A dominar uma prateleira situada mesmo por detrás da secretária onde Eugénia Cunha trabalha, encontra-se um objeto com que nem todos gostariam de conviver no dia-a-dia: uma caveira – ou, para usarmos o termo técnico, uma calote craniana. Noutra estante, ao lado de volumes antigos sobre questões médico-legais e psicologia criminal, há alguns bustos em gesso. Trata-se de máscaras de cadáver de homens que morreram enforcados por volta de 1930 e reproduzem até os vergões profundos na zona da garganta.
Mas nada disto impressiona muito a diretora da delegação do Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, que até escolheu para o seu curriculum vitae um retrato em que, à maneira de Hamlet, segura uma caveira. Eugénia Cunha está habituada a lidar com coisas bem piores. Tem formação como antropóloga forense, é catedrática em Coimbra e há cerca de vinte anos que está ligada ao instituto. Define-se como «especialista no esqueleto» e dedica-se a «tudo o que tenha a ver com ossos e corpos em avançado estado de decomposição». Há alguns meses esteve na Gâmbia, integrada numa equipa cuja missão foi desenterrar ossos de valas comuns para lhes devolver o nome e a dignidade.
Fotografia de Bruno Gonçalves
Mas não é só a experiência e a habituação da diretora que tornam a tal caveira e as máscaras de cadáver menos impressionantes. A luz natural que inunda o seu amplo gabinete de gaveto e a soberba vista panorâmica para o casario de Lisboa, o miradouro da Graça e o Castelo ajudam a dissipar os fantasmas e emprestam a tudo um aspeto mais sorridente.
Situado na colina de Sant’Ana, perto do Campo Mártires da Pátria, do hospital de S. José e da antiga Escola Médico-Cirúrgica (hoje Faculdade de Medicina), o edifício do Instituto de Medicina Legal começou a ser construído em 1919 e foi terminado em meados dos anos 30 do século passado. Algum do mobiliário ‘vintage’ que se encontra nos gabinetes e corredores remonta precisamente a essa época, o que por vezes nos dá a ideia de termos recuado no tempo.
Um estudo inconclusivo
Com a sua mezzanine e armários-vitrine a cobrir as paredes, a sala onde nos encontramos agora poderia ser o cenário de uma passagem de Dr. Jeckyll e Mr. Hyde, o famoso livro de R. L. Stevenson sobre um respeitável médico que à noite ingere uma poção e se transforma num assassino. Aqui, Eugénia Cunha chama-nos a atenção para a coleção de calotes cranianas dos «anos 20, anos 30 [do século XX], todas elas com lesões traumáticas, ou seja, perfurações por armas de fogo, lesões por instrumentos de natureza contundente, objetos cortantes, explosões, etc. Com uma aluna que fez o mestrado comigo encontrámos algumas da Noite Sangrenta», revela. Entre os mortos provocados por aquela revolta de marinheiros ocorrida a 19 de outubro de 1921 encontravam-se António Granjo, o advogado e maçon que ocupava o cargo de presidente do Ministério (equivalente ao atual primeiro-ministro), e António Machado Santos, considerado o ‘pai da República’.
Neste espaço de «múltiplas utilizações», que já serviu como sala de museu, sala de reuniões e sala de aulas, guardam-se também dezenas de máscaras de cadáver. «Isto é um estudo promovido pelo Dr. Azevedo Neves», esclarece Manuela Marques, técnica-bibliotecária que conhece os cantos à casa. A ideia de Azevedo Neves, que assumiu as rédeas da Morgue em 1911, logo a seguir à implantação da República (embora fosse um monárquico convicto), era tentar, a partir da expressão facial do cadáver, determinar as circunstâncias e o estado de espírito da vítima no momento da morte. «Atualmente temos quase 300 máscaras, existiam muitas mais», diz-nos Manuela Marques.
Fotografia de Bruno Gonçalves
E o que pôde Azevedo Neves concluir da sua investigação? Rigorosamente nada. Apesar de todas as máscaras pertencerem a mortos por asfixia, «as expressões são completamente diferentes», continua a bibliotecária. «Há vários fatores que podem contribuir para a criação de uma expressão: a temperatura, a forma dos músculos, etc. -, há uma série de pormenores que podem influenciar o que acontece [ao rosto do defunto] no pós-morte».
Múmias modernas
Independentemente das expressões mais ou menos torturadas destas máscaras quase centenárias, existem nesta sala outros ‘souvenirs’ bem mais perturbadores. Se os egípcios e outros povos recorreram ao processo de embalsamamento para preservar os seus mortos, a ciência moderna também encontrou a sua fórmula mágica: o formaldeído, acidentalmente obtido pelo russo Alexander Butlerov em 1859, posteriormente descoberto por A. W. Hofmann em 1868 e desde então produzido industrialmente. Possui várias utilidades, uma das quais fixar tecidos orgânicos.
