A democracia foi assassinada, a gente passou o dia 29 velando, no dia 30 ela foi enterrada e hoje a gente está tentando entender como viver sem esse corpo que não existe mais no Brasil.» Encontramos Wagner Schwartz no escritório da sua produtora, na Vila Madalena, São Paulo, passava-se uma semana do dia 28 de outubro. O dia em que Jair Bolsonaro se elegeu presidente do Brasil. O dia que o performer, coreógrafo e escritor assinalou como o da morte da democracia. «Eu acredito no que escuto. Não duvido do que escuto e não subestimo o mal. Se as pessoas não estão acreditando naquilo que elas escutam, são elas que têm algum problema para entender o que estão ouvindo. Se é um homem político, deve ser um homem sério, não? Se é um homem político, vou escutar o que ele diz.»
Dia 30, o dia do enterro e dia dos primeiros grandes protestos da rapidamente autodenominada resistência contra o presidente eleito, foi também o dia em que surgiram as primeiras notícias de um boicote a 700 personalidades, na maioria artistas, convocado pelos seus apoiantes no WhatsApp. Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, Anitta, Camila Pitanga, Patrícia Pillar e Wagner Moura, o escritor Marcelo Rubens Paiva, vários jornalistas, os apresentadores Zeca Camargo e Fernanda Lima numa lista interminável, acompanhada de uma mensagem: «Artistas que se manifestaram contra a vontade do povo, pois mamam do dinheiro público! Se faltou algum, acrescente o nome e passe adiante. A ordem é boicotar esses pilantras.»
«Enquanto for apenas boicote… Eles sempre boicotaram essas pessoas.» O problema é que nem sempre é só. Esta semana, Wagner Schwartz apresenta-se pela primeira vez em São Paulo com Domínio Público, um espetáculo em cocriação com Elisabete Finger, Maikon K, Renata Carvalho nascido dos ataques nas redes sociais e episódios de censura de que os artistas foram alvo. No caso de Wagner, por uma performance, La Bête, em que oferecia o seu corpo nu ao público numa revisitação das esculturas Bichos, de Lygia Clark. Quando a apresentou no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o artista foi tocado por uma criança, acompanhada da mãe e, depois disso, um excerto do vídeo foi manipulado e viralizado por grupos conservadores que o acusaram de pedofilia.
Foi no início de 2017. Mais de um ano e meio depois, o pior já passou. Mas continua a receber ameaças nas redes sociais. Algumas de morte. Para o início do próximo ano, tem convites para produções de várias instituições e, até onde for possível, ficará no Brasil para poder terminar esses trabalhos. Entretanto, fazer o quê? «As pessoas estão passando mais tempo dentro de casa. Há uma dificuldade muito grande de encarar a rua porque a gente não sabe quem vai encontrar. A gente nunca soube, no Brasil a violência sempre existiu, mas dessa vez ela está mais mediatizada e tem pessoas completamente descontroladas e prontas a partirem para uma ação porque foram manipuladas por esses novos programas morais que se dizem programas políticos.»
Contornar a avenida
Uma semana antes das eleições, João Salaviza e Renée Nader Messora exibiam pela primeira vez no Brasil, na 42.ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, filme que rodaram numa aldeia de índios Krahô e que em maio levaram a Cannes com cartazes reclamando «demarcação já». Uma aldeia em Pedra Branca, lá nos confins de Tocantins, onde Renée tem trabalhado ao longo dos últimos anos, junto daquela comunidade indígena.
Na Av. Paulista, bem ali do lado, tinha havido nesse mesmo dia uma grande manifestação em que se gritou #elenão. É da Paulista que partem a maior parte das ações de protesto que acontecem na maior cidade brasileira. No dia seguinte, havia uma outra sessão e Renée saiu à rua com Ihjãc e Kôtô, os protagonistas do filme. Era o dia da manifestação de apoio a Bolsonaro.
«Antes de sair de casa, estava com um adesivo do Haddad e o João falou ‘tira esse adesivo’. Eu falei ‘não vou tirar’, mas acabei tirando. Pensei ‘cara só o facto de estar aqui com eles, alguém pode achar que é uma afronta’. Fiquei com medo, pensei ‘será?’ Se acontecesse alguma coisa com eles eu nem saberia como me defender. É muito louco porque fiquei pensando: ‘De repente, essas duas pessoas aqui nessa avenida no meio dessa galera podem parecer uma afronta’. Entende?»
