado, que estavam sob um ataque de mísseis americanos. E Reagan estava a construir o sistema de defesa Guerra das Estrelas [uma base no espaço destinada a intercetar mísseis inimigos]. Era necessária uma nova détente [distensão ou relaxamento], mas ele foi muito além disso ao fazer uma espécie de aliança.
Refere que, antes da visita à Rússia, Nancy Reagan estava muito ansiosa, e terá dito mais ou menos isto: ‘Tenho medo de fazer ou dizer alguma coisa que provoque a Terceira Guerra Mundial’. Naquela altura a Terceira Guerra Mundial era algo que pairava como uma ameaça iminente sobre as pessoas?
Penso que isso foi uma espécie de piada seca. Era a sua maneira de dizer: ‘Estou stressada, a Raisa [mulher de Gorbachov] põe-me nervosa’. Estava insegura.
Mas havia receio de que pudesse eclodir uma nova guerra à escala global?
Isso havia. E Gorbachov conseguiu reduzir drasticamente esse risco.
Os russos não lhe estão reconhecidos por isso?
Alguns sim. Mas a maioria parece sentir que, numa tentativa irracional para melhorar, ele destruiu um país que tinha sido uma superpotência e tornou-o uma potência de segunda ou terceira categoria. Eles tinham um império e ele deixou o império escapar. À medida que o tempo passa, muitos russos tendem a ver o período soviético como uma época de ouro. Ainda há pouco tempo perguntaram aos russos quem foi o líder mais importante da História. Escolheram Estaline, um homem que destruiu milhões de vidas. Como é possível?
Mas mesmo em 1985 a União Soviética era já um simulacro de superpotência – quem lá vivesse via as suas fragilidades. Os ‘saudosistas’ do império não reconhecem isso?
O que eles sabem é que os Estados Unidos os tratavam como uma superpotência. O mundo respeitava-os e temia-os. Mais tarde, ninguém lhes ligava nenhuma. Até Putin retomar algum do comportamento que levou ao medo e ao respeito internacional.
Isso resultou do facto de Gorbachov achar que a União Soviética consumia demasiados recursos em armamento para competir com os Estados Unidos e que, se conseguisse chegar a um entendimento com Reagan, poderia gastar esse dinheiro no país. Não era uma boa ideia?
Era uma boa ideia mas não deu o resultado que ele esperava, por várias razões. O dinheiro por si não resolvia os problemas.
Porque não havia nada para comprar?
Essa foi uma das razões. Quando diminuíram o orçamento da Defesa e subiram os salários de professores, médicos e outras profissões, as pessoas de repente tinham mais dinheiro para gastar mas nada para comprar. Isso fê-las ficarem ainda mais zangadas.
Em 1992, eu estava na Exposição Universal de Sevilha com alguns familiares quando vimos chegar um grande Mercedes preto com bandeirinhas em cima dos faróis. Saiu um homem lá de dentro e a minha tia, que estava ao meu lado, gritou: ‘É o Gorbachov!’. E as pessoas começaram espontaneamente a bater palmas. Nesse mesmo ano, quando ele aparecia em público na Rússia, qual era a reação das pessoas?
Em 1992 já havia uma grande antipatia por ele. É interessante que diga isso de Sevilha porque o líder estrangeiro de quem ele mais gostava era Felipe González, do PSOE. Era jovem como ele, socialista como ele, um intelectual como ele, e também gostava de debater grandes ideias. O seu outro interlocutor favorito era Rajiv Gandhi, o primeiro-ministro da Índia, também um jovem. De qualquer modo, ele deu-se extraordinariamente bem com Reagan, Thatcher, Kohl e Mitterrand. Sentia-se muito mais à vontade com os líderes ocidentais do que com a velha guarda, como Honecker ou Ceausescu, que ele odiava.
O facto de ele se dar melhor tão bem com os líderes ocidentais também gerou desconfiança?
Os russos são excelentes em teorias da conspiração. Alguns deles acreditavam que ele não apenas se dava bem com o Ocidente como se tinha vendido ao Ocidente. Os seus críticos mais ferozes diziam que era um traidor. Os mais moderados diziam que ele era ingénuo ou que estava enfeitiçado pelo Ocidente.
