A transformação

Na semana passada vimos que nenhuma reforma das Forças Armadas (FA) será devidamente implementada em Portugal se previamente não se proceder à total integração do Ensino Superior Militar, cujo modelo está desajustado e refém de interesses meramente corporativos.  Como foi possível chegar-se até aqui? Poderíamos recuar bastante mais – mas, para não sermos fastidiosos, retrocedamos…

Na semana passada vimos que nenhuma reforma das Forças Armadas (FA) será devidamente implementada em Portugal se previamente não se proceder à total integração do Ensino Superior Militar, cujo modelo está desajustado e refém de interesses meramente corporativos. 

Como foi possível chegar-se até aqui?

Poderíamos recuar bastante mais – mas, para não sermos fastidiosos, retrocedamos até à década de 80 do século passado, por ser neste período que a democracia começou a consolidar-se e as FA ‘regressaram a quartéis’, interiorizando o papel que lhes cabe num Estado de Direito Democrático.

Por essa altura, Portugal apenas estava envolvido na ‘guerra fria’ e, mesmo essa, esmoreceria na segunda metade dessa década, acabando no início da década seguinte.

As FA eram ainda maioritariamente compostas por militares que haviam sido formados para a guerra colonial, mas nos anos que se seguiram, mormente até meados da década de 90, o seu efetivo foi sendo substancialmente reduzido, graças também a um conjunto vasto de medidas permitindo que aqueles que haviam servido o seu país abandonassem o serviço efetivo em condições de grande dignidade.

Simplificando, as FA portuguesas ainda estavam fortemente marcadas por uma formação que as preparava para uma tipologia de guerra que já não era aquela que se colocava no mundo pós-queda do Muro de Berlim.

Até aqui, tudo normal. Outros países experimentaram a mesma situação.

Porque nos interessa abordar o Ensino Superior Militar, é mister termos em conta que os oficiais dos quadros permanentes haviam sido produto do ensino ministrado na Escola Naval e na Academia Militar: a primeira formava os oficiais da Marinha, a segunda os oficiais do Exército e da Força Aérea (estes últimos, até ao início de década de 80, data em que surgiu a Academia da Força Aérea).

O ensino ministrado nestes estabelecimentos militares era similar ao de países que, na época, experimentavam um contexto geopolítico e geoestratégico semelhante.

Com os riscos inerentes a qualquer simplificação, diremos que a formação dos oficiais dos quadros permanentes era muito condicionada pela necessidade de rapidamente poderem assumir elevadas responsabilidades em teatros de guerra – onde as operações militares depressa lhes exigiriam capacidades de comando e liderança, ficando responsáveis pela vida de cidadãos que o país colocava sob a sua alçada.

O ensino então ministrado era mais abreviado do que atual, pois a guerra assim o exigia. 

A formação militar procurava assentar em bases científicas sólidas, mas, como o tempo era curto, privilegiava as componentes técnicas, táticas, comportamentais, de liderança, tiro e preparação física.

Na década de 80 do século passado, o mundo era já substancialmente diferente. Portugal também experimentava circunstâncias muito diferentes, sobretudo a partir de 1986, com a entrada na CEE, e assistia-se a uma relação mais frequente entre os militares portugueses e os de múltiplos outros países, sobretudo no âmbito da NATO.

É a partir dessa altura que o ensino superior em Portugal se vai expandir, pois os níveis de escolaridade eram francamente baixos, assistindo-se à proliferação de estabelecimentos de ensino superior públicos e privados pelos diferentes distritos do país.

Neste contexto, o ensino militar também sofre mudanças significativas. Logo nos primeiros anos da década de 80, os estabelecimentos de ensino militar passam a ser reconhecidos como instituições de ensino superior universitário. 

Só desde então – com rigor – podemos falar no Ensino Superior Militar. 

Desde o final da guerra colonial que a instituição militar deixara de sentir a premência de formar oficiais em curto espaço de tempo, pelo que foi aumentando o tempo de formação e reforçando nitidamente a componente científica dos múltiplos cursos que ministrava na Escola Naval e na Academia Militar (mais tarde, também, na Academia da Força Aérea).

Recordemos, em Nome da Verdade, que a qualidade do ensino ministrado na Escola Naval e na Academia Militar nunca foi questionada, mesmo no período que antecedeu o reconhecimento generalizado do Ensino Superior Militar – sendo, pela esmagadora maioria dos intervenientes, considerada de grande qualidade (nos diferentes contextos históricos).

Prosseguiremos em próximo número.

*Major-General Reformado