Fizeram o percurso que tinham que fazer por uma avenida paralela. E, entre esse dia e o dia que conversámos, no café de uma livraria ali mesmo na Paulista, uma dúvida ficou a ecoar na cabeça da realizadora: «Será que a gente tem que tirar o adesivo, será que sim? Até que ponto? A gente vai se esconder, agora? Não sei. Não acho que seja a forma. Tenho que pensar ainda sobre isso, mas acho que não é a forma.»
Na estreia de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, na entrada para a última semana de campanha para o segundo turno, chegou a ouvir-se #elenão da plateia. Ihjãc e Kôtô, que nunca tinham estado em São Paulo, estavam lá, do lado dos realizadores e da equipa. «Claro que na aldeia não teve nem um voto no Bolsonaro – no 17, porque eles não sabem nem o nome do candidato. Mas a verdade é que eles sequer entendem o que está acontecendo realmente. Não entendem o que realmente significa um Bolsonaro ganhar. Mas entendem o que as pessoas falam, a molecada vai na internet, no Facebook, e vê. Que o Bolsonaro falou que não tem um centímetro de terra para índio, todo o mundo sabe. E a situação dos Krahô é uma situação que não é confortável, mas existem situações bem mais graves.»
Logo na noite que se seguiu às eleições houve notícias de ataques a duas aldeias indígenas. «Além de tudo o que pode significar um Bolsonaro no poder, as pessoas no Sudeste não conseguem compreender a dimensão disso, porque nunca foram num contexto desses. Vejo pela minha família. A minha família muito próxima não tem ideia do que é esse discurso na mão de gente mal intencionada e que já tem raiva de índio. Lá todo o mundo tem arma, todo o mundo tem uma espingarda, todo o mundo anda na rua com uma peixeira.» Uma peixeira é um facão. «Antes de a gente sair da aldeia, um menino que estava dormindo na rua foi esfaqueado por um branco. É esse o problema. Não é só esse o problema, mas eu estou com medo. A gente vai fazer outro filme lá e não sei como vai ser, porque já era hostil. E que agora terá aval para ser hostil, sabendo que tem um Estado que permite – que permite mesmo, porque é isso que ele faz quando fala que índio não tem que ter terra.»
O facto de no Brasil mais remoto a situação ser mais preocupante não quer dizer que não o seja na cidade. Em Salvador, o mestre de capoeira Moa do Katendê foi assassinado no decorrer de uma briga política, conforme concluiu o relatório policial.
2013 e o ovo da serpente
Poucos dias depois das eleições, era o artista visual Gustavo Von Ha que num jantar nos dava conta da publicação da tal lista negra de artistas e figuras públicas. Mas ainda antes disso, dias antes das eleições, a questão da ameaça à integridade física tinha sido tópico de conversa. Dizia Gustavo Von Ha que tinha sido atacado várias vezes nas redes sociais. «Porque a partir do impeachment, eles desandaram geral. As pessoas sempre disseram que o Brasil era um país que recebia todo o mundo, um país aberto, livre, mas a gente descobriu que não. Que é um país extremamente racista. Violento, homofóbico, misógino, preconceituoso em todas as esferas. Tem uma onda de muito ódio no Brasil e é muito triste o que está acontecendo.»
Como é que o Brasil chegou aqui? Foi já lá atrás, nesse tempo das primeiras manifestações, que tudo começou a desenhar-se. «A coisa foi desandando. Desde 2013, quando as primeiras manifestações surgiram, já estava apontando para uma coisa estranha, porque eram manifestações sem dono, sem partido.» As manifestações que começaram com uma reivindicação de esquerda, contra o aumento de 20 centavos no bilhete de transportes públicos em São Paulo. Era Fernando Haddad prefeito.
