Nascido em 1974 em Fife, Escócia, Gavin Francis tem já 25 anos de experiência como médico. Para pagar os seus estudos na Universidade de Edimburgo trabalhou num bar a servir bebidas e nas férias do verão treinava a dissecar cadáveres. Quando terminou o curso passou dez anos a viajar, num périplo que o levou aos sete continentes. Fez uma comissão de 15 meses como médico residente da missão britânica na Antártica. Depois assentou como médico de família e hoje diz que é nesse ambiente tranquilo que tem feito as mais profundas descobertas. Conversámos com ele através do Skype a propósito da publicação em Portugal do seu livro Da Cabeça aos Pés (ed. Marcador), uma viagem aos meandros mais recônditos do ser humano.
Ao pegar no seu livro pela primeira vez apercebi-me de quão pouco sei acerca do meu próprio corpo.
A sério?
Sim. E parece-me que se passa o mesmo com a maioria das pessoas. Tem alguma ideia da razão por que isso acontece?
Na maior parte do tempo vivemos nas nossas mentes, e apreendemos o mundo à nossa volta – vemos, sentimos, cheiramos – com os sentidos. E só quando alguma coisa começa a correr mal é que nos tornamos agudamente conscientes do corpo. Pessoalmente sempre tive um tal fascínio por ele que logo em miúdo comecei a estudar e a ler livros. Por isso, embora até esteja habituado a falar de forma muito simples com os meus pacientes de modo a que eles possam compreender melhor o que se passa no seu corpo, não consigo colocar-me nessa posição de ignorância e encontrar uma explicação para esse desconhecimento. Mas diria que as pessoas que têm saúde não precisam de se preocupar muito com o seu corpo. E isso é uma coisa boa!
Desde que funcione, não precisamos de saber como funciona, é isso?
Exato. Quando as pessoas ficam mal, então começam a aprender.
Disse que começou a interessar-se pelo corpo humano desde muito novo. Ainda fica maravilhado com o que vê ou ao fim de alguns anos o encanto perdeu-se?
Essa capacidade de me maravilhar continua comigo, não a perdi. Há tanta coisa sobre o corpo que ainda não compreendemos completamente… Este livro tenta levar-nos numa viagem ao interior do corpo, tenta imaginar o corpo como uma espécie de paisagem com a sua própria história e cultura. E para a maioria de nós, eu incluído, essa paisagem está cheia de coisas maravilhosas. Por exemplo: a forma como o nosso coração funciona, como consegue bombear ao longo de 80 ou 90 anos, distribuindo sangue por todos os vasos e ramificações, é miraculosa. Continuo a sentir esse espanto, por exemplo, quando ausculto o coração de um paciente para ver se tem algum problema cardíaco; ou quando estou a examinar uma mulher grávida e oiço o coração do bebé no interior do ventre. O som do coração de um bebé é um dos mais maravilhosos que ouvimos na medicina. Quando estou a certificar-me de que está tudo bem com a gravidez continuo a emocionar-me com isso.
Mas quando vamos ao hospital e falamos com os médicos muitas vezes ficamos com a sensação de que o trabalho para eles se tornou uma rotina aborrecida. Nunca viu isso nos seus colegas?
Às vezes. Normalmente isso é um sinal de que estamos a trabalhar demasiado. E, dê para onde der, temos de encontrar uma forma de, mental ou emocionalmente, dar um passo atrás para percebermos qual é o propósito do nosso trabalho. Quando noto que começo a ficar assim normalmente é um sinal de que tenho recuar um pouco, possivelmente de trabalhar a um ritmo ligeiramente mais lento para recuperar essa tal capacidade de me maravilhar. Sou médico há 25 anos e sim, há alturas em que trabalhamos demasiado e pode tornar-se extenuante. Mas quando damos um passo atrás chegamos ao fim do dia e percebemos que a nossa tarefa é cuidarmos de todo o tipo de pessoa – rico e pobre, novo ou velho – e, inversamente, todo e qualquer indivíduo chegará uma altura em que terá de procurar os médicos. É um privilégio e o facto de esta profissão, em última análise, aliviar o sofrimento de alguém traz sempre o sentimento de que vale a pena. Nunca sentimos que este seja um trabalho inútil ou supérfluo. Nunca sentimos que seja uma perda de tempo.
