Ex-presidentes receberam por viagens que faziam em carros da Assembleia da República

Mota Amaral e Couto dos Santos são dois dos casos que o SOL encontrou. O antigo presidente da Assembleia da República explica que têm de ser os serviços a zelar pelas contas e que nunca se apercebeu de nada de incorreto.

Ex-presidentes receberam por viagens que faziam em carros da Assembleia da República

As regras são claras no papel, mas ainda que não o fossem bastava usar a lógica: os deputados que têm direito a carro no Parlamento têm de escolher entre este direito e as despesas de deslocação em território nacional continental. Mas uma investigação do SOL às XI e XII Legislaturas – correspondentes ao segundo Executivo de José Sócrates e ao primeiro de Passos Coelho – concluiu que não tem sido esse o entendimento de ex-presidentes da Assembleia da República, do Conselho de Administração da Assembleia e até mesmo um secretário da Mesa da Assembleia teve de ser chamado à razão para regularizar. Houve deputados do PSD e do PS que, ao não optarem nem por uma coisa nem outra, terão acabado por acumular os dois direitos: o carro e os abonos de deslocação. Algo que contraria a resolução da Assembleia da República n.º57/2004, de 6 de agosto, ou seja, os Princípios Gerais de Atribuição de Despesas de Transporte e Alojamento e de Ajudas de Custo aos Deputados.

Têm direito a carro o Presidente da Assemblea da República, os vice-presidentes, antigos presidentes da AR que ainda sejam deputados, o secretário da Mesa do grupo maioritário e o presidente do Conselho de Administração. E se, por um lado, nessas duas legislaturas, tanto os presidentes da AR em funções como os vice-presidentes cumpriram, optando por um dos direitos, por outro, o antigo presidente da AR Mota Amaral, o presidente do Conselho de Administração da XI Legislatura José Lello (entretanto falecido) e o seu sucessor, Couto dos Santos, não disseram expressamente se queriam carro ou subsídios, acumulando assim dois benefícios.  

Também o secretário do grupo maioritário da XIILegislatura, Duarte Pacheco, acumulou os dois direitos durante um período – entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012 –, tendo depois sido feito um acerto de 140 euros. O SOLnão sabe se a partir daí foi ou não tomada a opção e declarada expressamente ao Parlamento.

O SOL tentou esta semana contactar os deputados visados, mas apenas conseguiu falar com Mota Amaral, que disse que, se os serviços da Assembleia aceitaram, é porque a sua situação é legal.

Mas, afinal, o que diz a resolução que torna irregular a acumulação destes dois direitos? «Aos deputados com viatura oficial atribuída aplicam-se as regras seguintes: a) Nos termos legais e regulamentares são atribuídas viaturas oficiais às entidades seguintes: Vice-Presidentes da Assembleia da República; Deputados que tenham exercido as funções de Presidente da Assembleia da República; Presidente do conselho de administração; Gabinete dos secretários da mesa; b) A gestão da viatura atribuída ao gabinete dos secretários da mesa é da responsabilidade do secretário do grupo maioritário […] d) Os deputados a quem tenha sido atribuída viatura oficial devem manifestar expressamente a sua opção entre o abono para despesas de transporte dentro do território continental da República ou a utilização da referida viatura», lê-se na resolução.

E, no respectivo cumprimento, todos os vice-presidentes  da Assembleia da República nestas duas Legislaturas terão manifestado a sua opção, quase sempre traduzida na seguinte frase: «Não vai abonado de despesas de deslocação, de acordo com a opção manifestada, nos termos da alínea c) do n.º 8 do artigo 1.º da Resolução da Assembleia da República n.º 57/2004, de 6 de agosto».

