Naquela altura, era certamente impossível de cozinhar a ideia de que poderia nascer ali uma paixão que fosse resultar numa oportunidade de negócio. Hoje, com 40 anos, já abriu seis restaurantes em Lisboa, é autor de dois livros – Comer o Mundo e Jantaradas -, e é frequente vê-lo em programas de televisão, como foi o caso de o Chefs’ Academy, Cook Off e Masterchef Portugal. Mais recentemente venceu um concurso de cozinha que desafiava os participantes a criar uma ementa que fosse exequível de confecionar numa futura missão a Marte. A polémica que entretanto estalou à volta do ‘La Patata Marciana’, que afasta, parece mesmo ser do outro mundo. Mas uma coisa é certa: o sucesso alcançado até aqui só foi possível por ter mantido sempre os pés bem assentes na terra. Viver com alegria, em equipa e com vontade de querer fazer melhor são três regras básicas no seu dia-a-dia. 3, 2, 1… chef Kiko.
O que tem a dizer sobre a polémica instalada em torno da vitória no concurso ‘La Patata Marciana’?
Nunca tinha passado por nada assim! Obviamente o concurso existiu e eu ganhei. O mesmo era promovido pelo Centro de Astrobiología em Madrid (afiliado da NASA), onde trabalham 1500 pessoas. Trabalhei durante três meses intensivos com cientistas portugueses para ganhar e ganhei!
Acha então que a notícia, que, passo a citar, afirmava que este concurso ‘nunca existiu’, tem algum fundamento?
Nenhum!
Ficou magoado? Olha para a situação como um ataque pessoal?
Fico triste, sim! Penso que sim… mas não quero entrar por aí! Tenho muito para me preocupar e muito para fazer acontecer! Não é isso me vai abalar! Muito pelo contrário! Dá-me força para fazer mais e melhor amanhã e continuar a inovar!
Como surgiu a ideia de participar neste concurso?
Isto aparece no seguimento de um convite de uma pessoa que conheci e que já não via para aí há uns 15 anos, o Nuno Chabert, que tem a plataforma ‘bit2geek’. Ele apareceu e convidou-me. Inicialmente pensei que fosse uma mentira, assim uma coisa de risota. Não levei isto muito a sério, mas depois fui à internet e percebi que havia uma credibilidade muito grande por trás disto tudo. Decidi entrar há uns quatro ou cinco meses, juntamente com o apoio técnico do Nuno e de outros cientistas.
Em que é que se inspirou até chegar à ementa final?
Foi muito desafiante. Eu sei lá se isto algum dia será cozinhado em Marte, nem sabemos se vamos lá chegar, não é? Existem tantos ‘ses’ no meio desta novela. Mas a verdade é que foi uma receita pensada para que um dia possa ser cozinhada lá, de acordo com todas as limitações. O mais provável é que nem seja cozinhada, mas foi uma grande alegria para mim e fiquei muito contente quando ganhei. Era um concurso que valorizava tanto a parte estética como a parte do sabor, e, ainda, a explicação científica. Principalmente o sabor e a parte científica, que era mais preponderante do que propriamente a da cozinha. Isso deixou-me muito contente porque a minha receita foi realmente muito bem pensada para corresponder às exigências técnicas.
Quão complicado foi ter que aliar todos esses fatores?
Enviar comida para um planeta onde nunca fomos, mas que sabemos que essa viagem demora uns quantos meses para lá chegar e que neste processo da viagem as coisas podem estragar-se – é preciso desidratar, liofilizar e garantir ingredientes que aguentem este tipo de viagem. Depois é preciso pensar que o tempo de cozinha que um astronauta dedicará no espaço é caro. O tempo de estadia de um astronauta, seja numa plataforma espacial, em Marte ou na lua, tem um preço muito alto. Ou seja, é um custo muito elevado de preço por minuto e portanto tem de ser uma coisa que se faça rapidamente, mas que tenha alguma parte de cozinha. Também é bom o astronauta, a tantos quilómetros de distância, poder sentir-se um bocadinho humano. Por isso, e jogando com tudo isto, saiu-nos a vitória, e foi uma alegria muito grande.