Todos os líderes o achavam encantador. Também testemunhou esse charme?
Sim, tanto eu como a minha mulher testemunhámos esse charme. Fizemos oito longas entrevistas com ele e achámo-lo encantador, informal, natural, com sentido de humor. Gostámos dele como pessoa. Chegava ao ponto de nos abraçar quando nos encontrávamos. Uma vez deu três beijinhos à minha mulher e disse: ‘Pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo’. Ela ficou surpreendida porque achava que ele era ateu. Era uma piada! Ele tem um sentido de humor fantástico.
Como começou tudo?
O projeto deste livro? A certa altura decidi que queria escrever um livro sobre Gorbachov. Primeiro pensei pedir-lhe autorização. Mas depois achei que isso era demasiado arriscado. E se ele disse que não? Então, em vez disso, decidi informá-lo, através de pessoas que eu conhecia que trabalhavam para ele, que estava a escrever a sua biografia e pedia a sua colaboração. Recebi a resposta: ele estava disposto a ajudar-me.
Onde é que as entrevistas se realizaram?
Realizaram-se todas na fundação, numa sala de reuniões. Nunca em casa dele. O que é interessante, porque mostra que, por muito prestável que ele fosse, mantinha sempre alguma distância. Penso que em parte isso é o velho instinto soviético de suspeitar um bocadinho dos estrangeiros mas também se deve a outra coisa. Embora ele seja uma figura pública, também gosta de manter a sua privacidade. Raisa, a sua mulher, era muito zelosa a salvaguardar o círculo familiar e a manter os outros à distância. A não ser que sejas um amigo muito chegado, ele não te deixa aproximar.
Quando foi a última vez que se encontraram?
No verão de 2016, há dois anos.
Isso foi há muito pouco tempo. Como está ele?
Está velho. Tem 87 anos, não está bem, penso que sofre de diabetes e de tensão alta. Ganhou muito peso, o rosto parece insuflado como um balão. E é muito impopular no seu próprio país. O seu penúltimo livro chama-se Continuo um Otimista. Mas não tenho a certeza disso. Ele tem muitos motivos para estar triste. Quem o conhece bem diz que ele está convencido de que estava certo, de que fez grandes coisas de que se pode orgulhar e que isso o sustenta e o mantém vivo. Mas a vida dele deve ser difícil e solitária. A sua mulher morreu em 1999, só tiveram uma filha que durante muitos anos viveu com eles ou perto deles, mas agora passa a maior parte do tempo na Alemanha. Ele tem cozinheiros, motoristas, guarda-costas mas sente-se muito sozinho.
E de cabeça?
Está muito lúcido. Werner Herzog, o cineasta alemão, acabou agora de fazer um documentário sobre Gorbachov que ainda não está em exibição mas eu já o vi. Nesse documentário vê-se que Gorbachov continua a falar e a responder até com algum espírito, mas está velho e cansado.
Ainda assim, vive com conforto?
Sim. Tem um grande carro e é protegido, tem guarda-costas, porque há muitos russos que não gostam dele.
Como é que ele ocupa o tempo da reforma?
Depois de sair do poder em 1991 criou a Fundação Gorbachov sobretudo com dinheiro que ele próprio tinha ganho, porque o Estado não lhe deu apoios. Essa fundação organiza conferências, publica livros, tem um museu, um arquivo. Além do trabalho na fundação, ele comenta publicamente quase todos os assuntos e em 1996 candidatou-se à presidência contra Yeltsin e Ziuganov. E isso foi outra coisa muito triste porque acabou por ter menos de 1% dos votos. Menos de 1%!
Ele fica amargurado por os russos não gostarem dele? Desejaria ser uma figura popular?
Tenho a certeza de que sim. Toda a gente o tentou convencer a não concorrer mas ele não resistiu à ideia de ser recebido de volta pelo povo russo.
E como olha ele hoje para a Rússia de Putin?
