Um jovem de 26 anos abalou o mundo do futebol em 2015 com a co-criação de um portal intitulado Football Leaks. O nome é ‘descendente’ do WikiLeaks do jornalista Julian Assange, que vive desde 2012 em asilo político na Embaixada do Equador em Londres de forma a evitar a extradição para os Estados Unidos da América, onde arrisca uma pena de prisão perpétua por atos de espionagem contra a nação. Rui Pinto, hoje com 30 anos, capturado e extraditado pelas autoridades húngaras para Portugal, refere-se a Julian Assange (mas também a Edward Snowden) como fonte de inspiração para os seus atos e tenta socorrer-se dos mesmos argumentos para se defender: tudo o que fez, tê-lo-á feito de forma altruísta e com objetivos morais superiores, nomeadamente de denúncia de atos ilícitos em que o futebol seria fértil. No fundo, Rui Pinto deseja ser reconhecido internacionalmente como um whistleblower (denunciante, numa tradução livre) e receber tratamento judicial diferenciado por via desse epíteto. Para já, as autoridades húngaras negaram-lhe esse reconhecimento e as portuguesas também não parecem inclinadas a aceitar essa linha de raciocínio, embora estejamos apenas no início de uma batalha judicial que promete ser longa e complexa. Em bom ‘futebolês’ poderemos dizer que o jogo mais importante da vida de Rui Pinto ainda nem sequer chegou ao intervalo…
O mediatismo em torno deste caso é de tal forma esmagador que acaba por desviar a atenção de questões tão importantes e factuais como, por exemplo, os crimes pelos quais Rui Pinto está indiciado. São seis: dois de acesso ilegítimo, dois de violação de segredo, um de ofensa a pessoa coletiva e ainda um outro de extorsão na forma tentada. Todos eles visando a Doyen Sports Investments e o Sporting Clube de Portugal. Para já, é apenas isto que está em causa e o último crime desta curta lista – a tentativa de extorsão – é aquele que poderá colocar em risco toda a estratégia de defesa de Rui Pinto, já que a atividade de whistleblowing (denúncia de atos ilícitos) implica necessariamente a absoluta ausência de interesse ou proveito pessoal, nomeadamente sob a forma de retorno financeiro proveniente de informação acedida de forma ilegal. Caso o Ministério Público consiga provar essa ação específica de Rui Pinto, naturalmente cairá por terra qualquer alegação de altruísmo em todas as suas restantes ações e poderá passar a ser encarado, até pela opinião pública, como um vulgar criminoso. Neste ponto da acusação, nesta capacidade (ou não) de o Ministério Público provar que houve efetivamente tentativa de extorsão, poderá residir a forma como Rui Pinto será recordado nos anais da história: um hacker, uma espécie de ‘Pirata Barba Negra’ informático que furta visando o seu próprio enriquecimento; ou um whistleblower, um ‘Robin dos Bosques’ dos tempos modernos, que visa denunciar atos ilícitos de interesse público sem qualquer intenção de enriquecimento pessoal à custa de informação furtada. Eu, que nunca acreditei em heróis instantâneos, tenho a minha opinião e reservo-a para mim. Cada leitor terá certamente a sua. Mas em última instância, o que verdadeiramente importa é a leitura que a justiça portuguesa fará dos factos.
Sem entrar em julgamentos prévios ou condenações em praça pública, não posso contudo deixar de dizer o seguinte: toda e qualquer informação descontextualizada e obtida de forma unilateral é um risco tremendo. Tem uma elevada probabilidade de estar incompleta. É facilmente manipulável. Logo, é altamente falaciosa e, acima de tudo, perigosa. Apresentar informações furtadas como peças de ‘grande investigação jornalística’ é uma desonestidade intelectual atroz. Alegar a deontologia jornalística como uma espécie de manto sagrado debaixo do qual cabem todos os expedientes, por mais ilegais que sejam, é desrespeitar uma classe que é, de há muitas décadas a esta parte, um dos principais pilares da justiça, da segurança e da democracia em estados de direito. E isto é um capital que não pode ser desbaratado apenas e só em função da manchete mais bombástica, custe o que custar e doa a quem doer. Há exemplos de trabalhos jornalísticos de fundo assentes em denúncias – os Estados Unidos são férteis em casos destes – que levaram a mudanças marcantes no curso da história. Infelizmente, no que concerne ao Football Leaks, não foi o caso. Houve, isso sim, uma tentativa de aproveitamento de informações e documentos furtados que, em muitos dos casos, não continham sequer qualquer ponta de ilegalidade, e noutros carecem de validação absoluta do ponto de vista da sua veracidade.
A confusão em torno deste caso leva a paradoxos tão disparatados como este: o Sporting, uma das vítimas dos crimes pelos quais Rui Pinto está indiciado e que inicialmente acusava o Benfica de estar na génese do Football Leaks, vê os seus adeptos ostentarem tarjas a dizer ‘Libertem Rui Pinto’ em pleno Estádio de Alvalade. Já o Benfica, que até prova em contrário não é uma das vítimas das ações de Rui Pinto, vê os seus adeptos congratularem-se pela detenção de alguém que pode significar apenas uma ‘caça aos gambozinos’ por parte do clube da Luz, que não faz a mínima ideia se Rui Pinto está, ou não, ligado ao furto de mais de 10 anos de troca de e-mails privados por parte de milhares de funcionários que integraram os quadros do clube desde 2008. Já o FC Porto, também inicialmente vítima das ações de Rui Pinto enquanto administrador do portal Football Leaks, é por sua vez acusado pelo Benfica de estar por trás de alguém cujos alegados crimes, na verdade, desconhecemos em toda a sua extensão. Bem vindos à esquizofrenia do futebol português!