Dizíamos há pouco que, em geral, as pessoas sabem pouco sobre o seu corpo. A verdade é que muita gente fica horrorizada com a visão do interior do corpo humano, dos órgãos e das vísceras. Há alguma explicação para isso?
Penso que isso terá que ver com algo de muito primitivo, no sentido de que se vemos o interior do corpo é porque alguma coisa está muito errada – é sinal de que a pessoa sofreu um ferimento catastrófico ou está terrivelmente doente. Há algo de primitivo na natureza humana que sente repugnância, que recua e tem medo disso. Mas quando espreitamos para o interior do corpo em contexto médico normalmente não é porque tenha acontecido alguma coisa terrível, é para prevenir. Olhar para o interior do corpo neste contexto pode ser uma experiência verdadeiramente inspiradora. Porque estamos a ter uma visão que nenhum ser humano teve na História até há cerca de cem anos. Ninguém antes disso conseguiu vislumbrar o interior de um corpo vivo sequer por um instante. E algumas das imagens que criamos quando olhamos para o nosso organismo transmitem uma beleza tremenda, possuem um enorme valor estético. No livro há um capítulo sobre raios X e eu defendo que até os intestinos podem ser bonitos.
Chama-lhes mesmo ‘uma obra de arte’.
Exato!
E não acha que por dentro o corpo por vezes pode ser feio?
Alguns aspetos podem ser feios. Particularmente se o corpo sofrer abusos. Por exemplo, se olharmos para dentro de alguém que tem uma dieta muito desequilibrada e fumou demasiados cigarros, vemos os pulmões escurecidos e os vasos sanguíneos a começarem a ficar entupidos com o colesterol. Sim, isso pode ser uma visão desagradável. Ainda assim continuo a maravilhar-me como essa pessoa conseguiu resistir tanto! [risos]
Um médico – mais especificamente um veterinário – dizia-me uma vez que a medicina é uma ciência suja. Concorda com essa afirmação?
Depende do significado que damos à palavra sujo. O que quereria ele dizer? Que é uma barafunda [messy]? Concordo inteiramente. Se não for o tipo certo de pessoa é melhor procurar outro emprego. Para estarmos à altura deste trabalho às vezes é preciso calçar as luvas de borracha e estarmos preparados para nos sujarmos. Este livro cobre várias áreas – como a neurocirurgia, a ortopedia e até a medicina em expedição – mas algumas das aprendizagens, revelações e encontros mais profundos e gratificantes que tenho tido são num contexto mais tranquilo, por exemplo como médico de família. E isso nem por sombras é uma barafunda. São apenas duas pessoas a encontrar-se numa sala e a conversar. Aponto uma lanterna para os olhos, testo os reflexos, ausculto os pulmões com um estetoscópio. O mais importante é comunicarmos de modo a compreendermos aquele elemento que está a causar dor ou sofrimento para resolver o problema. Não há aí qualquer barafunda.
Mas no seu livro descreve cirurgias impressionantes, em que há muito sangue e serras envolvidas.
O cheiro do osso cortado é horrível…
A que cheira?
A churrasco. Porque somos feitos de carne e quando usamos uma serra de osso, a fricção aquece o osso e começa a libertar esse cheiro.
Por vezes há semelhanças entre ser médico e ser um talhante?
Não! Os pacientes deles estão todos mortos [risos]. Não me vejo como nada sequer parecido com isso, porque o objetivo é completamente diferente. Há certos paralelos: os talhantes também estão muito familiarizados com a anatomia dos animais. Mas as semelhanças acabam aí.
