Ao nono assalto, Deontay Wilder precisa de fazer qualquer coisa para recuperar o combate. Assim dizem os comentadores. Assim diz o corpo do pugilista de Tuscaloosa, Alabama, tenso, em comparação com o estranho bailarino gigante que continua a dominá-lo com a sua ginga, os seus convites baixando a guarda, a língua de fora. O campeão do mundo do Conselho mundial de Boxe (WBC) desde 2015 está habituado a ser o mais alto no ringue (2,01m) e a fazer valer a extensão da sua poderosa direita para vencer os combates por nocaute – das suas 40 vitórias, 39 foram assim. Tyson Fury tem 2,06m e 117 quilos de sólida constituição de nómada irlandês, que viaja entre a Irlanda e Reino Unido (os irish travellers são habitualmente chamados de ciganos, embora não tenham qualquer relação com os roma, daí a alcunha adotada pelo pugilista: The Gipsy King) que sabem duas coisas na vida: lutar e nunca desistir. É difícil abalar o homem que nasceu com nome de boxeur, o pai, também pugilista, deu-lhe o nome em homenagem a Mike Tyson.
Nesse nono round, dizíamos, Wilder, experiente, campeão do mundo desde 2015, que desde o princípio tentou apressar os golpes para terminar a luta depressa e foi menos contundente do que desejaria, consegue finalmente desviar o curso dos acontecimentos da direção da derrota. Entre a sua ação e o desequilíbrio de Fury este vai ao tapete e as hipóteses do campeão parecem melhores.
Mas não é bem assim. O pugilista britânico estende-se no chão do quadrilátero em jeito de quem está na praia e parece esperar a contagem do árbitro mais para antecipar o resto do round pois não parece combalido.
As mais de 17 mil pessoas no Staples Center, em Los Angeles, entusiasmam-se – a maioria são americanos, embora milhares de britânicos com bandeiras tenham ocupado as bancadas -, tal como se devem ter entusiasmado os milhares que encheram os 500 cinemas onde a luta passava em direto e os milhões que pagaram para ver na televisão. Wilder investe com força, quer aproveitar o momentum, forçar o nocaute. O britânico aguenta, volta à provocação, ao convite, à língua de fora, e Wilder pressente que perdeu a ocasião, os braços descem e a sua luta acalma-se.
Seria difícil ter dois pugilistas tão diferentes como Wilder e Fury a disputar o título mundial. Para além da óbvia cor de pele; o primeiro é seco, musculado, corpo de atleta de alta competição; o segundo, ligeiramente balofo (a zona lombar treme à medida que se mexe), é sólido como uma árvore ou um lenhador, corpo de guarda-costas; o negro do Alabama é concentrado, objetivo; o cigano britânico de sangue irlandês é expansivo, truculento, como se transformasse o ringue num bar ou num beco e o boxe numa rixa.
Ao nono assalto, apesar de ter ido ao tapete uma vez, Fury, mesmo assim, parece encaminhado para a vitória e para o regresso feliz das profundezas dos seus demónios que o levaram à depressão e à tentativa de suicídio desde que lhe retiraram, em 2016, todos os títulos depois de uma investigação médica e de ter cancelado dois combates de desforra com Wladimir Klitschko.
Tyson veio do fundo do poço, de todos os excessos com drogas e álcool; deixou o seu corpo inchar até mais de 200 quilos antes de começar a trabalhar com o novo treinador, Ben Davidson – os 27 anos deste levantaram muitas dúvidas a princípio, ninguém será capaz de lhes fazer referência depois do combate de sábado. Desde aquele primeiro encontro em Marbella há ano e meio, e a conversa no banco de trás de um automóvel que os juntou, os dois têm trabalhado intensamente. Davidson é a droga física que mantém o gigante de Manchester estimulado psicologicamente; focado. E os 12 combates de sábado são a prova de que esse trabalho intenso está a resultar. Ninguém caminha das trevas para a luz se não tiver um bom incentivo.
