Era difícil que Selvagens, o filme de Dennys Berry que chegou esta semana às salas com a turbulenta história de amor entre Léa, uma artista neo-punk envolvida num escândalo sexual e Nora, que, ao sair da prisão, passa a ter como objetivo único conhecê-la, viesse sozinho.
Aqui, e por um processo não menos intenso quanto a história que o ajuda a contar, Catarina Wallenstein é Lea (Nadia Tereszkiewicz é Nora). E era difícil que o filme viesse sozinho porque a atriz que recentemente vimos em Raiva, de Sérfio Tréfaut, O Caderno Negro, de Valeria Sarmiento e Peregrinação, de João Botelho, não há de parar este ano de nos aparecer no ecrã.
Com estreia para breve hão de estar Mar, de Margarida Gil, e Um Animal Amarelo, do brasileiro Felipe Bragança, com quem acaba de se estrear na realização com um filme ensaio a refletir sobre o Brasil de agora, a partir do turbante de Carmen Miranda. Diz a atriz que «absolutamente por acaso». Também por acaso calhou Tragam-me a cabeça de Carmen M. tornar-se público no dia exato para o qual já estava marcada a conversa, com a notícia da seleção para o Festival de Cinema de Roterdão.
Pode dizer-se desta tua personagem que é diferente de qualquer uma das que fizeste até hoje. Como é que chegaste até ela num filme que, não estando escrito no início da rodagem, teve um processo tão particular quanto este?
Foi um processo de absoluta confiança no momento em que as coisas estavam a acontecer. Não era um filme de guião composto e organizado. Havia uma história base e as cenas foram sendo escritas à medida que íamos filmando. Começou com ‘há um filme com uma história assim, uma personagem assim, em francês’, isto já numa conversa com o Dennis Berry, em que adorei a energia dele. Ele é super divertido, um punk à séria. É muito livre, muito sem construções e sem ideias feitas — e muito disponível também para experimentar e para descobrir. O próprio filme é um objeto especial. Não é uma história quadradinha, super bem contada.
Sim, é uma coisa mais orgânica — selvagem, fazendo jus ao título.
É. Está ali a acontecer. Eu não tinha exatamente ideia daquilo que o filme ia ser, porque tinham-me contado a história muito por alto. Estava a querer representar em francês há algum tempo e nunca me tinha acontecido ter um papel assim tão grande em francês, portanto isto foi assim um bombom que me deram. Foi uma experiência de trabalhar sem rede, um pouco de cabeça para baixo, a fazer, fazer, fazer. Eram muitos planos e a muita velocidade nas filmagens, portanto não havia muito tempo para pensar ou para questionar. Os traços gerais da narrativa estavam definidos e ele ia fazendo os diálogos e as cenas para nós à medida que íamos filmando. Foi a forma de ele aproveitar a energia daquilo que ia sendo feito para a escrita.
Nesses traços gerais, o que é que te foi contado? O que é que sabias da história?
Que era uma artista refugiada de um escândalo sexual, que havia esta miúda que tinha acabado de sair da prisão e que a história seria sobre estas duas personagens solitárias que se encontram.
E como é que compuseste a personagem só a partir disso, sem texto?
É uma coisa muito de energia. Estabeleceu-se uma relação de confiança muito bonita entre nós os dois: ele confiou em mim para fazer este personagem, que é forte e grande, e eu confiava absolutamente nele ao, apesar de não saber que filme é que ele tinha na cabeça nem como é que as coisas se iam desenhar, quando me pedia para fazer uma coisa, eu tentava chegar exatamente àquilo que ele me estava a pedir. Sem medo, sem travar ou sem estar a tentar com o meu intelecto chegar à minha proposta ou ao que eu achava que devia ser. A única coisa que tentei fazer mais foi, neste buraco de solidão em que por vezes mergulhamos, encontrar uma compensação qualquer na questão de algum abuso de poder de uma mulher sobre outra: o ‘gosta de mim para eu estar melhor’, ‘fica perto para eu estar melhor’, esse tipo de compensação que, em maior ou menor escala, todos procuramos. Achei que assim poderia dar [à história] um twist um pouco mais perverso, para não ser só as duas meninas que se encontram. Para ser uma coisa mais de tapar um buraco ‘intapável’.
A própria história acaba por evoluir de forma um pouco perversa depois, com o crescendo de tensão entre elas.
Desses detalhes da entrada de outros personagens eu não fazia a mínima ideia. E não sabia também como é que ele ia contar depois a história na montagem. Até fiquei um bocado surpreendida.
Sentes que a forma como ele foi escrevendo vinha também daquilo que vocês as duas lhe iam dando durante a rodagem?
