O caso não é de agora, mas esta semana voltou a circular nas redes sociais. É verdade ou não que comer esparguete pode ser fatal? O caso remonta a outubro de 2008 e foi relatado num artigo científico publicado em dezembro de 2011, sendo descrito como uma “intoxicação letal”. Um homem de 20 anos ficou doente depois de comer um resto de esparguete que tinha cozinhado cinco dias antes. Ouvida pelo i, Paula Teixeira, especialista em microbiologia, diz que este é um caso raro, mas há lições a tirar.
O relato do caso foi publicado na revista científica “Journal of Clinical Microbiology. Depois de cozinhar esparguete, o jovem belga deixou-o à temperatura ambiente sem nunca o colocar no frigorífico. Ao quinto dia, ao regressar a casa da universidade, serviu-se de uma porção, aqueceu-a no micro-ondas e colocou molho de tomate por cima. Depois de comer saiu de casa para ir para as atividades desportivas que frequentava, mas a saída foi por pouco tempo: cerca de 30 minutos depois, o jovem estava de volta a casa, devido a “dor de cabeça, dor abdominal e náuseas”. Ao chegar a casa, “vomitou abundantemente” durante várias horas. Mais tarde, à meia noite, foi por duas vezes à casa de banho e teve dois episódios de diarreia aguda.
Enquanto se debatia com os sintomas não tomou qualquer medicação, tendo apenas bebido água. Adormeceu já depois da meia noite. De manhã, os ponteiros marcavam já as 11 horas e os pais estranharam que o filho continuasse a dormir. Decidiram ir ao quarto e encontraram-no morto.
A autópsia, feita cinco dias depois da morte, indicou que o jovem terá morrido durante a noite, pelas quatro horas da madrugada, cerca de 10 horas depois de ter comido o esparguete. Revelou ainda sinais de necrose no fígado, mas não foi possível determinar a causa de morte “exata” porque “a interpretação dos elementos descobertos foi muito difícil devido ao atraso na realização da autópsia”, lê-se no artigo. A partir de amostras fecais foi possível verificar, contudo, a presença de Bacillus cereus, uma bactéria na base de intoxicações alimentares. A par da bactéria foi encontrada também uma toxina que lhe está associada: a cereulide.
Os peritos que analisaram o caso relatam que foram recolhidas amostras do esparguete e do molho consumidos pelo jovem: enquanto o esparguete deu positivo para a presença da mesma bactéria, não foram encontrados vestígios de Bacillus cereus no molho. O que terá então acontecido? “Ainda que não seja possível incriminar a Bacillus cereus como a causa de morte direta e única, o presente caso ilustra a severidade dos sintomas eméticos (que provocam o vómito) e diarreicos e a importância de refrigeração adequada de alimentos confecionados”, notam os autores do artigo científico, que acrescentam que a produção da toxina cereulide “está intimamente ligada à temperatura”. Por isso, concluem que “o largo número de Bacillus cereus e a concentração significativa de cereulide encontrados na comida são a causa de morte mais provável deste jovem saudável”.
A importância de refrigerar os alimentos O caso que agora voltou às redes sociais é um alerta para a importância de refrigerar os alimentos confecionados. No entanto, a docente e investigadora da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa no Porto, Paula Teixeira, explica ao i que “não há motivo para alarme” e que “os casos em que a bactéria está associada a morte são muito poucos”. E de facto, no artigo publicado no Journal of Clinical Microbiology é referido que apenas outros “quatro casos fatais atribuídos à cereulide” estão reportados na literatura científica. O i procurou registos de casos fatais em Portugal, mas não encontrou nenhum.
“Este caso que agora emergiu nas redes sociais foi uma situação extraordinária. Há casos relatados, vêm nas estatísticas alguns casos de morte, mas na minha carreira nunca tinha ouvido falar de morte por Bacillus cereus, principalmente num indivíduo saudável”, diz Paula Teixeira. De acordo com a especialista, “as toxi-infeções [doenças causadas por ingestão de alimentos contaminados] às vezes têm desfechos mais graves, mas é normalmente em indivíduos de risco, que têm algum tipo de doença ou fator de predisposição”. Idosos – cujo sistema imunológico está já debilitado -, crianças pequenas, pessoas sujeitas a tratamentos oncológicos, transplantados e grávidas são, segundo Paula Teixeira, os grupos de risco.
Que bactéria é esta e donde aparece? A Bacillus cereus está presente no solo e, por vezes, “os processos de confeção podem destrui-la, mas podem não ser completamente eficazes para destruir as estruturas de resistência, chamadas esporos, produzidas pela bactéria. E essas estruturas podem dar origem a nova bactéria, o que se designa como processo de germinação”, esclarece a investigadora.
Em caso de germinação, é necessário garantir que a bactéria não vai ter “possibilidade de se multiplicar”, continua Paula Teixeira, que precisa que “a doença que é causada não é pela bactéria em si, mas por uma toxina que ela produz, e para que essa toxina seja produzida a bactéria tem de se multiplicar”. E existe alguma forma de prevenir que isso aconteça? “Para se multiplicar, a bactéria precisa de condições adequadas, nomeadamente de temperatura. No caso do jovem de 20 anos, a intoxicação aconteceu devido a um alimento que ficou à temperatura ambiente. A bactéria teve possibilidade de se reproduzir e multiplicar, produzindo assim a toxina, que é resistente ao calor e portanto, durante o reaquecimento no micro-ondas, a toxina não foi destruída. Foram as más condições de armazenamento que permitiram que a bactéria se multiplicasse e produzisse toxina, e a toxina causou então a intoxicação”.
A especialista nota que “este caso é de facto invulgar”, porque “a toxina registou uma presença muito acima daquilo que tem sido encontrado em situações de intoxicação alimentar, e isso está relacionado com a própria bactéria: é como os seres humanos, nós não somos todos iguais apesar de sermos da mesma espécie, e nas bactérias é a mesma coisa, são todas da mesma espécie, mas algumas têm maior capacidade de crescimento e de produção de toxinas, por exemplo”.
Paula Teixeira alerta por isso para a importância da “manutenção da cadeia de frio”, considerando-a mesmo “fundamental em qualquer fase do processo, quer seja nas lojas ou em casa”.
A investigadora alerta ainda para comportamentos relativamente comuns que importa mudar: há quem “ache que pode guardar as sobras de arroz ou esparguete à temperatura ambiente, no forno ou em cima do fogão. E o arroz, em particular, é um dos alimentos com maior probabilidade de conter a bactéria, permitindo assim a germinação e a produção da toxina”. A par do arroz, esclarece, “a bactéria também está muito associada a cereais”. E no casos de massas? “Pode ocorrer, especialmente nas massas frescas, mas a probabilidade é menor porque já foram mais processadas” do que, por exemplo, o arroz.
Para que não restem dúvidas, a especialista resume a questão a uma regra: “Nós, os microbiólogos, temos uma regra, a chamada ‘regra das duas horas’: os alimentos confecionados não devem ficar à temperatura ambiente mais de duas horas. Devem ser arrefecidos rapidamente e colocados no frigorífico. Se não quisermos consumir de imediato mas quisermos manter quente, também podemos fazê-lo, mas com uma temperatura na ordem dos 75ºC, para garantir que não há multiplicação não só desta bactéria em particular, mas de todas em geral”. A professora acrescenta, de resto, que a regra é seguida por empresas do ramo do catering.
Paula Teixeira deixa outro aviso: prevenir é o melhor remédio, mas em caso de sintomas graves, é necessário contactar o médico.