No seu livro cita a seguinte frase de Hillary Mantell: ‘Os enfermeiros e os médicos são uma elite que se presta a um trabalho para o qual são suficientemente insensíveis’. Ser insensível é uma condição sine qua non para exercer medicina?
Usei essa citação num ensaio que escrevi sobre o coração, a pulsação e o que acontece quando o coração pára de bater. Na altura estava particularmente interessado em comparar a linguagem clínica que os médicos usam para falar sobre esse fenómeno com a forma como os pacientes o descrevem mais tarde quando sobrevivem. Os pacientes descrevem-no de forma muito emotiva. Dizem que se sentem a sufocar ou que é como se estivessem a ser esmagados. Mas os médicos usam uma linguagem completamente desapaixonada. Há um aspeto da linguagem médica, que é tentar manter a realidade do sofrimento a uma certa distância. Quando alguém colapsa à sua frente, o médico escreve ‘episódio sincopal’. Acredito que essa linguagem serve para nos proteger. O que acho que Hillary Mantell quer dizer com essa frase é que se eu for uma pessoa muito sensível, facilmente impressionável, se desmaiar ao ver sangue, se me sentir nauseado ao ver uma infeção ou outra coisa que se possa considerar repugnante, não vou continuar a minha formação médica, acabarei por desistir. No fim só restam as pessoas que não se importam com isso, todas as outras foram fazer outra coisa. E, nesse sentido, sim: ‘autoelegemo-nos’ como suficientemente insensíveis e quando algo de horrível, dramático, poderoso ou repugnante acontece nós não fugimos da sala.
Parece evidente que há muito drama e muito stresse na vida de um médico. Há também momentos engraçados, situações cómicas?
Às vezes. Sobretudo entre colegas. Havia um grande escritor americano, Anatole Broyard, que sofria de cancro na próstata e escreveu no New York Times uma série de ensaios sobre os tratamentos – são maravilhosos. E ele deixa muito claro que não quer um médico esteja sempre a rir. Ele vai ao médico porque está doente e precisa de alguém que o ponha melhor. Os problemas que ele leva para a consulta são muito sérios, por isso não quer alguém que esteja sempre a contar anedotas – isso levá-lo-ia a pôr o médico em causa. Ao mesmo tempo, os médicos e enfermeiros desenvolvem um certo tipo de humor entre eles para poderem lidar com o stresse e os obstáculos do seu trabalho. Embora tenha usado isso como ‘estratégia de sobrevivência’ num ambiente de grande stresse, ao mesmo tempo não me parece adequado contar anedotas quando estou em consulta com os meus pacientes. Percebe o que quero dizer?
Penso que sim. Acha que é uma falta de respeito, é isso?
Não é apropriado. Por exemplo, na época do Natal devo levar para o emprego um fato de Pai Natal com umas hastes de rena na cabeça a piscar? Poderia ser muito engraçado mas não me vejo a ir visitar alguém no seu leito de morte ou alguém que não tem muito mais tempo de vida, ou a falar com alguém que está a chorar a morte de um parente próximo, vestido dessa maneira. De repente já não é assim tão engraçado usar um fato de Pai Natal e umas hastes de rena a piscar. Por um lado participamos em situações engraçadas, é verdade, mas no momento seguinte podemos estar a lidar com algo que requer que estejamos muito sérios. Eu aconselharia a usar o humor com muita cautela.
Eu tinha a ideia de que a medicina nos dias de hoje é uma disciplina altamente especializada e que cada médico se ocupava apenas de uma área muito específica – o nariz, os olhos, o fígado, etc. Mas a sua prática abrange uma grande diversidade de áreas. Você é uma exceção no panorama da medicina moderna?