Para a história, em si, não, a história ele tinha na cabeça. Acho que teve muito a ver com a energia da rodagem, com o tudo ou nada do arriscares e dares, confiando que de uma forma qualquer vai resultar. Que, melhor ou pior, tem que resultar. Uma energia que vinha de as coisas estarem a acontecer e estarem a acontecer de facto, de as emoções não estarem numa zona cinzenta. Ela é uma mulher de picos, como o Dennis é um homem de picos. Foi tudo muito intenso [risos].
Sentes foi sobretudo essa verdade a que conseguiram chegar a maior vantagem deste tipo de processo, como outras formas de trabalhar têm também outras vantagens?
Todas. Em todas há uma zona de embate qualquer numa coisa que não sei fazer ou que não consigo ou encontro uma insegurança e é a partir daí que depois me reconstruo. Que coso os meus pedaços e lido com isso. A vida é crescer, aprender a crescer.
Esse lugar a partir do qual dizes que te reconstróis é um lugar em que gostas de te encontrar?
Gosto de ter que lidar com dificuldades. Um projeto marca-me mais quando me permito estar em dificuldade, quando me permito ser confrontada com inseguranças, com coisas que não sei fazer ou sair de uma zona de conforto e não faço ideia do que estou a fazer. Tive muito essa impressão durante esta rodagem, do ‘não faço ideia do que estou a fazer’. E sou um bocadinho control freak, mas, ao mesmo tempo, estava perfeitamente à vontade com o ter perfeita noção de não saber qual seria o resultado. Uma coisa é fazer uma cena daquelas com quatro planos. Nós fazíamos 30, porque ele filma de todos os ângulos, com todas as lentes, com movimentos de câmara diferentes, escalas diferentes.
Isso só com uma câmara?
Com uma câmara, sempre a repetir, o que nos permitia descobrir muito através da repetição. Como não eram cenas curtas, eram cenas longas e intensas, nunca me cheguei a instalar numa repetição justa. Estava sempre em variações, trabalhámos mesmo a uma velocidade alucinante. No fim, de 20 takes com escalas completamente diferentes ele pode contar aquela cena de várias formas. Eu sabia que aquilo batia certo na intenção da personagem que estava a fazer, mas não sabia exatamente como é que ela ia ser construída e cosida por ele.
Estás a atravessar uma fase de uma série projetos em cinema e, além disso, acabas de te estrear na realização, com o Felipe Bragança.
Como é que já sabes disso? Anunciaram hoje [16 de janeiro] a seleção para Roterdão. E para a semana vamos estar com o filme na Mostra de Cinema de Tiradentes [em Minas Gerais, Brasil].
Mas como é que tudo aconteceu?
Absolutamente por acaso. Não era uma ambição concreta. Sinto-me bem como intérprete. Claro que há uma maturidade que adquires ao exercer que te dá vontade de criar a partir do teu ponto de vista, de ter uma autonomia criativa que como intérprete não tens, mas gosto muito de ser intérprete. Sinto-me muito bem a tentar perceber a cabeça de quem me dirige, sendo um instrumento para o sonho de alguém. Isto aconteceu porque fez sentido, porque encontrei uma equipa que funciona e com a qual foi fácil arriscar-me a fazer aquilo que nunca fiz. Conheci o Felipe Bragança no Animal Amarelo, que é uma coprodução d’ O Som e a Fúria com o Brasil [ainda em fase de pós-produção]. Estávamos a tentar resolver umas questões de direitos para uma letra de uma canção que eu ia cantar e, como não conseguimos agilizar as coisas a tempo da rodagem, decidimos escrever nós uma letra. Escrevemos juntos — eu não escrevo — e funcionou. Então decidimos fazer um filminho assim de guerrilha juntos, a escrever juntos, em que entro também como atriz. Fomos compondo a ideia à distância, por email, entretanto fui lá passar um tempo, filmámos, e depois voltei para a montagem. Estive lá a acompanhar as fases todas.
Para lá do título, Tragam-me a cabeça de Carmen M., não encontrei absolutamente mais nada sobre o filme. Queres falar um pouco sobre ele?
O filme é uma aventura poética experimental à roda da ideia de um Brasil que está… enfim, não é um filme a contar historiazinha.
Mas é um filme político.
É, exatamente. É um filme feito durante a campanha, feito agora, em junho de 2018. Estava a conhecer o Brasil de perto e esta foi também uma maneira de absorver o país. É um filme poético mas urgente, um filme para ser feito agora, para ser feito já.
Quando decidiram escrever e realizar este filme juntos, já sabiam o filme que iriam fazer?
Não. Partiu de uma ideia muito vaga que veio de coisas que andava a pesquisar que tinham a ver com música — com o samba, a ideia de como se construiu a identidade do Brasil no turbante da Carmen Miranda. Tudo aquilo que vemos como postal que é aquilo que quando vêm os sistemas ou momentos mais repressivos querem cortar: ‘não dancem’, ‘não façam barulho na rua’. É um ensaio, a partir de uma ideia de uma atriz que está no Brasil a fazer de Carmen Miranda.