E assim surgiram os bolinhos de bacalhau…
A primeira coisa em que pensei foi que gostaria de enviar para Marte sabores portugueses. Parti da cebola, do alho e do azeite. Depois tentei perceber se haveria espaço para caber o bacalhau ou alguma coisa da terra. O bacalhau, sendo um ingrediente desidratado que não continha água e que aguenta muito tempo, correspondia ao necessário. Tem uma duração longa e aguenta bem as radiações e todas as complexidades de uma viagem destas. Por fim, pensei como poderia incluir o chouriço, que primeiramente tem que ser salteado, depois desidratado e pulverizado. Claro que perde um bocadinho o sabor mas ganha a capacidade de ir. Assim surgiu esta receita. Não estou a imaginar um astronauta sentado numa mesa a comer um bacalhau espiritual, mas sim uma refeição que seja quase como um ‘snack’ e esta receita tem esse lado.
Voltando ao início desta aventura pelo mundo da cozinha. Como surgiu esta vontade de ser chef? Há uns anos não era propriamente a profissão ‘in’ que é nos dias de hoje…
Foi onde sempre me senti bem, no mundo da hiperatividade e a fazer os outros contentes. A cozinha tem esta coisa fantástica: trabalhamos e processamos coisas para trazer alegria às pessoas e nada nos traz mais felicidade do que ver as pessoas que estão ao nosso lado felizes. Por isso, acho que isso é uma máxima na vida– e a cozinha é talvez a plataforma mais fácil para que isso aconteça de uma forma rápida. Apercebi-me de que na cozinha tinha esse espaço. Tenho sete irmãos, todos mais velhos do que eu, precisava de alegrá-los e de conquistar terreno lá em casa e tudo começou pela cozinha. Começei por lavar a loiça, mas rapidamente percebi que não tinha grande pachorra. Depois achava que os bifes lá em casa eram sempre muito passados, então comecei por aí…
São oito irmãos, isto significa que eram dez lá em casa. Acha que isso poderá ter sido uma grande ajuda em termos de organização e preparação para os dias de hoje?
Sim, para hoje e para a minha vida toda! Agora lá em casa somos seis: eu, a Maria [mulher], e mais quatro [filhos]. Sempre gostei de viver rodeado de muitas pessoas, é uma coisa ótima.
Como vê a transformação da profissão nos últimos anos?
Vejo de duas maneiras. Primeiro o lado positivo, trouxe dignificação a esta profissão. As pessoas hoje sabem quem está por trás das cozinhas e valorizam mais este trabalho, estando também predispostas a provarem coisas diferentes. Por outro lado, também vejo o lado negativo: há muitos miúdos que entram para isto por acharem que há um glamour enorme em ser chef de cozinha e não percebem que a vida de um chef é super pesada, dura e exigente. Mas, como em tudo na vida, há sempre coisas boas e más, mas acho que se somarmos as boas são superiores às menos boas.
O primeiro restaurante que abre é ‘O Talho’ no ano de 2013. Entretanto abriu mais cinco. Como se explica este sucesso numa altura de crise?