Sim e não. Sim no sentido em que experimentei uma série de especialidades antes de assentar arraiais nas emergências e medicina familiar, que são as mais generalistas de todas as especialidades. Quando se trabalha nas emergências ou na medicina familiar estamos sempre a lidar com todo o corpo, e ainda com a doença mental. Nunca me especializei no sentido de escolher um órgão e aprender tudo sobre ele. Mas não sou uma exceção. No Reino Unido é muito comum as pessoas trabalharem como médicos de medicina geral. Há muitos outros como eu que passam por diferentes especialidades e vão aprendendo um pouco de cada antes de se fixarem numa. E algumas das histórias neste livro vêm precisamente do período quando era jovem em que trabalhei nessas diferentes especialidades – ortopedia, cardiologia ou neurocirurgia. Mas passar o resto da vida só a olhar para rins… não era para mim.
No capítulo 4 do livro diz que dissecou entre 20 e 30 rostos humanos. Não sabia que se pode dissecar uma cara… Como é o processo?
Isso foi numa altura em que trabalhei numa universidade e a minha função era preparar os cadáveres do departamento de Anatomia. E tinha de remover a pele em camadas de modo a ir expondo os músculos para os estudantes aprenderem a anatomia do rosto. O processo envolve tirar a pele, que quase não tem espessura e mostrar os músculos que provocam as nossas expressões faciais e chegar a uma camada mais profunda, até aos músculos envolvidos na mastigação, que estão junto ao osso da mandíbula. Através disso conseguimos perceber se uma pessoa se ria muito ou pouco.
Os nossos órgãos e músculos dizem muito sobre as pessoas que somos e como vivemos?
Há muita coisa que se consegue descobrir. Por exemplo, se a pessoa era fisicamente forte – vendo se os músculos estão ou não desenvolvidos e se os ossos também mudaram. Pelos pulmões pode-se dizer se uma pessoa vivia na cidade ou no campo, se fumava ou não. Olhando para o fígado e a vesícula consegue saber-se algumas coisas sobre a dieta. Obtém-se imensa informação.
Vou propor-lhe um exercício. O que diz o seu corpo sobre si e sobre os seus hábitos?
Para começar, espero que o meu corpo diga que me rio muito. Diria também que vou para o trabalho de bicicleta – faço 100, 150 quilómetros por semana -, isso mantém-me razoavelmente em forma. Que não vou para novo – já entrei nos 40 e as articulações estão a ficar rígidas. O importante é que me mantenho ativo e feliz.
Li recentemente que há quem acredite que no prazo de 50 anos já terão sido descobertas curas para todas as doenças e que a esperança de vida aumentará significativamente. Partilha desse otimismo ou acha que é ingénuo?
Não acho que isso vá acontecer. Podemos travar mais algumas doenças e encontrar boas terapêuticas, mas em termos de esperança de vida o problema da fragilidade mantém-se. Podemos ficar vivos durante mais anos, mas o corpo continuará a ceder e a mobilidade será reduzida. Conheço pessoas que têm 95 ou cem anos e são felizes – mas poucas. A minha experiência é que quando as pessoas chegam a uma idade muito avançada a vida torna-se difícil. Há um mito sobre isso, o mito de Titono. Conhece?
Não.
Titono apaixona-se pelo deusa da aurora e é-lhe concedido um desejo. Ele é mortal e sabe que vai morrer mas está apaixonado pela deusa, por isso diz: ‘Quero viver para sempre’. Infelizmente esqueceu-se de pedir a eterna juventude, então o seu corpo entra em decadência e torna-se cada vez mais frágil, mas não há qualquer hipótese de morrer. O mito termina desta forma perturbadora: a mulher acaba por pô-lo num quarto e fechar as portas. Ele torna-se cada vez mais débil, não se consegue mexer, perde a memória. Não é um destino que algum de nós deseje.
Viver para sempre torna-se uma maldição.
Sim, é uma maldição. Olhando para a natureza à sua volta, o que é que vive para sempre?
E há um limite para a esperança de vida do ser humano?
As pessoas vivem cada vez mais até aos 100, 105, mas a minha experiência é que muito poucas das que chegam a essa idade ficam satisfeitas com isso. Penso que a nossa sociedade tem de fazer as pazes com esse facto. Mesmo que continuemos a prolongar a vida, ainda não encontrámos a poção da eterna juventude.