Tarde de sexta-feira, 14 de maio de 1982. Com as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) de 2022 oficialmente marcadas para Lisboa, Marcelo lembrou que a grande missa do Parque Eduardo VII na primeira visita de João Paulo II a Portugal foi um dos momentos que inspirou o Papa a criar as JMJ em 1985. A história podia ter sido diferente: no dia anterior, João Paulo II – que estava em Portugal para agradecer a proteção de Nossa Senhora no atentado na Basílica de S. Pedro um ano antes – é ameaçado de novo em pleno santuário de Fátima por um homem com um sabre, mas nem se apercebeu e abençoou-o enquanto este era levado pela polícia. O padre Juan Krohn, que via em Karol Wojtyła um comunista infiltrado na cúria – foi detido, o Vaticano desvalorizou a falha de segurança (o sacerdote espanhol viria a ser condenado a sete anos de prisão por tentativa de homicídio) e o programa prosseguiu, mantendo a missa no centro da capital, num evento de uma dimensão nunca vista antes. Teve ‘atiradores especiais’ colocados de véspera na imediações e, do lado dos bombeiros, a operação também era descrita como inédita, relataram na altura os jornais. «41 automacas estrategicamente dispostas, apoiadas por 29 piquetes de maqueiros e cinco postos fixos».
Participaram meio milhão de pessoas, a maioria jovens vindos de todo o país. Junto ao palco, todos os órgãos de soberania, encabeçados por Ramalho Eanes e Francisco Pinto Balsemão, Presidente e primeiro-ministro. A enchente é descrita com graça pelo Diário Popular. «Muito difícil conquistar sombra, complicadíssimo fazer chichi: casaco estendido e costas a tapar, e os apertados aviam-se de urgência», relatou o repórter João Paulo de Oliveira.
A par do entusiasmo dos participantes, entre eles «escuteiros-aguadeiros numa roda vida», destaque para a autêntica feira de souvenirs de quem teve olho para o negócio. «Bonés, gorros, cones de cartolina e até barretes camuflados de caçador estiveram à venda na periferia do parque. Inclusivamente, para quem quisesse despender de 200 escudos, uma carrinha aberta punha à venda aqueles cómicos guarda-sóis de varetas que se fixam à cabeça com um elástico». Para ‘acautelar’ o estômago havia bancas de comes e bebes na rua Braamcamp, inclusive de sardinhas assadas. Passam 37 anos e os pormenores são uma viagem no tempo. «Vinte escudos valem um retrato de João Paulo II (’plastificado, para durar toda a vida’ – sublinha a vendedora) bonés, t-shirts, bandeirinhas, galhardetes.»
A missa-festival
A mancha humana começou a formar-se pela manhã e o evento arrancou às 14h, com atuações de grupos de jovens de diferentes zonas dos país, representados por cores, numa espécie de festival. João Paulo II chegou ao Parque Eduardo VII depois das 17h, num jipe branco. O altar num palco montando no topo do parque dava-lhe vista até ao perfil da serra da Arrábida, num dia particularmente limpo. Aos jovens que o esperavam, falou de vocações, já na altura uma das dificuldades reconhecidas pela igreja. «As comunidades cristãs precisam de sacerdotes que as alimentem com a palavra», disse, deixando um último apelo. «Rapazes e raparigas de Portugal: levantai os olhos e vede a seara loirejante para a ceifa, à espera de braços para o trabalho». Referência bíblica possivelmente marcada pela passagem logo no início da visita ao país por Vila Viçosa, onde esteve com trabalhadores rurais e defendeu salários justos. O país estava a passar por um momento de tensão social crescente, com várias greves (e greve geral a 11 de maio) a chegar a interromper o fornecimento de gás em Lisboa.
Da missa, ficou uma imagem alegre e transformadora, lembrada nos últimos dias por jovens de então como o social-democrata Carlos Carreiras. «Esse mês de maio é inesquecível, formador, duradouro», escreveu no i. «O momento que mais me marcou foi a missa campal no Parque Eduardo VII. Pela comunhão de alegria, de devoção e de crença. Pela afirmação de que a fé católica e a liberdade, num país que nela dava os primeiros passos, não só vivem em harmonia como se reforçam mutuamente. Aquela missa campal foi, para mim, o princípio da reconciliação. E foi também um marco para os jovens de então e para toda a comunidade, naquilo que viria a constituir-se como um movimento de profunda transformação da sociedade portuguesa».
Voltando ao Diário Popular, os cliques ainda eram de máquinas fotográficas mas já havia quem lutasse pelos direitos dos amigos de quatro patas. «Palmas para o cardeal patriarca, palmas para o papa. Acólitos apontam binóculos ou máquinas fotografias a João Paulo II; não resistem mesmo a empoleirar-se nas cabinas da rádio. À direita do altar, uma italiana atrai atenções, distrai devoções. Exibe uma cadela ‘representante do reino animal’ e garante que o papa abençoou o bicho.»