O caso de Mota Amaral

A documentção a que o SOL teve acesso dá apenas conta de alguns meses, mas estas situações terão durado anos. Mota Amaral, por exemplo, é ex-presidente da Assembleia da República e como era deputado nestas Legislaturas mantinha o direito a carro. Como tinha a residência nos Açores e era esse o seu círculo eleitoral, era entendimento que os subsídios de transporte para a Região Autónoma eram compatíveis com o carro, dado que teriam de ser feitas de avião. Mas, além dessas deslocações, Mota Amaral recebeu abonos para deslocações de trabalho político no Continente e outras ao abrigo do n.º2  do art.º152.º da Constituição da República Portuguesa.

Em abril de 2011, os montantes recebidos como despesas de deslocação totalizaram 1113,60 euros – neste mês não foram pagas deslocações residência/AR nem deslocações Residência/Círculo Eleitoral, dado não ser período de plenário.

Mas exatamente um ano depois, já na Legislatura seguinte, o valor total líquido recebido como pagamento de despesas de deslocação subiu para 3707,72, dos quais 2404,80 não eram incompatíveis com o direito à viatura, por serem para deslocações residência/Assembleia da República. Em julho, a situação mantém-se, sendo que dos 2284,35 euros recebidos apenas 1442 não eram incompatíveis.

Écerto que o facto de ter de haver viagens para uma Região Autónoma leva a que tenha de abrir-se uma exceção para as viagens de avião. O deputado Guilherme Silva, que foi vice-presidente na XI Legislatura e é da Região Autónoma da Madeira, resolveu isso de uma forma simples, ao deixar claro que não queria receber os subsídios de transporte ao abrigo do n.º2  do art.º152.º da Constituição da República Portuguesa – mantendo ainda assim a vontade de receber as deslocações de trabalho político.

Contactado pelo SOL, Mota Amaral defendeu: «Quem tem o encargo de zelar pelo cumprimento das regras contabilísticas da Assembleia são os serviços da Assembleia. Se, por ventura, eles me processaram esses abonos é porque acharam legais, se não não tinham processado».

E continuou: «Nunca me chamaram a atenção, tanto que pelos vistos os pagamentos foram processados».

Presidentes do CA da AR também acumularam 

No caso de José Lello, falecido em 2016, foram também pagas despesas de deslocação de acordo com o n.º2 do art.º 152.º da Constituição, bem como deslocações de trabalho político na XI Legislatura, quando era presidente do Conselho de Administração do Parlamento – o valor mensal recebido em abril foi de 477,12, sendo que nesse mês não foram pagas as deslocações residência/AR nem as residência/Círculo eleitoral por não ser período de plenário.
No caso de Couto dos Santos, presidente do Conselho de Administração da Assembleia da República na Legislatura seguinte, a situação é idêntica. Em abril de 2012, o valor de abonos para deslocação recebido foi de 2194,32, onde se incluiam deslocações residência/círculo e residência/AR e ainda trabalho político e as que são devidas tendo em conta o n.º2 do art.º 152.º da Constituição. Em julho, por exemplo, o valor ascendeu a 1876 euros,

Já Duarte Pacheco, que era secretário da mesa do grupo maioritário na XIILegislatura, teve de fazer pelo menos um acerto de 140 euros em abril de 2012, depois de ter sido avisado que usara o carro em meses anteriores ao mesmo tempo que recebia subsídios. 

O SOLnão conseguiu apurar se a partir daí foi tomada uma opção expressa por Duarte Pacheco.

Contactado esta semana, Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, encaminhou os esclarecimentos para o secretário-geral do Parlamento, que não enviou qualquer resposta até à hora de fecho desta edição, fazendo chegar a informação de que precisará de mais dias para consultar processos entretanto arquivados.

