A informação estava esta sexta-feira em destaque no portal do Hospital da Luz de Lisboa: «Sem serviços convencionados com a ADSE a partir de 15 de abril». Mais escondida, também podia ser encontrada no site da CUF: «Irá suspender a convenção existente com a ADSE para a prestação de cuidados de saúde aos seus beneficiários, a partir de 12 de abril de 2019». Contactando as unidades, forneciam até os novos preços que a partir de abril estarão disponíveis para os beneficiários. Mas depois de uma semana de tumulto no subsistema dos funcionários públicos, o cenário não parece ainda definitivo.
A ADSE diz não ter recebido qualquer comunicação de suspensão ou denúncia de convenções, apenas de agendamentos, e promete diálogo, na expectativa de chegar a bom termo e evitar denúncias de suspensões, disse ao jornal i a presidente Sofia Portela. Já a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHA), que tem criticado a indisponibilidade do instituto público para negociar condições que os parceiros privados considerem sustentáveis, foi recebida pelos grupos parlamentares e admitiu que ainda há espaço para recuo.
O grupo José de Mello Saúde, dono da rede CUF, foi o primeiro a comunicar a suspensão das convenções com a ADSE a partir de 12 de abril. Horas depois, a Luz Saúde fez o mesmo, anunciando a suspensão de convenções a partir de 15 de abril. O cenário de rutura ganhou forma nos últimos meses e a gota de água no relacionamento entre a ADSE e os grupos privados de saúde de maior dimensão foi o pedido de devolução de 38 milhões de euros a título de regularizações retroativas de pagamentos feitos pelo instituto às empresas em 2015 e 2016.
Em causa estavam regras implementadas pelo subsistema em 2014, que permitem corrigir pagamentos no final do ano com base, no caso de cirurgias, nos valores médios mais 10% praticados na rede de convencionados para o mesmo procedimento. Já no campo dos medicamentos oncológicos e dispositivos médicos, a ADSE apura para cada produto o valor mínimo a que foi faturado e usa esse valor para exigir a devolução dos montantes pagos acima desse preço aos demais prestadores. As regras foram contestadas desde a primeira hora pelos grupos privados. No final de 2018, na sequência de um parecer pedido à Procuradoria Geral da República – ao qual os privados contrapõem um parecer do constitucionalista Vital Moreira que declara os pedidos ilegais – a ADSE acabou por exigir o pagamento de 38 milhões de euros, 80% dos quais a cinco grupos: Luz, José de Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e Hospital Privado do Algarve.
Contestado por todos, formalmente só Luz, José de Mello Saúde e Lusíadas concretizaram a intenção de suspender convenções – o grupo Lusíadas fê-lo um dia depois dos primeiros, mas sem avançar uma data. Em comunicado, o conselho de administração afirmou estar a «analisar opções para a cessação das atuais convenções existentes com a ADSE». Além das regularizações retroativas, os privados contestam a tabela de preços da ADSE, que consideram estar desatualizada. Em comunicado, o grupo José de Mello Saúde apontou ainda os prazos de pagamento praticados pelo instituto. «Desde o início de 2018, as unidades da rede CUF são obrigadas a faturar todos os atos à ADSE em sete dias, sendo o prazo de pagamento de 120 dias […] Na prática, o prazo médio de pagamento às unidades CUF situa-se atualmente em 283 dias após a prestação do ato clínico ao beneficiário. Trata-se de um prazo manifestamente penalizante», refere o grupo.
Da tensão à promessa de diálogo
O tema acabou por aquecer o debate político. Os partidos à esquerda acusaram os privados de chantagem, o CDS acusou o governo de estar a destruir a ADSE e o PSD situou-se algures no meio: «Se há da parte do Governo alguma estratégia no sentido de dificultar tanto, tanto, que a ADSE acaba, acho que são suicidas, nem estão a ver bem o que estão a fazer. Se há da parte do Governo preocupação de negociar no sentido de acabar com os abusos que sempre houve, então estão a ver bem a questão e devem ir por esse caminho», disse Rui Rio.