Foi a vontade de fazer coisas diferentes e de não fazer ‘ctrl-c /ctrl-v’ [copiar e colar]. Naquela altura só abriam hamburguerias. Uma pessoa abria uma hamburgueria, chegava outra, copiava, metia um nome e uma decoração diferentes e pronto. Acho que, mesmo numa altura de crise, se nos agarrarmos, se lutarmos por quebrar fronteiras e limites e por fazer coisas realmente diferentes, funciona. ‘O Talho’ teve isso. Foi inovador, era um restaurante e também uma loja. Lembro-me de muitas pessoas perguntarem: «Então mas e quem gosta de peixe, não pode ir ao teu restaurante?». E eu disse: «Para ganhar um campeonato também tenho de perder alguns jogos, não é?». Quando queremos chegar a todos, não chegamos a ninguém. ‘O Talho’ foi a prova disso. Quando abriu, começou a correr muito bem e apareceram investidores que me disseram: «Vamos lá levar ‘O Talho para shoppings, para o Porto, para o Algarve…». E eu respondia: «Não, não. Vamos lá abrir coisas diferentes». É então que abro ‘A Cevicheria’, que também corria muito bem, e diziam outra vez: «Vamos lá levar A Cevicheria para o Dubai». E eu voltava a dizer: «Não, não, bora lá fazer coisas diferentes». E fizemos este, ‘O Asiático’, depois ‘O Surf & Turf’, ‘O Poke’ e, mais recentemente, ‘O Oceanário’, que é um espaço que estou a gerir.
Por curiosidade, os nomes dos seus restaurantes começam sempre por um artigo definido feminino ou masculino. É para dar unicidade?
Sim, exatamente, é para ganharem coerência entre todos.
Fazendo as contas, abre em média um restaurante por ano. Podemos esperar novidades para 2019?
Este ano estou a abrir dois restaurantes.
Não pode adiantar mais um bocadinho?
[risos] Para já não consigo dizer mais nada… Estou a abrir dois restaurantes novos, mas mudei a ementa do ‘Surf & Turf’ há cerca de três semanas, a do ‘O Poke’ mudei há cinco e mudei agora a ementa do ‘O Asiático’. Ou seja, há aqui uma vontade de não ficar parado, que é uma coisa que me caracteriza, não estagnar.
Em cada restaurante há um país representado… Para si, tornou-se numa espécie de missão levar os portugueses a viajar pelo mundo através da comida?
Sim, aqui, no ‘O Asiático’, por mais do que um, até. Tento sempre trazer um bocadinho do mundo a Portugal. ‘O Poke’ é muito o Havai, ‘O Talho’ acaba por ser um bocadinho do mundo inteiro, ‘A Chevicheria’ é o Peru. Acho que para fazer cozinha portuguesa se calhar existem pessoas com competências melhores do que as minhas. Tento ser uma pessoa que traga o mundo a Portugal. E é tão bom não é? Se alguém que já esteve na Tailândia chega aqui e come um Pad Thai e fica: «Uau, fogo, viajei!». É muito bom!
Qual a importância que teve a sua mulher ao longo de todo este processo?
É enorme. Não só a nível pessoal como profissional, mas a todos os níveis. Ela é parte de mim e eu sou parte dela. Um sem o outro não conseguiríamos viver nem ser como somos hoje em dia. Estamos de tal maneira agarrados e trabalhamos tanto em equipa… Profissionalmente ela não trabalha comigo porque, eu também tenho um bocadinho aquela filosofia de que é bom que façamos coisas diferentes e não estarmos todos os dias agarrados às mesmas coisas e aos mesmos problemas. Mas temos quatro filhos muito pequeninos e muitos projetos em conjunto.
Uma vez disse com graça que a viagem que fizeram – 26 países durante 14 meses – foi uma espécie de pós-graduação em cozinha…
Foi, e acho que deveria ser assim para todos os cozinheiros. Isto foi um MBA, poder partir e estar em casas de pessoas pelo mundo inteiro e perceber como cozinham, como estão à mesa e como vivem esse momento… É uma coisa inacreditável. À mesa aprendemos, educamo-nos e crescemos. A mesa tem um lado que é muito mais do que esta parte física destes 70cm por 80cm, tem uma componente geracional, educacional, humana, uma componente de qualquer tipo de relações. Nós não dizemos: «Vamos namorar», dizemos antes: «Vamos jantar». Nós não dizemos: «Vamos embebedar-nos», mas sim: «Vamos jantar» [risos]. A mesa serve de pretexto para inúmeras coisas. É uma bengala que nos desinibe, que nos faz conviver, olhar nos olhos uns dos outros – e temos muito medo disto, às vezes. Uma coisa é falarmos pelos Instagrams, Facebooks e mensagens, outra coisa é falarmos olhos nos olhos. Há bocado tive um stresse com um jornalista que me acusou de estar a mentir e eu disse-lhe: «Anda ter comigo e falamos olhos nos olhos. Eu tenho quarenta anos, para que é que teria a necessidade de mentir?». E ele insistiu que eu estava a mentir e eu repeti: «É uma pena não estares à minha frente porque vias nos meus olhos que não minto. Para que é que preciso de mentir na vida?». A mesa é espaço para nos escutarmos a nós próprios e para escutarmos o outro e na mesa temos de estar ‘eye free’. É triste às vezes estarmos numa mesa com seis pessoas, estarmos a falar e de repente alguém está agarrado ao telefone. Eu fico: «epa, porra, larga essa porcaria!».