Ao SOL, o Tribunal de Contas esclareceu ontem que «emite todos os anos o seu parecer sobre as Conta da Assembleia da República» e que esse parecer se encontra no seu site. E sobre a sua posição lembrou as referências que fez às despesas de transporte nas deslocações dos Deputados no parecer sobre a Conta da AR de 2017.
«Os testes, realizados por amostragem, revelaram que no processamento, registo e pagamento de despesas de transporte dos Senhores Deputados foram aplicados os critérios de cálculo previstos na RAR n.º 57/2004», refere-se nas conclusões do parecer, em que se admite que o tribunal não tem conseguido fazer o seu trabalho de forma efetiva: «Estes critérios são, porém, insuficientes e insatisfatórios para constituir uma base idónea e suficiente para o TdC verificar se as deslocações foram ou não realizadas e formular um juízo sobre a conformidade legal orçamental e contabilística dos valores pagos».

E o risco de o Parlamento ser assim enganado é grande: «A confirmação se as despesas de transporte pagas foram efetivamente realizadas pelos Senhores Deputados e se os pagamentos emergentes são legais e devidos, no quadro jurídico em vigor, não pode ser feita pelo TdC, uma vez que não existem registos e documentoscomprovativos necessários e suficientes. O risco de serem autorizados pagamentos de viagens a todos os Senhores Deputados quando as viagens não tenham sido realizadas é elevado», constata o Tribunal de Contas na recente auditoria».

Além de os deputados não terem de justificar as despesas, o que, segundo o Tribunal de Contas, faz com que não se trate de uma compensação de encargos, mas sim de rendimentos do trabalho, que deveriam estar sujeitos a tributação, existem outras situações detetadas pelo SOL menos regulares. Os mais de 3 milhões para despesas de transporte estão inseridos na rubrica do orçamento da Assembleia da República de aquisição de serviços, como se os deputados fossem prestadores de serviços a quem o Parlamento contrata serviços de deslocação. Ou seja, não surge, como deveria, nas despesas correntes.

Ferro optou por carro

Em 2018, quando o SOL iniciou este trabalho, o Gabinete do secretário-geral esclareceu a este semanário que não havia acumulações ilegais de direitos entre os presidentes e vice-presidentes da AR nem na atual Legislatura nem na anterior:

 

Na atual LEGISLATURA

1. O Presidente da Assembleia da República, tendo direito a viatura, não recebe abonos para efeitos das despesas de deslocação. 

2. Relativamente aos atuais Vice-Presidentes da Assembleia da República:

– O Deputado José de Matos Correia, de acordo com opção por viatura, não recebe o abono das despesas de deslocação;
– O Deputado Jorge Lacão, de acordo com opção manifestada, a partir de 10 de novembro de 2017 (prescindiu de viatura oficial), passou a receber o abono para despesas de deslocação entre residência e a Assembleia da República;
– O Deputado José Manuel Pureza, de acordo com opção manifestada (prescindiu da viatura oficial), recebe o abono para despesas de deslocação entre residência e a Assembleia da República.
– A Deputada Teresa Caeiro, de acordo com opção por viatura, não recebe qualquer abono de despesas de deslocação.

3. O Presidente do Conselho de Administração, de acordo com opção por viatura, não recebe qualquer abono de despesas de deslocação.

Na anterior LEGISLATURA

1. A ex-Presidente da Assembleia da República, Deputada Assunção Esteves, tendo direito a viatura, não recebeu qualquer abono para efeitos das despesas de deslocação.

2. Relativamente aos ex-Vice-Presidentes da Assembleia da República:

– O Deputado Guilherme Silva , de acordo com a opção por viatura em território continental, não recebeu o abono para efeitos destas despesas de deslocação; recebeu abono para deslocação à residência na Região Autónoma. 

– O Deputado Ferro Rodrigues,  de acordo com opção por viatura, não recebeu qualquer abono de despesas de deslocação, até cessar funções como Vice-Presidente, em 16-10-2014. 

– O Deputado Miranda Calha veio a exercer as funções 
de Vice-Presidente, em 17 de outubro de 2014, pelo que a partir da data em que fez a opção pela utilização de viatura, não recebeu qualquer abono de despesas de deslocação.