Por detrás das portas de vidro dos armários desta sala vemos dezenas de relíquias – algumas delas macabras – da história da medicina mergulhadas neste líquido transparente. «Quando veio para cá, em 1911, o Dr. Azevedo Neves teve sempre o interesse de recolher todas as peças que tivessem interesse museológico. Desde que entrou nesta casa até sair em 1947 houve muito essa preocupação», confidencia-nos Manuela Marques. Dentro dos frascos aqui guardados há pedaços de pele tatuada (os temas vão dos motivos religiosos a desenhos de cariz erótico), um braço já descarnado e inúmeros órgãos que só um especialista em anatomia humana poderia identificar. Alguns parecem-se com coral ou plantas subaquáticas; noutros casos, um gastrónomo não teria dificuldade em encontrar semelhanças com determinadas espécies de cogumelos, um pedaço de dobrada ou certas especialidades de bacalhau.
Para tudo isto é preciso algum ‘estômago’, mas o espécime mais aflitivo é sem dúvida um casal de bebés siameses, com a pele descolorada, juntos pela barriga e aprisionados no espaço exíguo entre as paredes de vidro.
Tesouras, martelos e até saca-rolhas: vale tudo
No pequeno museu do instituto, visitável sob marcação, não há nada tão suscetível de impressionar os espíritos mais sensíveis. Ainda assim, os objetos contam histórias humanas algumas das quais com uma boa dose de tragédia. «Esta lâmina esteve envolvida na agressão a um indivíduo do sexo masculino de 32 anos, pintor», explica Manuela Marques. Entre as armas usadas em crimes, há um revólver tão pequenino que parece de brincar – «e no entanto matou uma pessoa» -, vários tipos de canivetes e até um saca-rolhas «que serviu para agredir um polícia».
Segue-se «um caso de violência doméstica dos anos 30, de dois jovens que acabam por agredir-se mutuamente e ele suicida-se no final», indica a nossa guia. «A tesoura foi a arma com que ele se suicidou mas tudo o que estava à mão serviu para se agredirem». Os objetos envolvidos incluíam um martelo e uma vassoura que a mulher terá usado para se defender.
Fotografia de Bruno Gonçalves
Tudo isto está documentado com recortes de jornais da época e croquis. «A Medicina Legal era muitas vezes chamada ao local, os nossos desenhadores da casa faziam os croquis», refere a bibliotecária. Mas para que eram necessários desenhadores se já havia fotografia?, questionamos. Manuela Marques esclarece: «A fotografia na altura ainda não tinha tanta qualidade como hoje e sobretudo não era a cores. Os desenhos podiam captar certos pormenores que escapavam à fotografia. Depois também se juntavam outros elementos que pudessem ajudar à identificação das vítimas, como pedacinhos de roupa».
O burlão e os mártires
Por alturas do centenário da morte de Sidónio Pais, o lugar normalmente ocupado no museu por uma arma idêntica à que terá efetuado os disparos fatais encontra-se vazio. A pistola, da marca Beretta, viajou para o Museu da Presidência, em Belém, onde integra uma exposição dedicada ao Presidente-Rei assassinado em 1918, juntamente com o relatório da autópsia e exames periciais. «Quando Sidónio morreu não foi logo autopsiado. O Ministério Público da época não deu essa indicação e o instituto não faz autópsias sem ser por ordem», descreve Manuela Marques. O cadáver «foi embalsamado, velado no Palácio de Belém e depois colocado num jazigo no Mosteiro dos Jerónimos – atualmente está no Panteão. Só passado um mês [da sua morte] é que há um juiz que indica para ir uma equipa do instituto até ao Mosteiro dos Jerónimos para fazer a autópsia».
Já nas instalações do instituto foram analisadas a arma que José Júlio da Costa, o principal suspeito, terá usado para perpetrar o crime, bem como as roupas do Presidente, o uniforme militar ainda com os buracos provocados pelo projétil.
Mas nem todos os casos que ao longo destes cem anos vieram parar ao Instituto de Medicina Legal (fundado precisamente em 1918) têm uma carga tão pesada. Nem sempre há armas, violência ou sangue envolvidos. Um dos núcleos do pequeno museu é dedicado ao célebre burlão Alves dos Reis. «Hoje quem faz este tipo de trabalho é o laboratório da polícia científica», refere Manuela Marques. «Mas em 1925 ainda não era assim e os documentos, nomeadamente as tintas usadas, foram analisados aqui». As perícias dos técnicos do instituto ajudaram as autoridades a deslindar a maior operação de falsificação de papel-moeda da História de Portugal. E é aqui, no arquivo da delegação de Lisboa, que se encontram os volumes com os exames das notas de 500$ com que Alves dos Reis inundou o país.
À primeira vista, dir-se-ia que um caso deste tipo não era da competência de um organismo ligado à medicina. Mas uma coisa é certa: o caso de Alves dos Reis deixou as finanças nacionais num estado calamitoso, a precisar de um tratamento de choque.
Saindo do museu do instituto, no corredor de acesso voltamos a deparar-nos com a faceta mais sombria da Medicina Legal: uma vitrina obsoleta onde se reúnem armas – de canivetes tipo suíços a outras mais improvisadas – e curiosidades médicas. Há também uma corda escura e muito antiga que foi usada como instrumento de um suicídio.
Afinal de contas, esta zona da cidade tem já uma longa tradição de enforcamentos. Lá fora, a poucos metros do edifício do Instituto de Medicina Legal, encontra-se o Campo dos Mártires da Pátria, cujo nome assinala o local onde há 200 anos, a 18 de Outubro de 1817, foram enforcados por conspiração os onze companheiros do diplomata e general Gomes Freire de Andrade.