Qual é a memória mais antiga que guarda da sua infância?
Tinha dois anos e meio e os meus pais foram-me deixar à minha avó, porque a minha irmã estava quase a nascer. Eu adorava a minha avó, mas naquele dia, quando os vi afastar-se, tive um aperto no coração. Tentei disfarçar, para a minha avó não me ver as lágrimas. É a primeira memória e é uma memória de perda. Já nesse tempo não gostava que me vissem chorar.
Viviam onde?
Em Maceira, ao pé de Pêro Pinheiro, no concelho de Sintra. O meu pai, Agostinho Pestana, era operário da indústria de mármores e ao mesmo tempo animador da coletividade de cultura e recreio. Portanto, herdei uma cultura operária, como poucos tiveram o privilégio. Estávamos em pleno fascismo (eu nasci em 1947) e o 1.º de Maio não era feriado. O meu pai, que era presidente do sindicato (do que era nomeado pelo Ministério das Corporações), conseguia falar aos trabalhadores e convocar greves do alto das pedreiras: «Amanhã é 1.º de Maio, aqui ninguém trabalha!».
Assistiu a esses discursos às ‘massas’?
Sim, ia muito com ele. Acho que sou a grande frustração da vida do meu pai, sou o filho que ele não teve. Nasceu outro a seguir, mas, como os meus pais tinham incompatibilidade de RH (que na altura ninguém sabia o que era…), nasceu muito bem e depois morreu.
Vivia-se com aperto?
Com muito aperto! Os operários ganhavam à semana e muito pouco. O meu pai trazia o ordenado ao sábado e a minha mãe ia logo fazer o ‘avio’, muitas vezes fiado. O dinheiro era contado rigorosamente, até porque a minha mãe não trabalhava. Quando fomos para a escola é que ela começou a fazer camisas, em casa, para o Casão Militar. Pagavam-lhe 25 tostões por camisa: já vinham cortadas e ela cosia na máquina.
Os seus pais eram naturais de onde?
De Moura, no Alentejo. Fazem parte da primeira revoada de migração do interior alentejano para o litoral. Como não havia dinheiro, o meu pai fazia-nos brinquedos: lembro-me de ter um pequeno lava-loiça em mármore que fazia imensa inveja às minhas amigas. E fazia molduras, também, nas horas extraordinárias, para aumentar o parco salário. Ele e os irmãos tinham andado na Casa Pia de Beja, pois o pai morreu muito cedo. Como estudou até ao 3.º ano do liceu, era um operário diferenciado: na forma de lidar com os patrões, no sentido crítico, na animação cultural e no desejo de fazer outras coisas. A certa altura, ele e um amigo fizeram o curso de guarda-livros por correspondência. Estudava ao domingo, o único dia que tinha de folga. Quando acabou o curso, fomos morar para Pêro Pinheiro (tinha eu seis ou sete anos) e deixou de trabalhar como operário, pois já fazia as escritas de muitas pequenas empresas. Estávamos em 1953/54.
O seu pai era, portanto, um sindicalista?
Sindicalista e anticlerical. Tinha Guerra Junqueiro como seu poeta preferido. Como naquele tempo eu tinha uma memória de elefante, aprendi poemas enormes – como ‘Aos Simples’ e ‘O Melro’, de A Velhice do Padre Eterno, que é anticlerical dos pés à cabeça. O ridículo era eu recitar, com 10 ou 11 anos, poemas que não tinham nada a ver com a minha idade.
E percebia alguma coisa do que dizia?
Os do Guerra Junqueiro percebia, porque o meu pai explicava mil vezes. E dizia que Nosso Senhor Jesus Cristo era muito bom, mas a Igreja Católica tinha estragado tudo. Proibiu-nos mesmo de ir à catequese, – mas as miúdas todas iam e eu e a minha irmã Madalena também queríamos ir. Os meus pais tinham casado pela Igreja e nós fomos baptizadas apenas porque era um ato social. Para ele, era evidente que a catequese estava fortemente conotada com o regime e que na Igreja iriam meter-nos na cabeça os seus princípios totalitários. Mas era completamente solidário: como o padre da paróquia vivia com dificuldades, ele promoveu uma quotização, a seu favor, entre os associados do sindicato. E o padre passou a ir comer connosco muitas vezes.
Como começou a atuar e a recitar nas coletividades?
O meu pai era o meu ídolo e eu ia atrás dele para todo o lado. Recitava em todos os sítios que ele queria (Alhos Vedros, Baixa da Banheira, Lavradio…). Só muito mais tarde percebi o que estava a fazer: a camuflar os vários comités clandestinos do PCP, que reuniam no subpalco enquanto eu recitava.
O seu pai também escrevia?
Chegava a escrever as peças de teatro, fazia os cenários, encenava e depois pedia aos patrões para usar uma daquelas camionetas descobertas e aos fins-de-semana percorríamos várias localidades. A primeira vez que eu subi a um palco foi aos quatro anos (‘traindo’ a minha mãe, que era contra). Normalmente, o meu pai escrevia durante a noite e, ao pequeno-almoço, dava-me a ler os papéis com poemas. Eu decorava tudo até ir para a escola.
Nessa fase, havia muita gente na clandestinidade. O seu pai dava-lhes apoio?
Tinha eu nove ou dez anos, fomos viver para umas pequenas vivendas na Quinta da Lomba, ao pé do Barreiro, onde tinha aberto uma fábrica de mármores. Foi também para lá viver um casal que ninguém sabia de onde vinha e que tinha dois filhos. A mulher nunca chamava o marido pelo nome e eu, um dia, perguntei ao meu pai quem era aquele senhor. «O vizinho não pode dizer o nome porque é político e a polícia não pode saber que mora aqui». Começámos a chamar-lhe «o vizinho político!». Ele e o meu pai ‘faziam’ as coletividades de recreio de Almada e do Barreiro. No intervalo do baile, eu transformava-me na animadora e recitava poemas infindáveis – parecia uma boneca de corda! Mas as pessoas gostavam muito e choravam… Os poemas tinham todos uma moral muito intensa (Infância e Morte, O Estudante Alsaciano e O Juramento do Árabe, por exemplo).
Portanto, já estava definido quando entrava?
Sim, eu entrava e dava início à reunião e só saía quando o meu pai mandava. Depois, mandava-me voltar ao palco ou não, consoante a reunião já tivesse acabado. É por essa altura que a nossa família passa a ter uma espécie de ‘objecto de estimação’.
Qual?
Uma bomba.
Leia a entrevista na Íntegra na próxima edição do jornal i, segunda-feira