E agora?
Agora tenho filmes dos outros para filmar.
Pode dizer-se que este filme veio da música — dessa pesquisa, da letra que escreveram juntos — que é o lugar de onde também tu vieste.
Sim, fiz formação musical desde pequenina e portanto, sim, podemos considerar que comecei pela música. Estudei violoncelo, andava num coro infantil…
Fizeste óperas.
No São Carlos e no Coliseu, antes das obras, quando tinha uma boa acústica para se fazer ópera. Falstaff, Carmen, Tosca, La Bohème…
Isso tudo com que idade?
A partir dos 7, 8. Não era todos os anos, talvez de dois em dois. Depois comecei a estudar canto, a ter aulas de técnica de voz mesmo. Tinha 15 anos, que é a idade em que dá para começar a trabalhar a voz, depois das mudanças da adolescência, e comecei a trabalhá-la mais a sério. E a experimentar teatro amador: fui para o atelier de teatro da escola, o Liceu Francês, para começar a trabalhar o corpo. Numa lógica de trabalhar personagens, de saber estar em palco.
Tudo a pensar na ópera ainda?
Sim, pela questão do espetáculo total, da presença, da personagem. Não queria ser atriz. Mas, pronto, descobri o teatro e a partir daí não quis outra coisa. Fiz dois anos desse atelier, depois comecei a ter aulas de corpo…
E como é que daí foste dar à televisão, no teu primeiro trabalho, o Só Gosto de Ti?
Fiz um casting. Estavam à procura de uma atriz mais ou menos com a minha idade para fazer de filha do meu tio [José Wallenstein] e eu fui. Fiz o casting e depois foi todo o número de circo de negociar contratos sendo menor e estando na escola. Estava a fazer o 12.º ano, não fui à viagem de finalistas porque tive que ficar a estudar para os exames, mas depois foi tudo certo: fiz as provas para a Escola Superior de Teatro e Cinema e entrei.
E foste estudar.
Claro.
É uma área em que muita gente a quem essa oportunidade de um trabalho em televisão aconteceu acabou por não estudar depois.
A mim não me aconteceu, eu escolhi. Sempre quis fazer formação. A ideia de fazer um trabalho em televisão foi sabendo que seria curto no tempo, confinado àquela experiência, para ter aquela experiência. Foi uma das promessas que fiz aos meus pais: faço isto, mas vou fazer formação. Porque eles arregalavam-me os olhos e diziam ‘mas depois vais ficar a trabalhar de seguida e…’, e eu dizia: ‘Não. Eu quero estudar.’ Qualquer que seja a escola, melhor ou pior, é fundamental passar por esse túnel de experiências condensadas. Não há nada melhor para um ator do que passar por experiências. Muitas, e a formação condensa experiências. Todas elas: das de resistência às de rejeição, as de competição. As questões de estilos diferentes, de épocas diferentes, mais texto, mais corpo… Passar por uma escola é absolutamente formador. Depois é continuar a aprender e, de preferência, nunca deixar de aprender para o resto da vida.
E foste para Paris depois.
Fui para Paris também nessa lógica de experimentar.
Qual é a razão para teres estudado no Liceu Francês?
Há uma lógica familiar por trás de termos todos estudado no Liceu Francês que teve a ver com durante o Estado Novo ninguém da família querer ter os filhos nas escolas do regime. Criou-se ali uma tradição e tanto o meu pai como a minha mãe lá andaram — o meu pai menos tempo, a minha mãe fez a escolaridade toda lá, como eu e o meu irmão. Para além disso, é um ensino fabuloso: acho a exigência muito boa, acho a forma de ensinar muito sagaz, por nos ensinar a pensar, a construir pensamento, és bilingue desde pequenina, conheces pessoas de todas as religiões e de todo o mundo, tens amigos filhos de pais expatriados que viajaram por todo o mundo e que chegam a contar, aos 9 anos, como é que é viver na Índia. Foi muito rico, tive muita sorte. Mas, sim, veio de uma questão política.
Que faz sentido da forma como explicaste, porque a tua mãe é descendente do Afonso Costa, não é?
Sim.
De volta à tua ida para Paris…
Fui para Paris, que era uma coisa bastante natural. Talvez 60% dos meus colegas do liceu tenham ido estudar para França, era uma coisa meio natural no percurso dos estudantes do Liceu Francês. Para mim não foi porque eu queria fazer teatro e tinha cá a Escola Superior de Teatro e Cinema. E o teatro é absolutamente dependente da língua. Queria começar a fazer teatro na minha língua materna.
Absolutamente dependente da língua mesmo para ti?