Por falar nisso já começam a surgir uns jogos para evitar esse fenómeno que é o ‘phubing’. Por exemplo, aquele em que todos são obrigados a colocar o telemóvel no centro da mesa e o primeiro a pegar tem que pagar a conta…
Aí está uma grande ideia!
Já referiu que cozinhava para os seus irmãos… Que recordações é que tem da sua infância?
Era muito pequenino, estive no Brasil até aos 10 anos, altura em que vim para Portugal. Recordo-me principalmente dos sabores, cresci muito com aqueles sabores tropicais da manga, do açaí, do caju, das granolas, pouco peixe, muito mais carnes e churrascos, feijoada… Foram sabores que me educaram muito. Claro que hoje em dia virei-me muito para o oposto, com muito mais legumes e mais peixe. Mas, quando era pequenino, lembro-me muito mais desses sabores tropicais. Perdi um bocadinho daquele lado mais pesadão das feijoadas, hoje gosto das coisas mais leves e frescas.
Quando cria uma ementa pensa no que o cliente quer ou prefere fazer para surpreender?
Podem acusar-me de muita coisa: que não gostaram da comida, da decoração, que o empregado foi mal-educado, que a localização do restaurante é péssima. Podem acusar-me de tudo! A única coisa de que não me podem acusar é de que não pensei. Tento pensar em tudo de A a Z! Desde os pombos, às colunas, aos azulejos, ao chão, à maneira como estão vestidos, o nome do restaurante, o seu logótipo, a cor da mesa… É tudo pensado por mim e pela minha equipa. Desde o momento em que se faz uma reserva ao momento em que o cliente sai. É tudo pensado e exaustivamente trabalhado em cada um dos pontos porque há uma coisa muito importante – eu tenho de garantir que quando um cliente vai ao meu restaurante no domingo tem o mesmo tratamento do que na sexta-feira. Ao domingo está o Manuel e à sexta-feira está o João, mas eu tenho que garantir que quer o Manuel quer o João se comportam da mesma maneira. Isto para evitar aquelas situações em que alguém nos recomenda um restaurante que classificam como um restaurante ‘top’ e de repente vai lá alguém que diz: «Epa, não gostei nada, os gajos eram completamente displicentes, a comida estava fria, etc…». Tento garantir consistência. Ser bom o ano inteiro é muito difícil e não se faz com poesia, faz-se com muitas regras. Nesse aspeto sou um bocado chato e até exaustivo. Há que haver regras, não se pode adiar para amanhã aquilo que tem que ser feito hoje! Se não tratarmos das coisas no momento, perdemo-nos.
Enquanto Chef, está preparado para o dia em que os seus filhos comecem a pedir fast-food?