O Presidente da República apelou publicamente ao bom senso, apontando dois desfechos a evitar. «A ADSE é muito importante, não interessa que entre em crise, no sentido de as pessoas deixarem de acreditar – uma vez que é facultativa – nela e, por outro lado, que não haja a preocupação de não haver uma alternativa que evite a sobrecarga do SNS».
O conselho de supervisão da ADSE, que tem sido firme na ideia de que importa controlar as despesas do subsistema, também apelou ao «diálogo urgente» e os sinais de reabertura do canal de conversação, que a APHA diz estar fechado desde outubro, começaram a surgir. Mas o desfecho não seja claro. Segundo o SOL apurou, até à hora de fecho desta edição não havia qualquer reunião marcada com os grupos que comunicaram a suspensão das convenções. As empresas não têm prestado esclarecimentos além dos comunicados.
A presidente da ADSE assumiu que a regra de regularizações retroativas é transitória: incide sobre atos e produtos que até aqui tinham preços abertos e a intenção do instituto é fechar uma tabela que defina preços máximos para tudo, retirando assim imprevisibilidade à operação dos privados. Mas os preços que têm estado em cima da mesa são contestados pelas empresas, que alegam que estão, em alguns casos, abaixo do custo.
O primeiro-ministro garantiu que haverá negociação, mas com limites. «Não queremos explorar nenhuma entidade privada – não é essa a visão que temos – mas também não podemos aceitar posições abusivas, como aquelas que já foram, no passado, identificadas pelas autoridades judiciárias, e que impuseram aliás à ADSE o dever de recuperar o que foi indevidamente pago», disse António Costa. Para a próxima terça-feira ficou marcada uma reunião do conselho geral de supervisão da ADSE com a ministra da Saúde.
Cartel? AdC diz que é prematuro pronunciar-se
A sucessão de anúncios – além da ADSE, a José de Mello Saúde e a Luz Saúde também comunicaram a suspensão de convenções com o subsistema de saúde das Forças Armadas – acabou por ter um segundo plano de leitura: terão agido concertadamente? A questão foi suscitada por um artigo de opinião publicado no Expresso pelo jurista Marco Capitão Ferreira. «Uma empresa privada na área da Saúde é livre de querer ou não continuar a manter o acordo com a ADSE. Mas o que assistimos nos últimos dias foi muito diferente. Foram diversas empresas privadas, em perfeita consonância de posição negocial, exercerem um poder de mercado conjunto como forma de pressão negocial. […] Isto tem um nome e é ilegal: é um cartel», escreveu.
Questionada pelo jornal i, a Autoridade da Concorrência informou que «neste momento é prematuro pronunciar-se sobre este assunto». Em entrevista ao mesmo jornal, a presidente da ADSE não quis comentar nem responder se via no desenrolar dos acontecimentos ao longo da semana uma forma de chantagem, como classificaram PCP e BE. À TSF, Sofia Portela chegou, porém, a admitir que esta poderia ser uma forma de «condicionar as negociações» usando os beneficiários.
Também questionado sobre o cenário de cartel, o primeiro-ministro não respondeu se considera que neste caso isso sucedeu, afirmando que, a haver uma atuação em cartel, «seria uma grosseira violação da lei da concorrência», disse, citado pela Lusa.
A ADSE tem 1,2 milhões de beneficiários. A Luz Saúde revelou que apenas aos seus serviços recorrem cerca de 250 mil. Sofia Portela não revelou o número de beneficiários que costuma recorrer aos grupos que esta semana anunciaram estar de saída da rede convencionada, mas reiterou a ideia de reforçar a cooperação com hospitais das misericórdias ou unidades como o Hospital da Cruz Vermelha. Também a Fundação Champalimaud admitiu ter disponibilidade para absorver doentes, avaliando o relacionamento com a ADSE como «perfeitamente normal».