O padre António Baptista, antigo diretor da Casa do Calvário, em Paredes, tinha sido condenado a dois anos e nove meses de pena suspensa por maus tratos a deficientes ali internados. Esta semana recebeu um indulto presidencial e, em declarações ao i, admitiu voltar à liderança da instituição pertencente à Obra da Rua, do Padre Américo.
António Baptista, de 88 anos, atualmente retirado da Casa do Calvário, em Beire, Paredes, faz depender o seu regresso à instituição, que dirigiu durante cerca de 60 anos, do “facto de voltarem ou não todos os nossos utentes ‘raptados’ pela Segurança Social”.
O padre António Baptista está agora na sua residência familiar, em Pampilhosa da Serra, tendo no Natal sido já indultado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, devendo-se tal perdão a “razões pessoais e humanitárias”, na sequência de uma proposta nesse sentido apresentada pela ministra da Justiça Francisca Van Dunem. O indulto foi concedido não só ao sacerdote católico, mas também a outros quatro cidadãos.
A condenação do Padre António Baptista por oito crimes de maus tratos a deficientes
O antigo diretor da Casa do Calvário e da Casa do Gaiato de Beire foi condenado a uma pena suspensa de dois anos e nove meses de prisão, para além de ter sido impedido de voltar a viver no local que dirigiu durante quase seis décadas e que está vocacionado para o acolhimento de pessoas com doenças físicas e mentais.
Na leitura de acórdão, no Tribunal Coletivo de Penafiel, o padre António Baptista, de 88 anos, foi considerado culpado de seis crimes de maus tratos a utentes da Obra do Calvário.
Para os três juízes, no período entre agosto de 2006 e fevereiro de 2015, este padre nunca contratou profissionais de saúde como médicos e enfermeiros para tratar das dezenas de doentes que viviam na Casa do Gaiato de Beire, segundo este acórdão, proferido em 2016.
Por outro lado, segundo provou o mesmo acórdão condenatório, o padre António Baptista ministrava medicamentos oferecidos sem recomendação médica e não autorizava a ida de utentes ao hospital, a não ser em casos muito graves, diz o acórdão de março de 2017.
Segundo o Tribunal Coletivo de Penafiel, este sacerdote católico obrigou as pessoas que viviam na Obra do Calvário a “conviver nas camaratas”, durante 24 horas, com utentes que foram falecendo ao longo dos anos.
Um desses casos aconteceu com um homem epiléptico que faleceu na noite seguinte a ter sido suturado num lábio e medicado pelo próprio padre, o que, de acordo com a leitura, constituiu “uma intervenção inadequada”, que “causou dor e sofrimento” ao doente.
O antigo diretor da Casa do calvário foi ainda considerado culpado de mandar amarrar doentes às varandas dos edifícios e de não ligar o aquecimento nas frias noites de inverno, tendo sido provado igualmente que era “responsável por não haver toalhas e esponjas em número suficiente durante os banhos dos utentes”.
Para os três juízes, os doentes da Casa do Calvário “eram abandonados e deixados sem vigilância, apesar de a instituição dispor de meios financeiros para contratar pessoal, pois só numa das contas bancárias em nome da Casa do Gaiato de Beire existiam, à data destes factos, 18 mil euros à ordem e milhares de euros em diversas aplicações financeiras
Diretor geral da Casa do Gaiato opta por negociar com a Segurança Social
O diretor geral da Casa do Gaiato, padre Júlio Pereira, opta por negociar com a Segurança Social, não movendo quaisquer processos judiciais, segundo revelou ao i, já esta semana, na sequência de duas operações de retirada de utentes, após uma ação de fiscalização que concluiu a não existência de condições de funcionamento, segundo este órgão estatal.
Júlio Pereira salienta ter sido “um ato quase selvagem” a maneira como foram retirados utentes da Casa do Calvário, salientando que “eles sofrem com esta retirada perfeitamente desumana que lhes fizeram”, mas acredita que “o diálogo com a Segurança Social possa de algum modo chegar a uma plataforma de entendimento para se ultrapassar a situação”.
“Após tantos anos e tantos anos nesta comunidade, para onde alguns vieram ainda muito novos e com doenças crónicas, retirá-los assim, desta forma quase selvagem, causa muito sofrimento, nós já visitamos aqueles que soubemos onde estão e quem todos voltar”, revelou o diretor geral da Obra da Rua/Obra do Padre Américo.
Para o padre Júlio Pereira, “não há justificação nenhuma para esta atitude, da qual nós já fizemos ver a nossa discordância”, até porque “não havia nada de mal, estava uma vida normal na Casa do Calvário”, tendo afirmado ao i que “motivos obscuros, por razões de ordem ideológica, estão por trás desta atuação, uma coisa que foi longamente maturada”.
“Não tem qualquer fundamento a posição da Segurança Social, porque a nossa Casa do Calvário tem todas as condições para funcionar, como aliás, já funciona há 60 anos”, de acordo com Júlio Pereira para quem “temos um modelo de funcionamento que não é o da Segurança Social e querem-nos encaixar à força no modelo da Segurança Social, nós não aceitamos um modelo que não é o nosso, que tem todas as virtudes para realizar a missão”.