[risos] Já pedem, claro, e eu dou-lhes. Com conta peso e medida, mas dou. Não há problema nenhum, não sou fundamentalista. O meu único fundamentalismo é para as pessoas que são fundamentalistas e que dizem que só tomam sumos detox, ou que comem hambúrgueres e pizzas todos os dias, ou que só comem gengibre e espinafres… A única regra nisto é a regra da minha avó: «Tudo o que é demais é erro.». A melhor coisa na alimentação é poder comer um bom Big Mac, ou ir ali ao Ground Burguer e poder comer um grande hamburguer, mas no dia a seguir poder comer umas coisas mais saudáveis e, depois, comer uns grandes croquetes com arroz de tomate. Agora estou a fazer uma espécie de pós-graduação e tenho um professor que me diz: «Já viu a minha barriga?». E eu respondo: «Ó professor, para mim, a sua barriga é inteligente. O professor põe a sua felicidade à frente da sua estética» [risos]. As pessoas que põem a barriga à frente da estética acabam por ser mais felizes. Mas, por exemplo, o meu professor diz que come alheiras três vezes por semana, e ai já digo que para a sua saúde e para viver mais tempo se calhar tem de comer apenas uma por semana, não é? [risos]. É preciso brincar um bocado à volta disto, não há regras. Estes nutricionistas e esta malta que tenta demonizar alimentos e vender outros, epa, calma…
Hoje em dia também se nota muito a preocupação das pessoas na interpretação dos rótulos dos produtos…
Sim, sim, é uma loucura! Claro que há muitos rótulos falaciosos, nós vemos rótulos que dizem 60% mais light, mas então temos de virar e perceber por que é. Mas não devemos viver obcecados com isso. Os esquizofrénicos da alimentação, se formos analisá-los, nem parecem pessoas muito felizes. A maior parte das pessoas que dizem: «Cuidado, não comas isso que engorda; cuidado, não comas aquilo que faz mal, cuidado, que só recomendo comer fruta até às cinco da tarde, cuidado, não podes comer hidratos de carbono à noite…». É preciso relaxar e ter calma, tudo com conta, peso e medida! Façam antes exercício físico, comam o que é saudável para vocês. Depende do metabolismo e de várias coisas de pessoa para pessoa.
Sente que há muita influência das redes sociais na alimentação?
Muita, muita.
Qual é a parte negativa disso?
A parte negativa é que toda a gente acha que tem uma opinião a dar. Esta coisas das redes sociais e dos programas de televisão vieram transformar o universo de dez milhões de portugueses em dez milhões de críticos de gastronomia. Hoje, toda a gente acha que percebe de gastronomia – ou porque já viu o Masterchef ou porque a avó faz uma tarte de limão merengada em que a base em vez de bolacha maria é de farinha de qualquer coisa… Não tenho problemas em que as pessoas venham aqui e que digam que não gostaram, vivo bem com isso. Mas vivo mal com o facto de dizerem que está tecnicamente mal feito. Em relação à técnica é mais objetivo, em relação ao sabor… Tenho um ponto de sal ou de açúcar diferente de X pessoa, há pessoas que não gostam de muito doce, outras que adoram. Há pessoas extremamente salgadas e outras que não gostam de salgados. A salsa e os coentros dividem Portugal. Tantas coisas…
Por falar em televisão… Acha que programas como o ‘Pesadelo na Cozinha’ ajudam a alertar as pessoas para os perigos de algumas cozinhas e do que estamos realmente a comer?
Acho que os programas, seja o Pesadelo na Cozinha, o Masterchef, o Chefs Academy, seja qualquer programa mais didático, têm coisas muito boas e coisas muito más. A cozinha está um bocadinho sobrecarregada hoje em dia. É preciso tirar um bocadinho o pé do acelerador destes programas de cozinha, mas acho que, acima de tudo, vieram mostrar e dignificar esta profissão. E sobretudo mostrar que se calhar temos muita coisa no mercado muito suja e mal feita – e esse programa em concreto trouxe isso. Claro que há um lado dramático e de novela.
E também vem consciencializar as pessoas para a necessidade de formação que é preciso ter para entrar neste ramo?
