Irão-iraque. Na fronteira do sangue…

«Foi fogo e faísca!», diz Carlos Queiroz, treinador do Irão, depois do jogo desta semana que marcou a maior rivalidade da Taça da Ásia.

Duas vitórias para cada um nos dois primeiros jogos fizeram com que o Irão-Iraque que se disputou esta semana, a contar para a Taça da Ásia, nos Emirados Árabes Unidos, tenha sido um dos mais pacíficos da história de uma rivalidade geralmente escaldante e que, por vezes, se transformou em autêntica inimizade. A verdade foi simples: com o apuramento para os oitavos-de-final assegurados, as duas seleções jogaram para a conveniência do calendário. E só. Resultado: 0-0. Ainda assim, no dia seguinte, em conversa com Carlos Queiroz, selecionador do Irão, não tardará muito a caminho da Colômbia, ouvi esta frase: «Foi fogo e faísca! Muito tenso a certa altura». Veremos se não se reencontrarão brevemente. Nas próximas duas semanas…

Mas vamos um pouco atrás no tempo. A Teerão, em 1962. Teerão é uma cidade extraordinária. Envolvida pelas montanhas da cordilheira de Elbruz; o pico do Damavand, erguido sobre as nuvens, a 5610 metros de altitude; o deserto de Dasht-e-Kavir a desafiar as fronteiras das habitações; o trânsito caótico de mais de oito milhões de almas; a poluição bruta que ataca a garganta e os pulmões.

O Estádio Azadi é, ele também, extraordinário. Uma massa de betão construído para receber 120 mil espetadores. Em 1962 ainda tinha o nome de Aryamehr, em homenagem ao xá Reza Palevi. A partir de 1979, com a revolução dos ayatolahs, tudo mudou naquele lugar que foi a Pérsia das infinitas lendas.

Aí se jogou o primeiro Irão-Iraque: 1 de junho. E, já agora, o segundo: dois dias mais tarde. Empate (1-1) num, vitória do Iraque no seguinte (2-1). Como todas as grandes rivalidades, esta ultrapassa em muito o futebol e mergulha na história de dois países vizinhos com desavenças constantes e uma guerra duríssima que se propagou durante oito anos. Alguma razão teve Yannis Mahmoud, antigo capitão da seleção iraquiana: «There are football rivalries and then there is the rivalry between Iran and Iraq».

Mais de um milhão de mortos e rios de sangue separam os dois países como uma fronteira incontornável. Razão suficiente para que as duas seleções tenham evitado confrontar-se entre 1976 e 1989. Depois, a pouco e pouco, as coisas foram reentrando na normalidade.

Em Amã, na Jordânia

2007: outro ano importante para a nossa narrativa. Em Amã, Irão e Iraque encontram-se na final da Taça da Àsia Ocidental, uma competição que serviu de preparação para a Taça da Ásia. Milhares de iraquianos viviam em na capital da Jordânia, refugiados da guerra. E quase todos os jogadores iraquianos tinham sofrido baixas entre familiares, vidas ceifadas pelo conflito. Além disso, recentes ameaças tinham sido recebidas na Federação do Iraque: havia quem planeasse o rapto dos selecionados mais conhecidos.

O treinador era brasileiro. Jorvan Vieira: «Tinha o pior trabalho do mundo. Não era fácil lidar com todos aqueles rapazes cheios de problemas». Uma semana antes, o seu fisioterapeuta tinha sido morto em Bagdad, apanhado num atentado à bomba junto ao aeroporto. E os cadáveres de toda a equipa olímpica de taekwondo foram encontrados enterrados numa berma de estrada. Os adeptos cantavam o hino do país e canções anti iranianas. De pouco lhes serviu. Perderam por 1-2. Mahmoud, humilhado, em lágrimas, despiu a camisola e exibiu o mapa do Iraque tatuado num ombro. A noite de Amã vibrou com o ruído dos tambores batidos pelos derrotados. O orgulho continuava intacto.