“Nós temos doentes connosco há mais de 40 anos, alguns vieram em condições péssimas e nunca ninguém quis saber deles para nada”, acrescentou, indo ao encontro do que disse ao i o próprio padre António Baptista, segundo o qual “durante 60 anos corri do Algarve até ao Minho a trazer doentes, alguns que estavam a viver em áreas destinadas a animais”.
Segundo Júlio Pereira, em Beire, Paredes, nas duas valências há, na Casa do Gaiato, oito utentes, ali designados “rapazes com incapacidade de autonomia, todos acima dos 40 e 50 anos de idade”, sendo os únicos utentes que se mantêm nas instalações, enquanto na Casa do Calvário há oito doentes, mais concretamente quatro homens e quatro mulheres, porque todos os outros foram transferidos para outras instituições pela Segurança Social.
Segurança Social também não envia crianças
Júlio Pereira, que também dirige o jornal quinzenário O Gaiato, órgão oficial da Obra da Rua ou Obra do Padre Américo, tem vindo a tomar posição, ele próprio, neste periódico, publicando ainda textos de outros autores contestando-se a iniciativa da Segurança Social.
O diretor lamentou que o Estado não encaminhe crianças para a Obra da Rua, enquanto a Segurança Social explica que a instituição do Pai Américo “não cumpre requisitos legais”.
Em Paço de Sousa, Penafiel, onde está a maior das cinco casas do Gaiato em Portugal, uma quinta dedicada a jovens órfãos ou oriundos de famílias carenciadas chegou a acolher 180 rapazes, agora não tem mais de quatro dezenas, como constatou o i em Paço de Sousa.
Tudo porque desde 2004, ano em que uma auditoria denunciou maus-tratos na instituição, que a Segurança Social não encaminhou qualquer criança à Obra da Rua/Padre Américo, o que tem vindo desde sempre a ser negado, “terminantemente”, pelo padre Júlio Pereira.
Quem era e o que guiava o Padre Américo
O Padre Américo, carinhosamente tratado pelos jovens como Pai Américo, de seu nome Américo Monteiro de Aguiar, nasceu em 23 de outubro de 1887, na freguesia de Galegos, em Penafiel, dedicando-se a recolher jovens das ruas, dizendo “não haver rapazes maus”, lema que originou há 70 anos, o filme com película a preto e branco, com o mesmo nome.
Depois dos estudos preliminares, envereda pela carreira comercial, trabalhou no Porto e mais tarde, em Moçambique, entrando, já aos 36 anos, para o Convento Franciscano de Villariño de la Ramallosa, na Galiza, do qual saiu depois de dois anos de vida conventual. Foi recebido no Seminário de Coimbra em 1925, tendo sido ordenado presbítero em 28 de julho de 1929, passando em 19 de março de 1932 a encarregado da Sopa dos Pobres, em Coimbra.
Dedicou-se ainda ao Apostolado da Caridade, nos tugúrios de famílias em dificuldades, visitando hospitais e cadeias, organizando entre 1935 e 1939 Colónias de Campo, até que em 7 de janeiro de 1940 instituiu a Obra da Rua, com a fundação da primeira Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo, no distrito de Coimbra.
Mas em 1951 criou ainda o Património dos Pobres, que alertou Portugal quanto à inércia do problema habitacional dos pobres, mas foi precisamente a sua última realização aquela que nos últimos anos tem andado nas bocas do mundo: a Casa do Calvário, destinada a doentes incuráveis e abandonados, atualmente com a Segurança Social do Porto a retirar sucessivamente dezenas de utentes, devido aos “maus tratos” e a “abandono” dos utentes.
O Padre Américo faleceu no Hospital Geral de Santo António, Porto, a 16 de julho de 1956, em consequência de um acidente de automóvel em São Martinho do Campo, Valongo, jazendo em campa rasa, na Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, em Penafiel, onde está sediada a direção geral das várias instituições que fundou.
O seu processo de beatificação foi introduzido em 22 de março de 1986, constituindo-se autora a Obra da Rua e em 18 de outubro 1997 foi publicado o decreto de validade da Causa de Canonização do Servo de Deus.
O seu objetivo era preservar e apoiar a instituição familiar pobre de recursos, mas ainda sã, para que não decaia, mediante a visita e o auxílio domiciliários, enquanto na habitação apoiava o Património dos Pobres e ajudava à autoconstrução.
Para os sem-família, manteve, as Casas do Gaiato, destinadas a rapazes em risco e a Casa do Calvário para os Doentes incuráveis.
Como lema tinha ainda: “Vida Familiar: Obra de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes», bem como “Todo o regresso a Nazaré é progresso social cristão”, tendo por fundamento que “a nossa riqueza é a nossa Pobreza”.
“Nas obras sociais a partir do Evangelho, a última coisa a procurar é o dinheiro. Primeiro a Justiça do Reino”, preconizava igualmente o Padre Américo, sempre com a intenção de “Revelar Cristo, Testemunhá-lo presente e ativo no meio dos homens”.