O que é um chef? Eu abro um restaurante e não tenho formação nenhuma de cozinha e aquilo corre bem. Sou chef ou não sou chef? Eu vou para fora, estudo durante dez anos, trabalho em não sei quantos restaurantes, trabalho numa cozinha com mais de 50 pessoas e há duas pessoas acima de mim, sou chef ou não sou chef? Lidero uma equipa com três pessoas, sou chef ou não sou chef? É um bocado complicado se se utiliza a palavra chef ou cozinheiro. Posso dizer que hoje em dia já não me considero cozinheiro, já não estou nessa linha, já não sou eu que pico a cebola ou que arranjo o porco. Considero que a palavra chef se emprega a alguém que tenha a responsabilidade perante uma equipa de cozinha, a quem está numa hierarquia máxima de um restaurante. Sou o chefe executivo destes restaurantes e tenho abaixo de mim um braço direito que me ajuda na gestão das cozinhas. Dentro de cada espaço tenho dois chefs de cozinha e sempre que me quero dirigir a um cozinheiro sobre alguma coisa, dirijo-me ao chef de cozinha, nunca ao cozinheiro. Porque se eu passasse por cima do chef, então estaria a tirar-lhe responsabilidade e preponderância. Existe uma hierarquia.
Além dos restaurantes que tem e que gere, editou dois livros [Comer o Mundo e Jantaradas], participou em vários programas de televisão [Chefs’ Academy, Cook Off e Masterchef Portugal], escreve colunas de gastronomia, tem uma família numerosa… Como é que se arranja tempo para gerir tudo?
Primeiro, vivendo tudo como uma aventura e não como um mártir, isso é importante. Se acordamos cansados a vida é toda muito mais pesada. Ou então uma pessoa levanta-se e pensa: «Olha que fixe, tenho vinte coisas para fazer hoje, como é que vou desenrascar-me para fazer tudo isto, bora lá!». É muito importante saber se existem coisas nessa ‘lista’ possíveis de delegar, mas é entregar e acompanhar. É preciso ir percebendo e ir gerindo. Atenção, vamos falhar, vamos errar e vamos tomar decisões más. Mas só não falha, só não erra, só não toma decisões más quem não vive, quem está em casa a comer Haagen-Dazs e a ver televisão. Ser treinador de bancada e mandar umas bocas sobre a vida, isso é fácil. Agora, quem quer viver no dia a dia e tomar decisões e garantir o futuro de 50 pessoas que trabalham nesta empresa, que se calhar amanhã já tem 300, vai sempre tomar decisões erradas. Se calhar há dias em que não vai ter tanta paciência e vai ser indelicado com as pessoas, mas, em boa verdade, é fixe. É duro e estupidamente exigente, há dias em que, e não vou mentir, me sinto completamente morto e preciso de um biberon que se chama televisão e de uma fraldinha que se chama comando e estar ali com um edredon a relaxar e passar umas boas horas a dormir. Mas, resumindo, ponto número um: as coisas vivem-se com alegria. Ponto número dois: vive-se em equipa. E ponto número três: vive-se com vontade de querer fazer melhor. Estas são as três regras para mim.
Gerir as pessoas acaba por ser um peso muito maior?
Gerir pessoas acaba por trazer muitas dores de cabeça. No outro dia pus uma notícia no Facebook e veio uma pessoa comentar a dizer mal [tira o telefone do bolso e lê o comentário]. Nós todos temos uma ferramenta poderosíssima nas mãos que é a de escrever aquilo que quisermos. É uma ferramenta muito perigosa e que pode destruir a vida das pessoas. Se alguém agora for à internet escrever: «Aquele chef é um pateta, não ganhou concurso nenhum», essa pessoa não está a pôr a minha vida em causa, mas sim a de 250 pessoas. Isto é tão perigoso que vemos um pateta [Donald Trump] a ganhar assim nos Estados Unidos. É altamente perigoso.
Quando não está a pensar em cozinha, quais são os seus hobbies?