Conto das fadas tristes

E a vingança estava ao virar da esquina. O Iraque ganharia a Taça da Ásia que se seguiu. Simon Hill, repórter da Fox, diria com a voz embargada pela emoção: «O conto de fadas está completo. Uma equipa sem base de treinos, que há dois meses não tinha treinador, que foi obrigada a passar horas a fio nos controlos aeroportuários e cujo passaportes são observados ao pormenor com toda a desconfiança… A equipa sem esperança deu uma alegria ao país. O futebol venceu onde a política falhou. O Iraque é campeão da Ásia – inacreditável!».

A morte nunca parou de lhe rondar a porta, no entanto. Enquanto a festa da vitória sobre a Coreia do Sul, na meia-final, se espalhava pelas ruas de Bagdade, um bombista suicida fez-se explodir à porta de uma gelataria matando dezenas de pessoas. Nesse momento, os jogadores reuniram-se com a equipa técnica: sobre a mesa havia a proposta de abandonarem a competição. Todos se sentiam deprimidos. O futebol perdera a alma. Não sabiam por quem e porquê continuar a lutar. 

Uma mãe de filho morto surgiu na televisão e disse: «Joguem e ganhem por ele. Por ele e por todos os nossos filhos mortos!». Na final, o Iraque bateu a Arábia Saudita (1-0). Era o realizar do conto de todas as fadas tristes.

O berço da civilização

«O futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito mais do que isso», disse um dia Bill Shankly, treinador do grande Liverpool dos anos 70. Neste caso vem a propósito.

Irão-Iraque: que jogo mais desinteressante, dirão alguns. Com razão, se reduzirmos tudo à simplicidade de quatro linhas e de onze homens contra outros onze durante 90 minutos. Mas, verdadeiramente, recuamos aos primórdios da História, à Mesopotâmia e às margens lendárias do Tigre e do Eufrates. Foi aí que começou a civilização? Muitos cientistas defendem-no sem contradição.

Foi na confluência do Chat-El-Arab, naquele aperto de território que dá, hoje em dia, ao Iraque, um muito conveniente acesso ao mar e ao Golfo outrora Pérsico e agora Arábico, que o homem deixou de ser nómada e começou a criar os instrumentos do futuro: a escrita, a roda, a astronomia, a matemática, a engenharia, entre outros conhecimentos. Mesopotâmia significa «Terra entre rios». 

O mundo fervilhou como nunca desde o Big-Bang ou coisa que o valha. E, acima de tudo, a lei: Hamurábi, o olho por olho, dente por dente. Se um arquiteto construísse uma casa que desabasse e matasse pessoas, a família das vítimas tinha o direito de matar o arquiteto; se o vizinho roubasse o vizinho, o segundo teria o pleno direito de roubá-lo por sua vez.

Talião (que vem do latim, talis: tal, idêntico) continua a ser um princípio para determinada gente que habita junto à fronteira do sangue: os números são difusos quanto às mortes provocadas por duas guerras (1990-91 e 2003-11). Mais de 500 mil militares; de 20 a 30 mil civis. Mas a contabilidade não pode ser feita por baixo: ficam de fora as vítimas de incontáveis ataques bombistas que se fizeram sentir na região como réplicas de um terramoto que, verdadeiramente, ainda não acabou.

Com o desaparecimento de Saddam Hussein, o conflito amainou. Afinal, ambos os países têm muitos interesses comuns e inimigos igualmente comuns. A influência iraniana na construção do novo Iraque shiita teve o seu peso. Mas o Governo federal comandado pelo primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi vive equilibrado numa corda tensa que suporta uma política internacional dos EUA que há muito procura estrangular o Irão à custa de boicotes comerciais.

Pois… o futebol é muito mais do que uma questão de vida ou de morte. Apesar de continuar também a ser a coisa mais importante das coisas menos importantes. Iraquianos e iranianos que o digam.