O juiz Carlos Alexandre considera que a edição feita à entrevista que deu à RTP descontextualizou as suas palavras, sobretudo na parte em que terá posto em causa a distribuição eletrónica do processo. E, segundo o SOL apurou, para atestar o que disse ao inspetor do Conselho Superior da Magistratura (CSM), o magistrado entregou uma cópia do original da entrevista dada ao canal público, ou seja, as imagens não editadas.
O órgão de disciplina dos juízes abriu um inquérito a Carlos Alexandre no dia 17 de outubro, quando a entrevista foi publicada, e nove dias depois o magistrado foi chamado para ser ouvido. Foi nessa altura que o inspetor que está com este caso em mãos recebeu, além das imagens não editadas, uma transcrição integral das suas palavras e uma exposição, em que dá conta de que em alguns momentos a versão que foi para o ar distorce o que verdadeiramente disse.
Questionados pelo SOL, nem o Conselho Superior da Magistratura nem o magistrado quiseram comentar o caso, alegando o sigilo do inquérito.
Já o jornalista José Ramos e Ramos, que entrevistou Carlos Alexandre, admitiu ter tido conhecimento da intenção do juiz de entregar uma gravação não editada, ainda que negue que se trate de um ‘bruto’, ou seja, de imagens não editadas, captadas por uma câmara da RTP. A direção de informação da estação pública, por seu turno, garante desconhecer tudo isto.
A entrevista
Em entrevista concedida à RTP em outubro, o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal explicou que o procedimento informático de distribuição de processos pode ser influenciado por diversos fatores: «Há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor consoante o número de processos de diferença que exista entre mais do que um juiz».
Ou seja, segundo a entrevista, ficava claro que o facto de lhe terem sido atribuídos processos nos dias anteriores à distribuição da Operação Marquês influenciou o sorteio. Falando sempre em abstrato, o magistrado esclareceu: «O sentido da distribuição é tentar igualar o trabalho […] Pode alterar-se significativamente» a probabilidade de ser escolhido no sorteio com a atribuição de outros processos em dias anteriores.
As palavras que foram publicadas são, de facto, suas, mas o juiz terá dito ao inspetor do Conselho Superior da Magistratura que foram retiradas do contexto e truncadas, dando assim a entender algo que na verdade não queria dizer, pelo menos, daquela forma.
Na entrevista, uma das ideias que o juiz frisa é a da sua confiança na Justiça, ainda que deixe um desabafo: «Eu acredito nos tribunais e na Justiça. E espero que se comportem em relação a mim, como me comporto em relação a eles».
O inquérito do CSM
Ainda a entrevista não tinha ido para o ar, quando o Conselho Superior de Magistratura (CSM) anunciou que Carlos Alexandre seria alvo de um inquérito disciplinar. «De acordo com todos os elementos técnicos disponíveis, a distribuição eletrónica de processos é sempre aleatória, não equilibrando diariamente, nem em qualquer outro período temporal suscetível de ser conhecido antecipadamente, os processos distribuídos a cada juiz», lê-se na nota emitida pelo CSM.
«Dada a gravidade das declarações prestadas foi determinado, por despacho hoje proferido pelo Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, Conselheiro Mário Belo Morgado, a abertura de inquérito, para cabal esclarecimento de todas as questões suscitadas pela entrevista em causa que sejam suscetíveis de relevar no âmbito das competências do CSM». Este órgão determinou ainda uma auditoria ao sorteio eletrónico para perceber se houve ou não alguma irregularidade – no âmbito da qual também já chamou Carlos Alexandre.
Órgão de disciplina e Carlos Alexandre em silêncio
Questionado na última quarta-feira sobre se confirmava a existência de um vídeo não editado da entrevista à RTP, bem como se o mesmo tinha sido entregue pelo juiz ou solicitado pelo CSM à estação pública, o órgão de disciplina dos juízes não quis fazer qualquer comentário: «Os processos disciplinares são matéria reservada pelo que o CSM não tece comentários sobre o mesmo».
Sobre esta matéria, o jornalista José Ramos e Ramos explicou ao SOL na quinta-feira que foi informado da intenção do juiz em entregar tal gravação. «Disse-me que queria explicar que as respostas foram dadas no contexto da entrevista», disse o jornalista da estação pública, rejeitando que tenha havido qualquer descontextualização.
Apesar de se tratarem de imagens da entrevista na íntegra, sem cortes, o jornalista defende que não se trata de ‘brutos’, afirmando que tais imagens não foram captadas com meios da RTP.
«Admito que estivessem lá quatro câmaras a filmar. Faço o meu trabalho, depois os outros façam o que quiserem, guardem aquilo, arquivem, deem, ofereçam. O meu trabalho tem um princípio, meio e fim, não pode ter os 50 minutos da entrevista», disse, adiantando que não iria revelar quem tinha posto tais câmaras a filmar – salientando, no entanto, que na sala onde a mesma decorreu só estavam três pessoas, o entrevistado, o entrevistador e o operador de imagem.
«Nós curiosamente levámos duas câmaras profissionais, mas como só estamos habituados a usar uma, quando saímos do sítio onde deveria ter sido a entrevista – era para ser em Mação, mas acabou por ser no Alandroal, só levámos uma. Tínhamos dois tripés, duas câmaras, mas só levámos uma porque não estamos habituados. Mas a ideia nunca foi fazer uma entrevista com planos de corte», acrescentou.
E, segundo a sua versão, como não foram feitas com meios da RTP, não sentiu necessidade de informar ninguém da direção de informação.
Quanto à acusação de que alguns cortes podem ter desvirtuado as declarações do juiz, Ramos e Ramos esclareceu: «Claro que a pessoa quando responde não responde em 30 segundos, não é? Nem responde num minuto. E hoje em dia o telespetador aceita estar um minuto, um minuto e meio a ouvir o mesmo tema, mas depois já não consegue estar a ouvir mais, por isso é que as peças de telejornal têm esse tempo. A tolerância diminuiu muito». Ainda assim reforça que, na sua opinião, nada foi desvirtuado.
O SOL pediu ainda ao juiz Carlos Alexandre uma reação que, tal como o CSM, preferiu remeter-se ao silêncio: «Os inquéritos do CSM são secretos pelo que só o referido órgão de gestão e disciplina da Magistratura Judicial poderá a justo título pronunciar-se. Aguardo serenamente o esclarecimento cabal da situação».
A direção de informação da RTP confirmou desconhecer a existência de qualquer gravação não editada, assim como a acusação feita pelo magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal ao CSM: «[A direção de informação da RTP] não tem comentários a fazer, porque desconhece as alegadas situações».