Gosto muito de correr. Como a minha vida é muito hiperativa, quando estou a correr acabo por relaxar. É um momento em que estou sozinho e tento utilizá-lo quase como uma terapia. Em vez de pagar a um psicólogo pago umas sapatilhas. Ainda ontem, às nove e meia da noite, fui para Monsanto correr sozinho. Levo uma luzinha, vou para o meio da montanha e ando lá sozinho. Às vezes cruzo-me com outro maluco ser humano, mas normalmente é mais animais [risos]. A corrida é algo que me relaxa, não tanto ao pé do rio, nem na estrada, mas no meio da serra, que é um sítio de que gosto muito. De resto, gosto muito de jantar fora, de beber uns copos com amigos e, antigamente, fazia surf. Hoje em dia é mais difícil porque é um desporto que só dá para fazer à luz do dia e depois muitas vezes não estão ondas boas. Como tenho o tempo limitado, tenho de aproveitar um desporto onde perca o mínimo de tempo possível, que seja só chegar de carro, vestir-me, e está a andar. Basicamente tem sido a corrida e, claro, estar com a Maria e com os meus filhos de uma forma presente.
Frisou algumas vezes durante esta conversa a questão da hiperatividade. Já era assim em criança?
Sou movimentado desde pequenino. Hoje em dia a hiperatividade tem uma conotação negativa, mas eu era uma pessoa mexida, que gostava de fazer coisas, que não gostava de estar parado. Isto tem coisas boas e más; por exemplo, não sou uma pessoa que aguente a rotina do dia-a-dia, de acordar, ir para o mesmo trabalho de há vinte anos, não sou assim. Mas é preciso que existam essas pessoas no mundo, não é só pessoas como eu senão o mundo estava entregue a uma cambada de loucos. Estou a brincar, mas seria um mundo de pessoas que andariam sempre de um lado para o outro. Aquilo que eu garanto assim é muita satisfação. Chego ao final do dia sempre muito preenchido e isso dá-me gozo.
O facto de ainda não ter uma estrela Michelin é algo que lhe ocupa o pensamento?
É algo que ocupa o meu pensamento, seria hipócrita se dissesse que não, mas eu nunca fiz nada direcionado para ter uma estrela Michelin. Ou seja, é um estilo de restaurante muito único e pensado para esse fim. O ‘O Asiático’ é um restaurante com 110 lugares, não há nenhum restaurante em Portugal com estrela Michelin que tenha mais de 30. O ‘A Chevicheria’ é um espaço que serve 50 refeições, não é um espaço pensado para isso. O ‘O Talho’ tem um ticket médio mais baixo. O ‘O Poke’ está num shopping. O ‘O Surf & Turf’ está no Mercado da Ribeira. Ou seja, os restaurantes não estão pensados nesta dinâmica. Se um dia terei vontade de fazê-lo? Quem sabe não comece a trabalhar nessa ideia. Não é uma preocupação que tenha, é algo com que vivo com serenidade e que um dia quem sabe…
Mas sente que já está preparado para fazê-lo?
Nunca enviei a apresentação de um restaurante meu para a Michelin. Será importante para mim um dia fazê-lo? Acho que sim. Se estou preparado para fazê-lo? Acho que começo a estar mais preparado, mas ainda não estou no ponto. Preciso ainda de um bocadinho mais de maturidade porque, quando o fizer, quero fazê-lo de maneira diferente, não quero fazer igual.
No fim do dia, continua a achar que ‘Quem parte e reparte e dá a melhor parte vive a vida com mais arte’?
Sem dúvida, essa é uma frase muito boa, que ninguém usava há muito tempo. É uma frase que vem da da Madre Teresa de Calcutá, que diz que tudo o que não se dá, perde-se. E é uma frase que tenho como lema de vida há muito tempo. Quando montei o restaurante ‘O Talho’, tinha por baixo a frase ‘Parte e Reparte’. Como em tudo na vida, quando queremos comunicar muita coisa, depois, não comunicamos nada, e as pessoas foram perdendo essa coisa do ‘parte e reparte’. É uma frase que já ninguém me dizia para aí há quatro anos, mas que acho lindíssima – e obrigado por tê-la dito outra vez.