«Ali já estava uma coisa estranha, eu fui para algumas para olhar, observar para tentar entender o que estava acontecendo. E lembro que na terceira manifestação a gente já começou a perceber que tinha uns fascistas no meio. Uma direita que estava ali com cartazes pedindo coisas muito estranhas. A gente não levava a sério, pensava ’ah, são uns lunáticos’. Era um grupo pequeno de evangélicos, desses neopentecostais, de fundamentalistas religiosos. Era um grupo pequeno, mas já era o ovo da serpente aí.» Para Gustavo, tudo começou a mudar depois das presidenciais que reelegeram Dilma Rousseff. «As últimas eleições presidenciais foram já um racha. Já houve uma polarização muito grande e ali é que começou a nascer um discurso de ódio mais pesado, tipo gente que atacava os artistas falando da Lei Rouanet, a lei de incentivo que eles nem sabem como é aplicada: é 4% no abate de imposto de renda se as empresas quiserem apoiar, porque é uma lei liberal. Não é uma coisa progressista. E aí começaram vários ataques.»
Gustavo conta-nos vários episódios que ilustram bem a escalada dos discursos de ódio, racistas, homofóbicos, etc. Recorda também, ainda no tempo das manifestações que pediam o impeachment de Dilma, o dia em que saiu à rua com uma camiseta vermelha e teve que voltar para trás para trocar de roupa. «As pessoas queriam atacar pedra em mim. Aqui, na esquina da minha casa – e esse é um bairro de uma certa elite aqui de São Paulo. Eram pessoas que estavam indo para a manifestação pró-impeachment na Paulista. Pessoas vestidas de verde e amarelo, umas garotas com biquínis verde e amarelo e arranjo na cabeça xingando ‘viado, filha da puta’. Voltei para o meu prédio e pus uma camiseta branca.»
Como viver ‘num país assim’
Se entre o meio artístico exemplos como os das atrizes Regina Duarte e depois Maitê Proença, que demonstraram publicamente apoio a Bolsonaro, são raros, o mesmo não se aplica aos agentes que circulam no meio artístico. Compradores de arte, por exemplo. «A gente que é artista e que tem uma voz pública toma muita porrada. No Instagram, de há 15 dias para cá, perdi 4 mil seguidores. Tinha uns 18 mil e estou com 14 ou 15 mil. Recebo mensagens de ódio até de gente que eu conheço. Gente que compra arte, gente que circula nesses lugares, gente que mora aqui.» No seu bairro. O Jardim Paulista.
Ainda assim, vieram como surpresa os ataques de que foram vítimas o grupo de artistas que com Wagner Schwartz e a convite do Festival de Teatro de Curitiba, onde foi pela primeira vez apresentado, criaram Domínio Público. Eles e todos os outros que se sentem em perigo pela forma como a sua obra e a sua voz os expõe. Perante o cenário que se vai desenhando, a ausência de referências ao setor da Cultura no programa com que Bolsonaro foi eleito e a possível extinção do Ministério da Cultura parecem-lhes já questões menores. «É o de menos, acho, perto do que eles estão programando», analisa Wagner. «Porque não é política que está sendo discutida. Se discute a moral hoje no Brasil. Tudo é baseado em moral, em crença. Não sei como é que é viver num país assim. Até hoje a gente ainda tinha uma certa democracia, se essa palavra ainda existir. Tenho trabalhos no Brasil e vou tentar ficar para fazer esses trabalhos, mas tenho que saber se vai ser possível ficar ou não. Quais serão as condições para a minha permanência no Brasil.» Porque, como dirá, mais adiante: «Talvez seja a única chance que a gente tem agora seja pedir um asilo político e se virar pela Europa.»
Até ao próximo primeiro de janeiro, o ambiente é mesmo este. De dúvida. De espera para ver no que dá. Até ver, Gustavo e Wagner continuarão a trabalhar no Brasil como fizeram até aqui. E Renée Nader Messora continua a achar que o certo é regressarem a Itacajá, a cidade mais próxima da aldeia de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, onde planeia rodar um novo filme: «Eu vou. A gente tem que ir.» É isso a resistência? «O que é que você faz? Pára tudo? Estava falando disso ontem com o João [Salaviza], porque agora a gente tem uma filha. Mas acho que alguém tem que fazer isso. Alguém tem que continuar fazendo filmes e alguém tem que ter a coragem de pôr o adesivo. A gente não pode deixar de resistir.»