Fury acha que devia ter ganho. Que houve um juiz mexicano distraído, no mínimo. «Nunca uma vi uma decisão tão má como aquela em toda a minha vida», afirmou Fury aos jornalistas, acrescentando que são «decisões como esta que dão mau nome ao boxe». O pugilista dominou praticamente todo o combate e teria vencido sem qualquer dúvida, mesmo tendo ido ao tapete no nono assalto. Não fosse aquele quase nocaute no 12.º e último round.
O americano considera-se igualmente prejudicado, refere o tardar do árbitro no começo da contagem e até publicou um vídeo nas redes sociais que prova, garante, o seu ponto de vista, mesmo que não seja bem assim e a evidência seja tudo menos contundente.
«Eu estive sempre a avaliar estes tipos durante todo o combate, no 12.º assalto, já tinham posto todo o coração nele, tinham atirado muitos golpes, mas não havia grandes danos em nenhum deles», disse Jack Reiss, o árbitro, à SiriusXM Boxing. «Ambos entraram no 12.º assalto cansados, mas não muito feridos. Quando [o Fury] foi atingido e caiu com estrondo, o nocaute foi inacreditável», acrescentou. «Disse três, quatro, ele estava a fazer caretas, por isso, sabia que estava acordado e no momento em que disse cinco os olhos arregalaram-se como se o tivesse assustado. Mexeu-se para o lado e levantou-se a dizer ‘Estou bem! Estou bem, Jack».
Se a luta entusiasmara até aí, mesmo não conseguindo Deontay Wilder encaixar a maioria dos seus golpes, assim afirmam os entendidos e as estatísticas (percentagem de 17%, quando nos últimos combates conseguira 55%), confundido pelas capacidades defensivas do seu opositor, no último assalto o boxe irrompeu em toda a sua incerteza. O campeão conseguiu por instantes quebrar a defesa do desafiante e fazer valer a força dos seus braços.
Num fogacho, sobrando uns farrapos dos 36 minutos, Fury foi ao tapete pela segunda vez. A sério. Sem desequilíbrios quase involuntários. Um forte golpe de direita que bastaria para o derrubar, completado com uma esquerda capaz de o adormecer a meio do desequilíbrio. Fury estatelou-se no tapete como um fardo atirado por um estivador.
Nos dois segundos de olhos fechados de Tyson Fury, O Rei Cigano, estendido no tapete do ringue montado no Staples Center, nesses dois segundos de desmedida alegria dos adeptos de Wilder, nesses dois segundos em que o gesto do pugilista passando a luva pela garganta dava conta de um final antecipado em que o seu corpo se permitia antecipar a postura do dever cumprido (até se notou um sorriso por trás do protetor bocal); dois segundos em que os apostadores no nómada irlandês (imóvel) se preparavam para rasgar as apostas e todos os comentadores buscavam no cofre das análises feitas a que sublinhava que no boxe se pode construir uma vitória em 12 assaltos e perder num 12 avos de assalto. Pois, nesse momento, Tyson Fury abriu os olhos, ouviu a contagem e aos dez estava de pé, pronto para seguir na luta até ao fim.
«Dei-lhe com a direita e depois com um gancho de esquerda. Toda a gente sabe que tenho mãos pesadas e eu vi, literalmente, os olhos dele a afundarem-se. E ao vê-lo no chão, pensei ‘acabou’! Só Deus sabe como é que ele se levantou outra vez», afirmou Deontay Wilder na conferência de imprensa depois do combate. Fury também evocou forças invisíveis para tentar explicar como escapou ao nocaute: «Levantei-me e não sei como. Foi como uma fénix a renascer das suas cinzas. E ainda lhe dei uns bons golpes no último round.»
Em toda a sua carreira profissional, Tyson Fury só tinha ido ao tapete duas vezes, tantas quanto neste combate com Deontay Wilder, o ainda invencível campeão, e tal como nas vezes anteriores, O Rei Cigano não perdeu o combate: «Quando se está no chão, só há duas hipóteses, ou ficas no chão ou levantas-te e enquanto houver vida neste corpo vou continuar a lutar», enfatizou o pugilista de Manchester. Os nómadas irlandeses são rijos, habituados desde cedo a resolver as suas disputas com os punhos e a nunca desistir, mais a mais numa família de pugilistas: o tio era o treinador antes da caída em desgraça e The Gipsy King é alcunha em homenagem a um antepassado.