– A Deputada Teresa Caeiro, de acordo com opção por viatura, não recebeu qualquer abono de despesas de deslocação. 
– O Deputado António Filipe, de acordo com opção por viatura, não recebeu qualquer abono para despesas de deslocação.

3. O Presidente do Conselho de Administração, de acordo com opção manifestada (prescindiu de viatura), recebeu abono para despesas de deslocação entre a residência e a Assembleia da República.

 

As entidades fantasma do parlamento​

Das 13 entidades autónomas só seis têm uma rubrica própria no Orçamento da Assembleia da República, como defende a lei. A Comissão Independente para a Descentralização é a mais recente ‘entidade-fantasma’, não tendo sequer espaço físico definido, segundo apurou o SOL.

A Comissão Independente para a Descentralização, liderada por João Cravinho e da qual fazem parte Alberto João Jardim (PSD), Adriano Pimpão (PS), Carmona Rodrigues (CDS) e Helena Pinto (BE), é uma espécie de entidade-fantasma. Ao que o SOL apurou, além de não ter espaço físico próprio, também não consta no Orçamento da Assembleia da República (OAR) para 2019 – engrossando o número de entidades autónomas que ficam escondidas no Orçamento.

A informação oficial sobre esta entidade criada por lei é pouca – sendo omissa no separador ‘entidades administrativas independentes’ que consta no site da Assembleia da República. 

Questionado sobre tudo isto, o gabinete de Albino de Azevedo Soares, secretário-geral da Assembleia da República, não enviou qualquer resposta até ao fecho desta edição. Além das entidades-fantasma, era ainda questionado sobre o porquê de no novo edifício da AR na Avenida Dom Carlos I, um investimento que tinha o objetivo de albergar  as 13 entidades autónomas ainda só contar com a presença de cinco.

Em 2015, o SOL havia noticiado que o Orçamento da Assembleia da República (OAR) omitia os valores anuais atribuídos a seis órgãos independentes. Desde então nada foi feito e, com o aumento das entidades, passam agora a ser sete as entidades-fantasma no Orçamento da Assembleia da República para 2019. 

Segundo a lei, as treze entidades autónomas que funcionam junto da AR deveriam figurar no orçamento de forma autónoma, em rubrica própria. Porém, destes, o OAR só cumpre este requisito no que refere à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, à Provedoria de Justiça, à Comissão Nacional de Eleições, à Comissão Nacional de Proteção de Dados, ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

Há quatro anos, o SOL descobriu que os orçamentos do lote das seis entidades que estão escondidas totalizavam perto de 800 mil euros em 2015. E mais de 4,3 milhões, se se tiver em conta o período entre 2006 e 2015.

Orçamento da AR viola lei 

A lei é clara e a Comissão Independente para a Descentralização, o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações, o Conselho de Acompanhamento de Julgados de Paz, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, o Conselho de Fiscalização do Sistema Integrado de Investigação Criminal, o Conselho de Fiscalização de Bases de Dados dos Perfis de ADN e a Entidade Fiscalizadora do Segredo do Estado também deveriam ter rubrica própria.

A lei 59/90 determina que «a cobertura das despesas com funcionamento dos órgãos independentes é feita pela verba inscrita em capítulo autónomo do orçamento da Assembleia da República, expressamente referido ao órgão a que respeita». Além disso, de acordo com o princípio da transparência orçamental, os valores deveriam ser apresentados de forma explícita.

Apesar disso e de ser claro que nem todas as entidades são descriminadas no Orçamento da AR, em 2015, o secretário-geral do Parlamento defendeu que «as verbas para as transferências a efetivar para as entidades autónomas estão inscritas em capítulo autónomo do OAR».

«As verbas inscritas para os conselhos/entidades cujas despesas são realizadas através do próprio OAR estão também autonomizadas com uma estrutura de centros de custo própria designada ‘subatividade’», disse ainda na época.