Sim, é sempre diferente. E temos um país onde temos uma tradição de teatro bonita, onde há coisas para aprender e coisas para fazer. Fui para o conservatório de Paris como complemento, mas não me passou pela cabeça ir logo estudar para França. Sou portuguesa, havia a escola de teatro, montes de gente já tinha ido, estava num meio em que era normal ir, com os amigos do tio Zé e os vários amigos das artes. Acabei a escola e fui, não teve grande ciência. E fui sempre encorajada a fazer o que quisesse fazer, não houve nada aquela coisa do ‘não sejas artista como nós’, nada: ‘É isso que queres fazer? Faz. Estuda. Trabalha.’ Fui muito encorajada e acompanhada, mas também não muito protegida. Sempre me ensinaram que era preciso trabalhar, ir à luta, aprender, pôr-se em causa.
Esta fase em que estás de que falávamos há pouco lembra-te aquele período em que o Manoel de Oliveira decidiu que ias ser tu a rapariga do Singularidades de uma Rapariga Loura [2009]?
São fases. Nessa altura tive uma data de trabalho em cinema, depois houve uns anos em que fazia mais teatro…
Houve uma altura em que muita gente passou a ter menos trabalho em cinema, não apenas tu.
Estivemos sem Ministério da Cultura, não é? E estivemos sem apoios, depois entraram os apoios mas começaram a não ser distribuídos. Depois houve assim uma leva de filmes de homens, com protagonistas homens e histórias de homens, filmes em que a mulher não é uma coisa de eixo, tive essa impressão. Entretanto eu também estava naquela idade da menina-mulher, que ainda não é adulta, não é mãe… Acho que continuo a ter cara de miúda, mas há uma maturidade qualquer que se ganha e sinto que ganhei outra força, naturalmente. O tempo passa por nós e vamos adensando um pouco.
Mas não tens deixado de fazer nenhum tipo de trabalho. Nem novelas, apesar de teres um currículo com mais projetos em cinema do que em televisão.
Sim, não deixo de fazer as minhas aparições em televisão, umas participações mais curtas. A ideia de estar oito meses seguidos num projeto assusta-me um bocadinho porque é muito tempo. Dá-me uma certa angústia porque perco oportunidades para experimentar registos diferentes e várias coisas.
Nessa lógica de diversificação de registos, a experiência televisiva, das novelas, dá-te o quê?
É uma experiência da rapidez, que continuo a não dominar. Há uma plasticidade e uma capacidade de adaptação que se desenvolve a fazer televisão que continuo a achar difícil, mas que hei de aprender. Estou agora n’ A Teia, da Plural. Ainda não estou no ar, estou a gravar.
É uma personagem pequena?
Vai ficar algum tempo, parece-me.
O não quereres ficar demasiado presa à televisão tem mais a ver com a questão da duração dos projetos, não necessariamente com estares a fazer um trabalho que, sendo válido também, é para todos os efeitos um produto de consumo, não propriamente um objeto artístico?
Ficar tanto tempo presa num produto de entretenimento faz-me alguma confusão também. É uma coisa associada à outra. Faz-me confusão que se misture cultura com entretenimento, tanto para o público em geral como no planeamento das políticas culturais. É importante que não se veja sempre a cultura como algo que vai dar lucro. Nesta era da rapidez, confunde-se muito as duas coisas e é uma coisa que me chateia. A cultura não tem que ser sempre entretenimento, não serve só para nos fazer passar um bom bocado. O lado importante disto de sermos ativistas da emoção quando trabalhamos nas artes é que, ao estarmos a sentir, estamos a fazer os outros sentir, questionarem-se, espelharem-se, reagir contra, definirem-se por oposição, chorarem, rirem-se, distraírem-se ou absterem-se e durante 10 minutos não fazerem ideia do que se está a passar, o não se conseguir perceber se se gostou de um filme. Tudo isto são coisas importantes, não é só o estar muito entretido e ter um produto muito rápido e muito plástico para nos distrair. Às vezes distrairmo-nos de nós é exatamente o contrário: é termos acesso a outras partes de nós, a outros ecos que a gente não conhece. E a cultura é fundamental para isto sobretudo nesta altura em que temos menos tempo para tudo. Para nos olharmos nos olhos, para nos ouvirmos.
Poder contribuir para isso é também o que te move?
Encontro este papel na cultura sobretudo como espetadora, não tanto enquanto agente. Fazer, gosto imenso de fazer, aprendo imenso sobre mim e os outros e divirto-me. A mim alimenta-me muito ver coisas e ver espetáculos de que gosto, de que não gosto, não vou ver uma coisa para a odiar, não. Acho fundamental ver pessoas a trabalhar, generosamente, a descobrirem coisas, a pensar sobre o mundo. Não tenho a ilusão de que fazemos as coisas ou de que nos bastamos sozinhos.