Por uma vez, os 12 intensos assaltos correspondiam a toda a parafernália promocional que um combate de boxe habitualmente comporta, com toda a manifestação de testosterona linguística e gestual, como se fossem lutas de vida ou de morte numa arena qualquer da Roma antiga.
Estava em jogo um dos maiores títulos mundiais do pugilismo, o do Conselho Mundial de Boxe, que Wilder mantém desde 2015. Estranho este planeta pugilístico com a sua mão cheia de títulos mundiais diferentes: temos o da Associação Mundial de Boxe, temos o da Federação Internacional de Boxe, temos o da Organização Mundial de Boxe e ainda o da revista The Ring.
Joshua e a oportunidade perdida
Os outros quatro títulos já foram de Tyson Fury, hoje pertencem a Anthony Joshua, aquele que atualmente mais atenções atrai e mais recintos enche no boxe mundial. O último combate de Wilder nem sequer chegara para encher o Barclays Center, em Brooklyn, Nova Iorque. Joshua deve estar arrependido por não ter feito parte de uma memorável noite de boxe, daquelas que nos anos vindouros serão lembradas pelos adeptos. Seria mais plausível que fosse ele a desafiar Wilder para conquistar o único cinto de campeão que lhe falta. Perdeu a oportunidade.
Deontay referiu-se ao tema na conferência de imprensa, afirmando que não é a vez de Joshua agora, terá de esperar: «Eles tiveram a sua oportunidade. Poderia ter sido eu e Joshua a produzir toda esta excitação, mas os seus egos levaram a melhor», sendo o plural aqui usado para incluir também o promotor de Joshua, Eddie Hearn. Para o pugilista americano, o britânico de origem nigeriana e a sua equipa «têm o que merecem» porque «pensavam que eram os únicos a gerir este desporto». «Eu e o Fury juntámo-nos para mostrar ao mundo o que acontece quando os melhores lutam com os melhores. Vejam o resultado.» As negociações para um combate de campeões entre Joshua e o The Bronze Bomber caíram por terra no princípio do ano, dando possibilidade ao Rei Cigano de completar o seu regresso desafiando um campeão.
No Twitter, Anthony Joshua elogiou Fury e mostrou vontade de combater contra qualquer um deles: «O que levou este tolo a perder tanto tempo? Como se não estivéssemos interessados. Seja como for, muito bem, Fury! Queriam-te a ti porque assumiram que estavas arrumado. Dou-te um [combate] justo quando estiveres preparado! A qualquer um de vocês!»
Para os promotores do combate, para a Showtime que o transmitiu em pay per view – e que hoje volta a repetir a transmissão em diferido nos Estados Unidos para quem quiser pagar -, o entusiasmo vai render muito mais dinheiro do que os milhões que já valeu (diz a imprensa especializada que Deontay ganhou 14 milhões de dólares com o combate e Fury 10 milhões de dólares) porque o empate implica desforra e a desforra, visto o que se passou no sábado, é ouro em carteira. Tudo indica que o combate do tira-teimas se realize em maio ou junho do próximo ano.
A preparação promocional do combate parece até já ter começado, com a equipa de Wilder a garantir que nesse combate o campeão do mundo será muito melhor do que o coelho aturdido pelos jogos psicológicos do seu adversário que chegou a parecer na luta do passado sábado.
«Acham que o primeiro combate foi único? Meu Deus! Estou ansioso pelo segundo. Até poderá ser uma trilogia, se formos tão bons como no primeiro. Mas terão o melhor de Deontay Wilder, ainda não me viram num combate aborrecido», afirmou o campeão do mundo.
«É o mais correto dar a Fury a oportunidade da desforra o mais cedo possível», disse ainda Deontay que manteve o seu título por causa do empate. «Estarei pronto quando ele estiver pronto. Estou pronto para dar aos adeptos aquilo que querem ver e acabar com esta conversa de uma vez por todas.»
Fury quer essa desforra e até já sugeriu que se realize no estádio do Manchester United, «algures no verão». Wilder prefere que o combate se realize em Las Vegas e o mais cedo possível: «Ele acordou do Inferno e é para lá que o quero mandar de volta.» O marketing já começou, que venha agora a desforra.