No período final de Ieltsin, que ele odiava, a Rússia estava caótica, portanto acolheu com otimismo alguém como Putin, que podia criar condições de estabilidade e repor a ordem. Ele acreditava que no fundo do coração Putin era um democrata mas aos poucos foi-se desenganando. Descobriu que Putin não é democrata nenhum e deu à Rússia não o que Gorbachov desejava, que era uma certa dose de autoritarismo, mas um autoritarismo total. Por isso foi-se tornando cada vez crítico de Putin e Putin claro que não gosta disso. Lembra-se de quando Putin disse: ‘O colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX’? Aos olhos de Putin, quem foi o responsável? Gorbachov. Apesar de tudo isso, Gorbachov pontualmente continua a apoiar Putin, e simpatiza com a visão do mundo de Putin muito mais do que se esperaria. Por exemplo, concordou com a anexação da Crimeia.
Isso não foi contra as suas convicções de ‘viver e deixar viver’?
Na minha ótica, acho que está a tentar mostrar que é um patriota russo. Uma vez que a anexação da Crimeia foi tão popular entre o povo russo, ele quer fazer parte disso.
E qual a relação do regime com ele? É convidado para cerimónias oficiais?
Não. Em 2006 fomos à festa do seu 75.º aniversário. Foi num respeitável salão nos arredores de Moscovo. Estavam lá alguns políticos, mas claro que Putin não apareceu. Um mês antes [Gorbachov nasceu a 2 de março de 1931, Boris Ieltsin nasceu a 1 de fevereiro de 1931], no 75.º aniversário de Ieltsin, houve uma festa no Kremlin paga pelo Governo e Putin esteve lá. Por isso a resposta é não, ele já não é convidado.
É um bocadinho uma persona non grata?
Sim. Não é um prisioneiro, não está em prisão domiciliária, mas é ignorado pelo regime.
Já entrou em contacto com Gorbachov depois de o seu livro ser publicado?
Mandei-lhe um exemplar, mas ele não lê em inglês. O que as pessoas próximas dele me disseram foi: ‘Ele agradece-lhe do fundo da alma pelo livro mas as suas impressões vão ter de esperar até ele ler a edição russa’.
O livro vai ser publicado na Rússia?
Acabou de sair agora. E vou a Moscovo em dezembro.
Vai encontrar-se com Gorbachov?
Espero que sim, mas ele ainda não me disse nada. Se já leu não mo disse.
E o que pensa que ele vai achar do seu livro?
Acho que ele vai ficar contente por eu o ver como uma figura heroica mas no fim do livro digo que é um herói trágico e acho que ele não vai gostar disso. Não julgo que se veja a si próprio como trágico.
Trágico no sentido do seu destino pessoal ou no sentido do que provocou?
Trágico porque no seu esforço para mudar a posição da Rússia no mundo ele embateu em forças inultrapassáveis, mas também trágico – ainda que em menor medida – por causa dos seus próprios erros. Há dois tipos de tragédia: um é quando falhas por causa da tua incapacidade, outro é quando falhas por causa do mundo exterior. Acho que no caso dele foram ambos.
Mas a verdade é que ele conseguiu mudar o mundo sem derramar sangue. Pensando no que aconteceu depois da revolução de 1917, isso não é um grande feito?
É. É uma coisa maravilhosa. Quantos grandes impérios se desintegraram sem um banho de sangue? Ele conseguiu isso. Mas as pessoas do seu próprio povo não pensam assim. Pensam apenas que ele perdeu o império, por isso não lhe estão reconhecidas. E ele próprio queria mais. Não queria ser deposto, não queria que o país colapsasse, queria salvá-lo, não destruí-lo. Queria criar uma democracia duradoura e não conseguiu. Queria acabar com a Guerra Fria e agora há uma nova Guerra Fria. A forma como eu o sintetizo no livro é: ele mudou o seu país e o mundo mas não tanto quanto desejava.
O que desejava ele, uma transição como a que Deng Xiaping operou na China?
Não, não acho que ele sonhasse com uma transição do tipo da da China. Como sabe, Deng Xiaoping sublinhava a importância das reformas económicas em direção a uma economia de mercado mas reprimiu os estudantes que se manifestaram pela liberdade política na Praça de Tiananmen. Gorbachev deu prioridade às reformas políticas, em parte porque acreditava mais nessas reformas, em parte porque ele via no poder do aparelho do Partido Comunista um obstáculo à reforma económica. Também tenho a ideia de que, nessa altura, a maioria dos russos acharia difícil que pudessem aprender alguma coisa com os chineses, até porque os consideravam relativamente atrasados.