A esquerda e a direita uniram-se para contestar a greve dos juízes, dizendo que não podem fazer greve pois são «titulares de um órgão de soberania».
Quantas vezes não ouvimos esta frase nas últimas semanas, saída da boca de políticos e opinadores, que a repetem como papagaios?
E as pessoas aceitam: se eles dizem, é porque é assim.
Mas eu pergunto: em que se distinguem os juízes de outros funcionários públicos?
Porventura não têm uma carreira? Porventura não têm salários estabelecidos pelo Governo? Porventura não devem obediência aos seus superiores?
Essa história dos órgãos de soberania é uma conversa da treta.
Vejamos o assunto de um ponto de vista substancial e não pretensamente formal.
É óbvio que a paralisação dos tribunais e de outros órgãos da Justiça causa imensos incómodos aos cidadãos.
Há julgamentos que têm de ser adiados, processos que se atrasam, diligências que ficam por fazer.
Mas a paralisação dos transportes públicos, por exemplo, não causará incómodos iguais ou superiores?
As greves da Carris ou do Metropolitano, as greves do pessoal da Transtejo, as greves dos maquinistas da CP, as greves dos pilotos da TAP ou de outras companhias aéreas, as greves do pessoal dos aeroportos, não causarão transtornos gravíssimos a muitas pessoas?
E o que dizer das greves dos médicos ou dos enfermeiros, que podem levar à paralisação dos hospitais, pondo mesmo a vida de doentes em risco, com o adiamento de exames, consultas e cirurgias?
E o que pensar das greves dos professores ou dos funcionários das escolas? O encerramento das escolas não coloca dificuldades tremendas às famílias, que muitas vezes não têm onde deixar os filhos?
E como encarar as greves dos polícias, que põem em causa a segurança dos cidadãos?
E a greve dos estivadores?
Perante o que fica escrito, atrevo-me a dizer que, de todas as greves, a dos juízes será a que provoca menos transtornos aos cidadãos.
A Justiça já é tão morosa, os tribunais já são tão lentos, os processos já se arrastam tanto, que uma greve a mais ou a menos não fará grande mossa.
Num setor onde tudo anda a passo de caracol – não por causa dos juízes, muitas vezes, mas em consequência de um sistema cheio de ‘garantias’, que permite recursos e mais recursos, que tolera um não mais acabar de expedientes para atrasar os processos – não serão uns dias de greve dos juízes que agravarão muito as coisas.
Deixemo-nos de formalismos, não pensemos em ‘manada’ e ocupemo-nos da substância das coisas.
É evidente que os juízes, como outros funcionários públicos, devem poder fazer greve para discutir os salários, as regalias e as condições de trabalho.
A questão, para mim, é outra: as greves, dos juízes ou de outras classes profissionais, devem ser evitadas a todo o custo.
Uma greve – seja no Estado ou na iniciativa privada – significa uma posição de força, um recurso à força para obter uma vantagem, a substituição da ‘força da razão’ pela ‘razão da força’ (como diria Gabriel Alves), e isso é mau.
Para lá de afetarem a vida de muita gente que não tem nada que ver com o problema, as greves criam situações de desigualdade – pois os grupos profissionais com mais força conseguirão maiores vantagens.
Os mais fracos, os mais pequenos, os menos imprescindíveis, irão ficando para trás.
Podem protestar e fazer greve à-vontade, que ninguém lhes ligará.
Assim, devemos caminhar para modelos mais inteligentes – como a participação dos trabalhadores em órgãos de gestão -, de modo a reduzir as greves ao mínimo.
Situações como a greve dos estivadores de Setúbal, por exemplo, não são aceitáveis.
A Autoeuropa, que não foi destruída pela turbulência interna, esta a ser asfixiada pela greve dos estivadores.
A CGTP, que não conseguiu os seus objetivos com as paralisações na Autoeuropa, está a atingi-los com o bloqueio do porto de Setúbal.
Ora, nesta era da globalização, em que a competição é enorme, não podemos dar-nos ao luxo de pôr em causa uma empresa que emprega diretamente mais de três mil trabalhadores – e que é fundamental para as exportações nacionais.
Há que encontrar soluções para este problema, até porque estamos em concorrência com países onde não há greves.
O mundo mudou.
Há coisas que não podem continuar a ser como eram.
Mas não podem ser os juízes os bodes expiatórios do sistema – impedindo-os de fazer greve e colocando-os em situação de desvantagem relativamente a outros funcionários do Estado.
P.S. – Houve quem considerasse uma farsa o conflito entre António Costa e Carlos César a propósito das touradas. Não foi. César tem ambições políticas e aproveitou o tema para fazer um braço de ferro com o primeiro-ministro. E a votação, com a bancada a dividir-se ao meio, provou que César tem os seus soldados – pelo que Costa, daqui para a frente, não poderá fazer o que quer do Grupo Parlamentar.