A Assembleia da República (AR) mantém o silêncio sobre a acumulação ilegal de direitos por parte de ex-presidentes do Parlamento e do Conselho de Administração da própria AR. O SOL revelou na última semana que o antigo presidente da Assembleia da República Mota Amaral, assim como José Lello e Couto dos Santos – presidentes do Conselho de Administração nas XI e XII legislaturas – receberam abonos de deslocação num período em que tinham direito a veículo da Assembleia da República – dois direitos que são incompatíveis. Isto porque, ao contrário do que determina a resolução da Assembleia da República n.º57/2004, de 6 de agosto – ou seja, os Princípios Gerais de Atribuição de Despesas de Transporte e Alojamento e de Ajudas de Custo aos Deputados, – não disseram expressamente qual dos benefícios escolhiam.
Também o secretário do grupo maioritário da XII Legislatura, Duarte Pacheco, acumulou os dois direitos entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012, tendo depois sido feito um acerto de 140 euros.
Contactado pelo SOL antes de a notícia ser publicada, o presidente da Assembleia da República encaminhou todos os esclarecimentos para o secretário-geral do Parlamento, que inicialmente prometeu responder até ao início da semana que agora terminou. O silêncio da AR foi, no entanto, a única resposta, não explicando sequer se pondera reanalisar os processos de pagamento de abonos de deslocação em causa e pedir os reembolsos, no caso de concluir ter havido duplicação de benefícios.
O SOL também questionou esta semana a Procuradoria-Geral da República sobre se pondera abrir um inquérito, mas até à hora de fecho não obteve qualquer resposta. A única entidade que respondeu foi o Tribunal de Contas, que confirmou já ter detetado irregularidades no pagamento de despesas de deslocação, remetendo para referências que fez às despesas de transporte nas deslocações dos Deputados no parecer sobre a Conta da AR de 2017.
Mas, afinal, o que diz a resolução que torna irregular a acumulação destes dois direitos? «Aos deputados com viatura oficial atribuída aplicam-se as regras seguintes: a) Nos termos legais e regulamentares são atribuídas viaturas oficiais às entidades seguintes: Vice-Presidentes da Assembleia da República; Deputados que tenham exercido as funções de Presidente da Assembleia da República; Presidente do conselho de administração; Gabinete dos secretários da mesa; b) A gestão da viatura atribuída ao gabinete dos secretários da mesa é da responsabilidade do secretário do grupo maioritário […] d) Os deputados a quem tenha sido atribuída viatura oficial devem manifestar expressamente a sua opção entre o abono para despesas de transporte dentro do território continental da República ou a utilização da referida viatura».
E, no respetivo cumprimento, todos os vice-presidentes da Assembleia da República nestas duas legislaturas terão manifestado a sua opção, quase sempre traduzida na seguinte frase: «Não vai abonado de despesas de deslocação, de acordo com a opção manifestada».
O caso de Mota Amaral
Como o SOL revelou na última semana, um dos casos em que houve duplicação de benefícios foi o de Mota Amaral. Quando foi deputado nas XI e XII Legislaturas, como ex-presidente da Assembleia da República mantinha o direito a carro. Mota Amaral tinha a residência nos Açores e era esse o seu círculo eleitoral, por isso, admitia-se que os subsídios de transporte para a Região Autónoma eram compatíveis com o carro, dado que as viagens teriam de ser feitas de avião. Mas, além dessas deslocações, Mota Amaral recebeu abonos para deslocações de trabalho político no Continente e outras ao abrigo do n.º2 do art.º152.º da Constituição da República Portuguesa.
Em abril de 2011, os montantes recebidos como despesas de deslocação totalizaram 1113,60 euros – neste mês não foram pagas deslocações residência/AR nem deslocações residência/Círculo Eleitoral, dado não ser período de plenário.
Mas exatamente um ano depois, já na Legislatura seguinte, o valor total líquido recebido como pagamento de despesas de deslocação subiu para 3707,72, dos quais 2404,80 não eram incompatíveis com o direito à viatura, por serem para deslocações residência/Assembleia da República. Em julho, a situação mantém-se, sendo que, dos 2284,35 euros recebidos, apenas 1442 não eram incompatíveis.
É certo que o facto de ter de haver viagens para uma Região Autónoma leva a que tenha de abrir-se uma exceção para as viagens de avião. O deputado Guilherme Silva, que foi vice-presidente na XI Legislatura e é da Região Autónoma da Madeira, resolveu isso de uma forma simples, ao deixar claro que não queria receber os subsídios de transporte ao abrigo do n.º2 do art.º152.º da Constituição – mantendo ainda assim a vontade de receber as deslocações de trabalho político.
Contactado pelo SOL na última semana, Mota Amaral defendeu: «Quem tem o encargo de zelar pelo cumprimento das regras contabilísticas da Assembleia são os serviços da Assembleia. Se, porventura, eles me processaram esses abonos é porque acharam legais, se não não tinham processado».
Ex-presidentes do CA também acumularam direitos
No caso de José Lello, falecido em 2016, foram também pagas despesas de deslocação de acordo com o n.º2 do art.º 152.º da Constituição, bem como deslocações de trabalho político na XI Legislatura, quando era presidente do Conselho de Administração do Parlamento – o valor mensal recebido em abril foi de 477,12, sendo que nesse mês não foram pagas as deslocações residência/AR nem as residência/Círculo Eleitoral por não ser período de plenário.
No caso de Couto dos Santos, presidente do Conselho de Administração da AR na Legislatura seguinte, a situação é idêntica. Em abril de 2012, o valor recebido em abonos para deslocação foi de 2194,32, onde se incluíam deslocações residência/círculo e residência/AR e ainda trabalho político e as que são devidas tendo em conta o n.º2 do art.º 152.º da Constituição. Em julho, por exemplo, o valor ascendeu a 1876 euros. Contactados pelo SOL por mensagem, nem Couto dos Santos nem Duarte Pacheco responderam.